domingo, 31 de outubro de 2010

Máximas em mínimas (65)

IDEAL
“Quem espalha um ideal espera sempre que a sua concretização não atraiçoe o que lhe vai no pensamento, talvez porque nunca tenha imaginado que a realidade pode sempre deturpar as ideias originais.”
Mário Ventura. O reino encantado (2005).

terça-feira, 26 de outubro de 2010

José Mattoso, o Medievalista

A ideia para o título deste postal vem da introdução à entrevista que Anabela Mota Ribeiro fez a José Mattoso, publicada na edição online do Público e parte do conhecimento e da obra que este historiador tem consagrado à Idade Média.
Ler uma entrevista com Mattoso é um poço de revelações, seja pela perspectiva cultural, humana, social, religiosa ou outra que tenha a ver com a nossa identidade. E esta, surgida a propósito da edição de História da Vida Privada em Portugal (de que saiu o primeiro volume, abrangendo o período da Idade Média), dirigida por Mattoso, passa por tudo isso – é biográfica e é intelectual, é humanista e é de saber. Um documento e um testemunho a não perder, num encontro onde passado e presente se conjugam na harmonia de uma experiência em que todos podemos aprender. A ler aqui.

sábado, 23 de outubro de 2010

O valor de educar, o valor de instruir

A Fundação Francisco Manuel dos Santos editou (Outubro, 2010) o volume colectivo O valor de educar, o valor de instruir, participado por nomes como Fernando Savater, Ricardo Moreno Castillo, Nuno Crato e Helena Damião, que reúne o essencial das comunicações que, sob o mesmo título, os autores apresentaram em Lisboa e em Faro há poucos dias, num acontecimento organizado pela própria Fundação e sujeito ao mesmo título, num mais amplo debate sob a designação de “Questões-chave da educação”.
Antes de mais, diga-se que esta preocupação que a Fundação Francisco Manuel dos Santos, presidida por António Barreto, tem com a área da educação é algo que só devemos louvar, por várias razões: em primeiro lugar, porque, sendo a educação um domínio que toda a gente acha que tem condições para discutir, tal é a sua importância na sociedade, muitas das coisas que por aí vão sendo ditas não passam de vulgaridades e de praticamente nenhum rigor de análise; em segundo lugar, porque a educação tem sido discutida em Portugal na sua faceta mais imediata e simplória, no âmbito das medidas, sem que se discutam os princípios, sem que se procure uma filosofia da educação para o país.
O texto de Fernando Savater, “O valor de educar”, chama a atenção para a humanização da educação, uma tarefa que não exclui ninguém (família e sociedade incluídas) e que se afigura como uma revolução “que não destrua, mas que conserve o positivo, que transforme”. Queiramos ou não, a educação integra, forma, determina o civismo e, como o autor dizia na conferência de Lisboa, “o problema é quem vai educar”, para concluir que “os bons educadores devem chegar antes dos maus educadores”. Este alerta pode parecer óbvio; mas é nisso mesmo que reside a sua importância: a educação ensina a tolerância e não a resignação ou a indiferença; a educação ensina a liberdade e impede que a ignorância destrua a democracia.
Ricardo Castillo, ao traçar o retrato dos “Problemas da educação em Espanha”, dá algumas ideias para aquilo que se passa em Portugal. Afinal, as coisas não estão assim tão separadas!... O trabalho necessário para o estudo, o quão pernicioso têm sido as teorias dos especialistas da banalidade que têm invadido a pedagogia (uma falsa pedagogia, diria), as discussões em torno da autoridade (da escola e do professor) que apenas demonstram o que foi feito da autoridade que nunca deveria ter sido posta em causa… são questões que passam pela crítica severa de Castillo, que reprova o disparate reinante em muitas teorias da educação e que chega a afirmar que os professores devem “ensinar a lição, como sempre se fez, sem complexos e sem medo de parecerem professores obsoletos, caducos ou nostálgicos e dar má nota a quem não sabe”. É evidente que, num tempo em que o que interessa são as estatísticas do sucesso, mesmo que ele seja mascarado, adulterado ou fingido, as palavras de Castillo tocam fundo e deviam fazer pensar. Afinal, ainda aqui, estamos a falar de filosofia da educação e não de estarmos a tratar de saber se todos os estudantes devem estar ou não no caminho do sucesso… obviamente que devem!
Em “Algumas ideias dominantes na educação em Portugal”, Nuno Crato fustiga os princípios peregrinos da motivação como “base de todo o estudo e de toda a escola”, do objectivo do ensino que é “a compreensão crítica das matérias” e do ensino que se deve orientar “em torno das vivências e do ambiente cultural dos estudantes”. Não serão estes princípios contestados por Crato aqueles que têm posto em causa o valor da instrução e até o valor e o papel da escola?
O quarto ensaio incluído nesta antologia, sobre “A (in)dispensabilidade de ensinar”, assinado por Helena Damião, acentua o valor da instrução como determinante para a prosperidade das sociedades, bem como o papel dos professores nos níveis de aperfeiçoamento que a Humanidade tem conseguido atingir, algo que se conjuga com um princípio basilar que, infelizmente, muitas vezes tende a ser esquecido: “a imprescindibilidade de se ensinar para que se possa aprender”.
Não sei se a leitura destes quatro ensaios é obrigatória para professores, pais e educadores. Se a tanto não conseguimos chegar, é, pelo menos, obrigatório atingir que a educação que queremos deve ser pensada, da mesma maneira que temos de pensar para que tipo de sociedade queremos caminhar. São questões básicas, eu sei; mas, exactamente por isso, têm de ser pensadas, sob pena de se prosseguir nesta alucinação que é a desvalorização de tudo o que tem feito a Humanidade, no vício de que a tradição ou o passado são princípios a rejeitar, na vertigem de que tudo tem de ser reformulado pelo simples facto de que tudo tem de começar sempre de novo… As consequências, como se sabe, estão à vista!
Marcadores
1. "Quem sinta repugnância pelo optimismo deve deixar o ensino e não pretender pensar em que consiste a educação. Porque educar é crer na perfectibilidade humana, na capacidade inata de aprender e no desejo de saber que a anima, no haver coisas que podem ser sabidos e que merecem sê-lo, na possibilidade de nos podermos melhorar uns aos outros por intermédio do conhecimento." (F. Savater)
2. "A educação é um direito, mas a sua violação não é considerada um delito." (R. Castillo)
3. "Os bons professores sabem há muito que o ensino estruturado é importante, que não se pode esquecer a motivação dos alunos nem a pressão para o estudo, que a tabuada e a mecanização das operações são necessárias, que a ortografia não deve ser desleixada e que a compreensão dos bons textos literários é crucial. Os bons professores sabem há muito o que os teóricos da pedagogia romântica querem que eles esqueçam." (N. Crato)
4. "A tarefa de ensinar é nada menos do que fundamental, e isto a dois níveis: a um nível mais restrito, das aprendizagens de cada sujeito, facultando-lhe a aquisição de conhecimentos e o aperfeiçoamento de capacidades; e a um nível mais amplo, dos desígnios da sociedade e da civilização a que todos pertencemos, mantendo o seu legado e, não ficando por aí, procurando novos saberes que o ampliem." (H. Damião)

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Regresso à superfície da vida no Chile

30 mineiros chilenos já estão à superfície, resgatados de um período de quase 70 dias de sombra e de esperança a 700 metros de profundidade, numa escalada inaugurada por Florencio Avalos. É a compatibilidade do homem com a técnica, com a Natureza, consigo mesmo. Será bom que isto se não transforme num espectáculo, sob pena de a memória não registar estes momentos que, para a história, são grandes de significado. A nossa solidariedade com os homens da Mina de San Jose deve passar pela alegria, que é também uma marca de esperança naquilo que o Homem pode sem saber que é capaz, sobretudo quando em nome do bem ou da felicidade.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Agenda com flores da Arrábida

A Agenda do Professor para o ano lectivo de 2010/2011 publicada pela Associação dos Municípios da Região de Setúbal (AMRS) tem como tema a vegetação da Arrábida, uma apresentação que é motivada pelo facto de a AMRS ser a principal proponente da candidatura da Arrábida a Património Mundial da UNESCO.
A nota introdutória justifica a opção: “A Arrábida é um sítio natural de valor mundial, nomeadamente, pela excepcionalidade da sua paisagem e pela riqueza florística e de conjuntos vegetativos que apresenta. De facto, a Arrábida constitui um laboratório natural a céu aberto. Pela diversidade de habitats e pelo equilíbrio dinâmico que existe entre eles, possui a vegetação da Arrábida uma raridade e uma resiliência própria extraordinária que permite a diversidade actual.”
Com projecto gráfico e fotografia de Dina Teles, esta Agenda do Professor mostra uma dúzia de reproduções de plantas que podem ser encontradas no espaço da Arrábida, sobre as quais são indicadas características como a designação científica, a família, o nome vulgar, as dimensões, a ecologia e a fenologia.
Presentes nesta tiragem de cerca de 15 mil exemplares estão a madressilva (que ilustra também a capa), bocas-de-lobo, erva-pinheira, macela-de-S.João, fel-de-terra, fel-do-mato, ervilhaca miúda, tojo-gatunha, cardo do coalho, murta, roselha grande, beleza e lavapé.
Esta edição é uma evocação simpática da Arrábida, numa paleta de cor e de natureza para ir entretecendo os dias, num tempo em que falar da Arrábida não pode ser apenas por moda mas por intervenção cultural e cívica.

domingo, 10 de outubro de 2010

Fernando Rosas sai do Parlamento e deixa lições (para proveito e exemplo)

No Público de hoje, há uma entrevista de Fernando Rosas, eleito pelo distrito de Setúbal pelo Bloco de Esquerda, a propósito da sua saída de deputado. Vale a pena atenção sobre alguns pontos...
História e Política – “(…) Sempre estive na política como um historiador que também faz política e não como um político que de vez em quando faz História. Devemos saber quando saímos. (…) Como historiador não faço política; e como político a História é-me indiscutivelmente de grande utilidade. Os políticos ganhariam muito em conhecer a História. (…) A cultura média dos parlamentares é fraca no que diz respeito à História. Existe o conhecimento da banalidade e o do lugar-comum, pouco aprofundado. Mas há situações muito diferentes e temos um presidente do Parlamento que é um grande conhecedor da História portuguesa. (…)
Renovar o Parlamento – “(…) Sempre defendi a circulação de deputados. Mas agora isso está dificultado, com a lei aprovada em 2009 e que estipula que as rescisões só aconteçam em circunstâncias extremas. Isso tem um lado perverso, que é transformar isto numa espécie de clube de bonzos: políticos profissionalizados na vida parlamentar. Dar aos partidos a possibilidade de renovar o quadro parlamentar é da maior importância. (…) O Parlamento é uma escola fundamental. Mas em contraponto pode ser um clube endogâmico e centrípeto, que puxa mais para dentro do que para fora. Todos os Parlamentos são um pouco assim: uma forma de desligar os representantes dos representados e de os aproximar do Estado. No fundo, uma forma de criar um consenso artificial quando, por vezes, os verdadeiros consensos só se atingem pelo dissenso. (...)"
Deputados e Realidade – “(…) Em Portugal, a vida civil é muito fraca e praticamente só há política no Parlamento. Estar na AR é uma questão vital para um partido. Mas o Parlamento é um clube endogâmico e centrípeto. Os partidos têm de ter um grande cuidado com isso. Os deputados, quando fazem política, têm de ter o contrapeso da realidade, não perdendo o pé com ela. Estar próximo dos eleitores, nos movimentos sociais, participar na actividade cultural do país, é muito importante. Porque o país real não está aqui, está lá fora.”

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Entre os caminhos e as escolhas, a solução de José Mattoso

"Se há muitas maneiras de cumprir o destino humano, como mostra a variedade de caminhos que o Homem tem seguido através do tempo e do espaço, e se isso é positivo por demonstrar as suas inúmeras virtualidades, é preciso também preservar aquele caminho que consiste em escolher a renúncia ao sucesso, ao ganho imediato, à precipitação, enfim, à ânsia de poder, donde nasce toda a espécie de conflitos. A minha referência, para deixar as coisas claras, é Jesus Cristo. Ele afasta-se da multidão para orar, mas não deixa nunca de pregar, e de pregar a aceitação da realidade e a paz. A minha pregação, se assim lhe posso chamar, é explicar o sentido da História."
José Mattoso, em entrevista a Ana Teresa Ferreira
(a propósito do lançamento da obra História da Vida Privada em Portugal por si coordenada).
Círculo de Leitores. Lisboa: Círculo de Leitores, nº 193, Set.2010.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

5 de Outubro, Dia Mundial do Professor

Em Portugal, a data corre o risco de ser esquecida ou, pelo menos, minimizada, por coincidir com o feriado da implantação da República, sobretudo neste ano de centenário. No entanto, ela consta nos dias comemorativos e merece mensagem assinada conjuntamente pela UNESCO, UNICEF, PNUD, OIT e IE. Reproduzem-se excertos da mensagem deste ano, que pode ser lida na íntegra aqui. O tema escolhido para 2010 é sintomático: "A reconstrução passa pelos professores". E não se está a falar apenas desta crise com que nos vamos anestesiando, mas com aquelas que há muito doem na pele, tenham elas a origem que tiverem e aconteçam onde acontecerem - aqui, ao pé da porta, mas também longe -, e que têm tido a formação humana dos professores.
"En cette Journée mondiale des enseignants, nous leur rendons à tous homage pour la formation déterminante qu’ils apportent aux enfants et pour leur contribution décisive au développement social, économique et intellectuel des nations. Les enseignants sont des vecteurs de changement, eux qui donnent l’impulsion nécessaire à l’émergence de collectivités instruites. (…)
Les enseignants assurent la continuité tout en apportant du réconfort, à la fois pendant et après les catastrophes naturelles et d’autres crises. En redonnant espoir en l’avenir et en restaurant un cadre structuré et un sentiment de normalité, ils aident à atténuer les effets des conflits, des catastrophes et des déplacements de population. Ils apportent un appui psychosocial indispensable, apaisant les enfants et les jeunes traumatisés par des scènes d’une extrême violence ou par la destruction de leur maison et la perte de membres de leur famille. (…)
Catalyseur de la croissance humaine et du développement, l’éducation constituera un levier déterminant pour la réalisation des Objectifs du Millénaire pour le développement (OMD) et de ceux de l’Éducation pour tous (EPT). Mais sans un nombre suffisant d’enseignants bien formés et motivés, nous risquons de ne pas tenir la promesse faite il y a 10 ans aux enfants et aux jeunes du monde entier lors du Forum mondial sur l’éducation : en effet, les enseignants sont au coeur même du système éducatif. (…)
La qualité de la formation des enseignants est tout aussi importante. Des professeurs bien formés et correctement rémunérés sont plus à même d’offrir un bom enseignement et de promouvoir activement les valeurs civiques, la paix et le dialogue interculturel. Nous prions donc instamment les gouvernements de continuer à investir dans des politiques et des programmes viables en matière de formation, de recrutement et de maintien en fonction des enseignants, afin que ces derniers restent en poste et évoluent au sein de la profession. Dans le même temps, nous exhortons les partenaires de développement à apporter leur appui aux gouvernements, en particulier ceux de pays en développement, qui sont déterminés à investir dans la formation des enseignants.
Nous demandons aussi que plus d’efforts soient consentis et que davantage de structures de dialogue social soient mises en place pour que les enseignants aient voix au chapitre au moment où les décisions sont prises, par l’entremise de leurs organisations démocratiquement élues. Si les enseignants n’apportent aucune contribution aux réformes éducatives, il y a peu de chances que l’ensemble dês objectifs des programmes de reconstruction soient atteints."

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Em Setúbal, na noite de 4 para 5 de Outubro de 1910 e depois


Revolução na rua e fogo na Câmara
O jornal setubalense O Elmano, que se publicava aos sábados, na sua edição de 15 de Outubro de 1910, a primeira depois da implantação da República, trazia para primeira página, com letra destacada, a seguinte proclamação: "Viva a República Portuguesa - Está proclamada a República em Portugal! Implantou-a a Armada, o Exército e o Povo, no dia 5 de Outubro de 1910, para redenção deste belo país que a monarquia hora a hora ia mergulhando no charco lamacento da abjecção e da desonra. Foi a vontade suprema do Povo, do Exército e da Armada que salvou do aviltamento a nossa Pátria, erguendo-a tão alto que o nome português é hoje proferido em todo o mundo civilizado com respeito e admiração, fazendo recordar os antigos feitos, a bravura e heroísmo dos valentes e esforçados de Aljubarrota, Ormuz, Malaca e Buçaco, etc. Está proclamada a República! Honra e glória a todos que contribuíram para a sua implantação. Viva a República Portuguesa!"
por causa de uma bandeira
Esta adesão republicana manifestada pelo jornal não podia ser desligada do que em Setúbal se passara uns dias antes, precisamente na passagem de 4 para 5 de Outubro. Em texto de reportagem, a mesma edição do jornal conta que, no dia 4, corria na cidade a informação de que rebentara a Revolução. Pela falta de referências precisas, "crescia a ansiedade nos setubalenses", até que, pelas 19 horas, o republicano Leão Azedo chegava para recomendar prudência e aconselhar o povo a não fazer "manifestações desagradáveis com as quais a causa da República nada ganharia". Porém, grande manifestação andava já nas ruas, com entusiasmo difícil de conter. Pelas 21 horas, os manifestantes estavam na Praça do Bocage, dirigindo-se aos Paços do Concelho, onde havia uma esquadra de polícia, e pediram ao chefe que fosse hasteada no edifício a bandeira republicana. A pretensão foi negada, houve tiros de revólver e a multidão invadiu a esquadra. Pouco depois, conta o repórter, "manifestava-se o incêndio que rapidamente se comunicou a todo o edifício onde funcionava a recebedoria do concelho, administração, repartição de fazenda, terreiro municipal, tesouraria da Câmara, biblioteca pública, repartição de impostos, etc." E, mais adiante, ainda impressionado, o autor conta que "todo o edifício dos Paços do Concelho ficou destruído, não podendo salvar-se um único livro de escrituração municipal e da fazenda. Um puro vandalismo, no qual os republicanos não tiveram a menor intervenção, nem, dada a exaltação de ânimos, podiam evitar".
A multidão dirigiu-se depois para as instalações que pertenciam aos jesuítas, destruindo o que encontraram, e para Brancanes, onde havia o convento dos franciscanos, que foi também incendiado. Após uma noite de chamas e de manifestações, o dia 5 de Outubro faria chegar à cidade a notícia oficial da implantação da República pelas 10 horas. Os foguetes acompanharam então a alegria da população e as filarmónicas que desfilaram pela cidade a entoar "A Portuguesa". Pelas 17 horas, na varanda dos Paços do Concelho, era proclamada a Comissão Administrativa da Câmara, à frente da qual estava Leão Azedo.
edifício de azares
Após o incêndio, os serviços da Câmara passaram a funcionar nas instalações do Liceu, tendo as obras de recuperação dos Paços do Concelho sido demoradas.
Foi entre 1526 e 1533 que o edifício municipal fora construído na então Praça do Sapal, tendo a obra sido entregue ao mestre pedreiro Gil Fernandes, residente em Lisboa. Cerca de dois séculos mais tarde, por 1722, vendo que o edifício necessitava de obras, a população setubalense ofereceu-se para, durante três anos, contribuir para tal reconstrução. Em 1733, foi concluída a varanda. No entanto, o terramoto de 1755 viria a danificar tão fortemente a construção que houve uma disposição régia a criar um imposto sobre a carne para serem angariados fundos para a reconstrução que se impunha. O incêndio de 1910 foi a última vicissitude por que passou o edifício. Mas só em 1927 o arquitecto Raúl Lino foi convidado pela Câmara para elaborar o projecto de reconstrução dos Paços do Concelho, tendo o mesmo sido entregue no ano seguinte. Pelos finais de 1932, as reuniões do executivo camarário eram ainda no Liceu e, em 1933, um decreto do Presidente da República Óscar Carmona estabeleceu que o Governo receberia o Liceu e, em troca, avançaria com a construção do edifício da Câmara. A entrega da obra concluída viria a efectuar-se apenas em Maio de 1939.
O incêndio havido em 1910 deixou a marca de perdas irreparáveis ao nível de documentação e de fontes para a história e cultura locais. Lembra Fran Paxeco na obra Setúbal e as Suas Celebridades (Lisboa: Sociedade Nacional de Tipografia, 1930) que Luciano de Carvalho, responsável da Biblioteca Municipal que estava nos Paços do Concelho, chorou, porque "as chamas lhe tinham consumido o labor oculto de largos anos", centrado nas "pilhas da sua Bocageana, acompanhada por uma completa iconografia e o esboço do catálogo biográfico dos escritores setubalenses". Numa tentativa de compreensão dos acontecimentos, Paulino de Oliveira interveio numa sessão de Câmara, uma semana depois, para apreciar o sucedido, argumentando que o incêndio só se podia dever à "profunda má vontade do povo setubalense à polícia cruel, cuja esquadra se encontrava no mesmo edifício, pelas perseguições extremas que sobre ele exercia", sustentando que os factores determinantes terão sido o facto de a polícia ter recebido a tiro os manifestantes que queriam içar a bandeira republicana e o facto de os dirigentes não terem explicado à multidão as consequências do acto que iam praticar.
Uma das medidas imediatas tomadas pelo executivo foi a da decisão de serem publicados editais "convidando todos os credores do município a apresentarem as suas contas dentro de 30 dias", uma vez que a documentação desaparecera. Sem instalações próprias e num regime novo, a equipa do executivo municipal era constituída por Leão Azedo, Ezequiel Soveral Rodrigues, Manuel Livério, António Arronches Junqueiro, José da Rocha, Joaquim Brandão, Joaquim dos Santos Fernandes, José Augusto Coelho e Eduardo Mendes Belo, um grupo que, no jornal O Elmano, de 15 de Outubro, merecia a seguinte apreciação: "O que podemos já dizer é que todos os seus membros estão no firme propósito de trabalhar para o engrandecimento de Setúbal e para a melhor regularização dos serviços municipais".
João Reis Ribeiro. Histórias da região de Setúbal e Arrábida (vol. 1).
Setúbal: Centro de Estudos Bocageanos, 2003, pp. 175-178.
[foto: reprodução a partir de O Setubalense de hoje]

sábado, 2 de outubro de 2010

Preocupações da República

Ao entrar a semana do centenário da implantação da República, não é de admirar o destaque que a efeméride merece nas publicações periódicas. Destaco a revista Visão (nº 917, de 30.Set.2010) por trazer como encarte o facsímile de A Capital, de 5 de Outubro de 1910, e, sobretudo, por reunir os depoimentos de quatro nomes que chegaram ao lugar de Presidente da República – Cavaco Silva, Jorge Sampaio, Mário Soares e Ramalho Eanes – sob o título de “Os novos desafios da República”. Falando todos eles de coisas diferentes, assumem essa diversidade como o conjunto das preocupações actuais da República (que somos nós), num exercício de pensamento que nos deve servir de convite. Reproduzo excertos dos quatro testemunhos.
Aníbal Cavaco Silva – “(…) Entre os múltiplos desafios que se deparam às repúblicas contemporâneas poder-se-ão destacar os seguintes: Sustentabilidade ambiental – (…) Ainda não encontrámos a fórmula harmoniosa susceptível de, em simultâneo, preservar um ambiente saudável e garantir níveis de desenvolvimento capazes de satisfazer as expectativas materiais dos cidadãos. (…) Sustentabilidade energética – (…) Ou exigimos que todos se situem no mesmo nível de desenvolvimento (…) ou mantemos uma situação que, a breve trecho, colocará em risco as economias do Ocidente e o modelo social de redistribuição da riqueza que só um elevado crescimento económico permite. (…) A dependência energética não é apenas uma questão ecológica, mas também geoestratégica. Dela depende a sustentabilidade do planeta, desde logo, mas igualmente a viabilidade do modelo político, económico e social da Europa. Sustentabilidade social entre gerações – (…) Deve existir uma maior justiça social entre gerações, de modo a que os mais jovens não sejam lesados nas suas expectativas legítimas, os adultos de meia-idade não tenham de suportar encargos desproporcionados e os idosos não sejam alvo de exclusão ou de discriminação. (…)”
Jorge Sampaio – “(…) Ao Estado pede-se que reveja e corrija as causas da rigidez do mercado de trabalho, da lentidão da justiça, das regras vigentes da concorrência, da morosidade da administração pública, da desadequação da formação profissional, enfim, de todos os obstáculos ao investimento e à concorrência. Ao Estado pede-se lucidez em relação ao presente e visão de longo prazo. Lucidez na procura de sucedâneos para a impossível desvalorização que permitam, afinal, embaratecer os nossos produtos ou torná-los atractivos no mercado mundial; visão de longo prazo para que prossiga as reformas entretanto encetadas, que permitirão acelerar no país a revolução pós-industrial no contexto do seu papel de regulador estratégico. (…) Seremos capazes de ultrapassar as dificuldades. Para que isso aconteça, precisamos dos valores progressistas e democráticos da República. E necessitamos de vontade e capacidade de mobilizar os Portugueses, que são o fundamento da República. (…)”
Mário Soares – “(…) Estamos a viver uma crise global, que não sabemos até onde irá e como dela sair. Economistas da nossa praça, todos os dias, procuram convencer os nossos compatriotas que Portugal é um país em decadência, sem remédio. Não partilho esse derrotismo, que contagia alguns dos nossos compatriotas. Uma das ideias-força da I República foi restituir-nos o orgulho de sermos portugueses e sabermos enfrentar, com coragem e bom senso, os desafios que temos de vencer. (…) Precisamos de ter confiança em nós próprios e de ter coragem de vencer as dificuldades, tal como são. Sem pessimismo, nem optimismo: com determinação. (…)”
Ramalho Eanes – “(…) Para que a situação não venha a dar razão aos pessimistas, para que respondamos à nossa responsabilidade social inabdicável, para que invertamos a decadência em que o país escorrega, necessário será: que à Sociedade Civil portuguesa seja dita a verdade, toda a verdade, sobre a situação actual e suas consequências, não só previsíveis mas próximas já; que não caiamos na endémica tentação de encontrar um bode expiatório, que nos afaste da responsabilidade conjunta – Sociedade Civil e poder político – de responder, com coragem, com competente trabalho, com austero consenso, com preocupado aforro, à crise, pois, perante ela, não há inocentes (…). Indispensável, também, é, subsequentemente, estabelecer a arquitectura de um grande propósito colectivo possível e mobilizante, e estabelecer as estratégias para o alcançar, definir os métodos, instrumentos e meios para as realizar, e apresentar os mecanismos, do Estado e da Sociedade Civil, para controlar a eficácia da sua execução. (…) Difícil é o desafio, mas grandes são, também, agora, as oportunidades de nos reencontrarmos com a verdade do que realmente somos, do que é o país. (…)”