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quinta-feira, 14 de outubro de 2021

Memórias dos Bairros dos Pescadores e do Grito do Povo, em Setúbal



Os Bairros dos Pescadores e do Grito do Povo, na Anunciada, alojando cerca de seis centenas de famílias, alimentam a história da pesca e das conservas em Setúbal. Desde há meia dúzia de anos, uma acção preocupada com a cidadania e a qualidade de vida nestes bairros tem sido levada a cabo sob orientação da Câmara sadina e, desde 2017, têm estado em marcha as Oficinas Colaborativas, método de partilha, de apropriação e de aprofundamento da identidade, em trabalho coordenado pela Divisão de Direitos Sociais da autarquia. O resultado dessa construção identitária foi agora publicado sob o título Caminhos com História - Memórias dos Bairros dos Pescadores e do Grito do Povo, obra coordenada pela socióloga Joana Iglésias Amorim e pela antropóloga Vanessa Iglésias Amorim, setubalenses do Bairro dos Pescadores, em edição da Câmara Municipal de Setúbal.

Em centena e meia de páginas desfiam-se vidas de intervenientes nascidos entre 1933 (Cremilde Dias) e 1999 (Rogério Conceição), num verdadeiro cruzamento inter-geracional, com número de citações quase igualmente repartido entre homens e mulheres, destacando-se na quantidade das intervenções figuras como Conceição Sobral (n. 1949), Nuno Simões “Espuma” (n. 1945) e Rogério Silva “Velhinho” (n. 1955).

Conhece-se o confronto com a dureza, a falta e a dificuldade: a habitação em barracas e depois em casas de tijolo até à construção dos bairros, as lutas pelas melhores condições de trabalho entre a resistência política e a repressão, a guerra colonial e as deserções, o 25 de Abril e as reivindicações, os alojamentos do projecto SAAL (Serviço Ambulatório de Apoio Local), a vida associativa... rumo a melhores condições de vida, com criação de laços de afecto ao lugar, como desabafa “Espuma”: “Desde que vim para aqui, gostei sempre disto. E vês a malta lá de baixo... está toda a morar aqui em cima. O bairro foi melhorando. Então não ‘tá aquilo que era antigamente. Nem pensar nisso.”

Narra-se também a ocupação das horas: o trabalho a dias, a pesca, a fábrica e o seu apitar, com horários longos e idades nem sempre recomendáveis - “Eles metiam a gente, mas quando sabiam que havia a fiscalização éramos escondidas dentro de um armazém. Não era só eu, era mais pessoas nessa altura a trabalhar assim. A gente só podia trabalhar aos 14 anos, ainda andei um ano escondida.”, relembra Conceição Sobral. E assiste-se à fuga para a alternativa que era a emigração - “O meu filho foi uma vez ou duas comigo à pesca, nunca mais quis ir. Nunca mais lá pôs os pés. ‘Eh, não vou mais ao mar’. Olhe, lá foi para França, está para a França, têm melhor vida. ‘Tão melhores.”, conta “Espuma”.

Evoca-se também a infância e a passagem pela escola (com histórias boas e menos boas), rapazes e raparigas separados e exames na quarta classe. Assiste-se às brincadeiras, muitas vezes improvisadas, e aos passeios para roubar fruta nas quintas, às idas a festas e à praia, aos bailes. E saboreia-se o gosto que o peixe tem, aprendendo a escolha criteriosa e a ementa da caldeirada ou dos pastéis de ovas de sardinha.

Quatro capítulos, fortemente ilustrados pelas fotografias de Américo Ribeiro (maioritariamente), constituem o corpo deste livro, verdadeira reportagem de formas de viver, de estar e de se conhecer, em que os moradores têm voz e contam a(s) sua(s) história(s), em sintaxe genuína, cimentadas pela explicação equilibrada de conjunturas e por referências históricas e sociais, ficando o leitor com a sensação de que circulou por todos aqueles encontros, esteve presente nas conversas e conheceu todos os intervenientes.

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 712, 2021-10-13, p. 12.


quarta-feira, 3 de junho de 2020

Maria Adelaide Rosado Pinto: Sons de Setúbal



O nome de Maria Adelaide Rosado Pinto (1913-1997) está ligado a Setúbal, não só porque aqui nasceu, mas sobretudo pela obra ímpar que, na área da música, promoveu como estudiosa, professora, autora, fundadora de instituições, divulgadora da arte. O seu trajecto veio, aliás, dar continuidade ao de seu pai, Celestino Rosado Pinto (1872-1963), também ele setubalense, com uma carreira invulgar de regente, intérprete e compositor.
A continuidade da obra de um na obra do outro torna-se visível no livro Toadas, cantares e danças de Setúbal e sua região - Factos e tradições, assinado por Maria Adelaide Rosado Pinto (Setúbal: Junta Distrital de Setúbal, 1971), que se apoiou, em grande parte, na recolha musical e etnográfica levada a cabo por seu pai, obra que continua a ser hoje um elemento importante, aliando a arte musical a marcas identitárias da região sadina em várias manifestações da cultura local.
O primeiro grupo da recolha incide sobre as canções ligadas ao rio, ambiente de pescadores e de salineiros que, com “os seus ritmos de puxar redes e mover remos, as suas frases típicas, as suas toadas, cantilenas e danças mais ou menos alegres ou nostálgicas, características da beira-mar, davam a estas margens um pitoresco e caprichoso colorido”. Dos pescadores de Troino, ouvidos “mar fora, entoando os seus cantares durante a agitada labuta marítima”, conhece o leitor composições como “Barca velha” (1885), “Toada da beira-mar” (1889) e “Cantilena do mar” (1894), esta com a nota de ter sido “recolhida numa noite passada num barco de pesca fora da barra de Setúbal”. Do lado das Fontainhas, zona mais festiva, pode-se encontrar “Trova do mar” (1905), “Vira vira” e “Vira do Sul” (1918) e “Descante” (1919). Passa por este conjunto de cantigas a vida do mar, o amor, a festa, o galanteio, o ritmo da vida.
Um outro conjunto regista cantares de cunho religioso, como as loas do Círio de Setúbal da festa de Nossa Senhora da Arrábida na versão de 1853, um cântico dedicado à Senhora do Cabo (1865), os cantares à Nossa Senhora do Cais (1927 e 1928) e prece e agradecimento ao Senhor do Bonfim (1836), manifestações dominadas pelo pedido de auxílio nas mais variadas situações e pelo agradecimento.
O terceiro tema assenta sobre festas tradicionais da região, ligadas aos santos populares ou a momentos peculiares do ano (desfolhadas, Natal), composições muitas vezes construídas para envolverem a dança, retratando trabalhos, momentos de festa, relações entre as pessoas, formas de viver.
Os textos poéticos, sempre acompanhados da respectiva partitura musical, surgem agrupados tematicamente, depois de curto texto introdutório de contextualização, muitas vezes expandindo um sentido de deslumbramento perante os quadros populares. Ao longo do livro, vai o leitor sendo contemplado com algumas fotografias locais devidas a Américo Ribeiro, havendo ainda espaço para a descrição de trajos regionais por onde passam o descarregador de peixe, o marítimo, a peixeira, o pescador, a varina, a rapariga das ostras, a vendedeira de melancias, o leiteiro, a saloia, figuras desenhadas pelo traço de Inês Guerreiro.
Tão notório é o propósito pedagógico que acompanha esta obra, manifestado na intenção de dar a conhecer aos leitores a origem das danças e cantares que enfeitam as manifestações religiosas, festivas e de trabalho, que a sua leitura se torna fácil, esclarecedora e apetecível.
* "500 Palavras".  O Setubalense: nº 403, 2020-05-27, pg. 8.

segunda-feira, 30 de março de 2020

Fotografias para viajar no passado - Setúbal na série "Memória de Portugal"



O fascínio das fotografias a preto e branco advém de, imediatamente, sermos transportados ao passado, numa viagem pelo tempo que suscita a comparação das épocas, das paisagens, das vidas, das pessoas. “Memória de Portugal - Dois séculos de fotografia” (Atlântico Press, 2020) é colecção de trinta títulos que tem como parceiros a Torre do Tombo, o Centro Português de Fotografia e a Visapress e acompanha as publicações Correio da Manhã e Sábado. Organizada tematicamente, é caucionada pelos trabalhos dos mais conhecidos fotógrafos portugueses, como Américo Ribeiro (1906-1992), António Passaporte (1901-1983), Artur Pastor (1922-1999), Augusto Cabrita (1923-1993), Aurélio Paz dos Reis (1862-1931), Emílio Biel (1838-1915), Joshua Benoliel (1873-1932), entre outros, ou marcas como a Fotografia Alvão ou Estúdio Horácio Novais, por exemplo. As fotografias apresentadas nos vários volumes vivem pelo que mostram, sendo acompanhadas de legenda que tem como função principal completar a informação prestada no corpo de texto do livro.
Publicados os primeiros dez volumes, Setúbal surge em quatro deles. No título inaugurador, Grandes Tradições, com texto de Helena Viegas, a mostra incide sobre festas religiosas ou cíclicas, costumes ou rituais, havendo lugar para uma fotografia da colecção de Américo Ribeiro sobre a procissão do “Enterro do Senhor”, em Sexta-Feira Santa, em Setúbal. 
No volume Praias e Turismo, de Filipe Garcia, há referência às praias da Arrábida e de Tróia, que tiveram crescimento, respectivamente, a partir das décadas de 1930 (pela criação de uma estalagem no forte, devida ao pai do poeta Sebastião da Gama) e de 1950 (pela facilidade crescente na travessia do Sado e pela influência do complexo turístico instalado em Tróia a partir de final dos anos 60). A Costa da Caparica merece também alusão como alternativa de praia para os lisboetas, sobretudo a partir de 1925, quando foi considerada estância turística. Do mesmo autor é o título Vida familiar, que apresenta a evolução das casas e dos bairros familiares no país, mostrando que, em 1911, Setúbal e mais sete distritos do litoral concentravam já 53% da população portuguesa e que, a partir de 1930, o programa de Casas Económicas foi alargado a várias cidades “onde a indústria conserveira era mais expressiva”, como, por exemplo, Setúbal. Neste volume, há ainda uma fotografia do depósito setubalense da CUF, “ao estilo das chamadas drogarias”, devida ao Estúdio Horácio Novais.
Desporto, assinado por Francisco Pinheiro, relata uma história da prática desportiva em Portugal. O crescimento da popularidade das várias modalidades permite também ver que, durante décadas, o desporto foi dominado pela figura masculina, registando-se como uma das excepções o caso da setubalense Oceana Zarco (1911-2008), “famosa desportista” e “pioneira do ciclismo feminino em Portugal”.
É evidente que quase todos os outros volumes poderiam ter referências a Setúbal. No entanto, tendo em vista os propósitos da colecção - evidenciar o testemunho fotográfico -, mesmo nos títulos em que a região está ausente cabe ao leitor ver que relações temos com os outros ou que marcas existem por cá daquilo que é mostrado. O retrato final é bom, pelo contributo para a arte fotográfica, pelas marcas de identidade que revelam muito daquilo que temos sido. Ficamos a conhecer-nos um pouco melhor!

Na rubrica "500 Palavras", em O Setubalense, hoje

sábado, 22 de abril de 2017

Para a agenda: Azeitão pela lente de Américo Ribeiro



Américo Ribeiro (1905-1992) é nome incontornável para a documentação fotográfica da região de Setúbal ao longo do século XX, havendo já várias publicações consagradas à sua obra, em formato livro ou em formato postal, em alguns casos em forma de abordagem temática (desporto, Bocage, vida religiosa, indústria conserveira, etc.).
Agora vai ser a vez de Azeitão se poder observar através da lente de Américo Ribeiro. Integrando o programa de realizações da comemoração do 25 de Abril, nesse mesmo dia, em Azeitão, nas instalações da Junta de Freguesia, em Vendas de Azeitão, pelas 17h00, vai ser apresentado o livro Azeitão vista por Américo Ribeiro. A não perder. Para a agenda!

domingo, 10 de janeiro de 2016

Para a agenda - Américo Ribeiro, as fotografias que contam histórias



Américo Ribeiro (1906-1992) é nome incontornável na história setubalense, tão certeira foi a sua câmara em registar momentos da narrativa vivida ao pé do Sado. Se uma parte significativa da sua obra foi já divulgada em livro - Um Tesouro Guardado - Setúbal d'outros tempos (Setúbal: 1992), Setúbal - Imagens da História Religiosa no Século XX (Setúbal: diocese de Setúbal, 1995) e Américo Ribeiro – Todos os Dias (Setúbal: Livraria Hemus, 2006) -, também em exposições as suas fotografias têm andado. Desde ontem, "Dizem que é Américo!" está na Casa da Cultura, em Setúbal. O prazo para ver não chega a um mês. A não perder. Para a agenda!

sábado, 3 de julho de 2010

Cabral Adão, o centenário

A Biblioteca Municipal de Setúbal mostra uma exposição bibliográfica alusiva a Luís Cabral Adão quando passa o centenário do seu nascimento, gesto importante para a memória que Setúbal deve guardar deste escritor e médico. Aqui reproduzo um texto que, há uns anos, escrevi para o Jornal da Região, evocando Cabral Adão e a "sua" pedra na Arrábida...

Pelas 21 horas do último dia de Abril de 1938, noite chuvosa e de vento, desembarcava na Praça do Bocage, em Setúbal, onde era então o terminal rodoviário de autocarros, um transmontano que vinha tentar a vida na cidade do Sado. Deixara Vila Flor (a sua terra, no nordeste brigantino), estava quase a fazer vinte e oito anos (nascera a 24 de Junho de 1910), trazia um curso de Medicina (1933) e a especialidade de estomatologia (1938), conseguira alugar casa na Rua Ocidental do Mercado. Chamava-se Luís Manuel Cabral Adão e viria a ter consultório na Travessa da Alfândega, virado para o Largo da Misericórdia.
Meio século mais tarde (o período necessário para as comemorações designadas por "bodas de ouro"), este homem era alvo de uma homenagem em Setúbal, a assinalar os seus 50 anos na cidade, tempo passado como médico, como cidadão e como escritor. Vários amigos juntaram-se em 30 de Abril de 1988, tendo vindo a Setúbal uma delegação de Vila Flor (que integrava o respectivo Presidente da Câmara, Alfredo Travessa Ramalho). Nessa tarde, dirigiram-se para a Arrábida e, na descida do Outão para a Figueirinha, na zona conhecida por Praia das Pedras, foi descerrada uma lápide, colocada sobre rocha que da estrada se despenha sobre a praia, contendo os seguintes dizeres: "Lá numa rocha, um dia, sem festança, / Alguém inscreverá esta lembrança: / Aqui viveu e amou Cabral Adão", versos que constituem o último terceto do soneto número XV do livro Panorâmica - Poemas a Setúbal, que teve primeira edição em 1963. A lápide contém ainda as referências "30-4-1938 / Bodas de Ouro / 30-4-1988".
Na ocasião em que foi inaugurada a inscrição, o homenageado relembrou: "Este é um ponto do litoral de Setúbal que eu comecei a escalar antes que poucos o fizessem. Há quantos anos? Nem sei". Depois, contou a história: "Quando o primeiro lanço da estrada da Secil para estas arribas chegava apenas ali ao alto, nas traseiras do farolim do Outão, trepei uma escada de travessas de madeira velha para descobrir o que havia para além da trincheira. Pé aqui, pé além, evitando pedras, desviando arbustos espinhentos, atento a qualquer resvalamento perigoso, desci ao areal estreito, mas mimoso, que separava umas fortes rochas do mar... O lugar era recatado, a beleza das ondas selvagens, dos alcantis, da insondável distância. Enamorei-me da prainha. Vim aqui mais e mais vezes". A frequência com que Cabral Adão começou a acorrer àquela nesga de praia, depois acompanhado pelos filhos (Luís Guilherme, Maria de Fátima, António Viriato, Maria Manuela, João Pedro e Aida Maria), levou a que as trabalhadoras da Secil fossem designando o local por "Praia do Dr. Adão", numa referência ao frequentador quase único daquele espaço na altura.
Quando Cabral Adão chegou a Setúbal, encontrou uma série de pessoas amigas de família, tal como recordou no discurso que fez no jantar desse dia de homenagem - o padre Cassiano Cabral, seu conterrâneo e prior de Santa Maria; o major Alfredo Perestrelo da Conceição, que fora amigo de seu avô em Bragança; António Gamito, que tinha sido colega de liceu do seu tio. Começando a conhecer a cidade e as pessoas, Cabral Adão poderia dizer, em 1988, referindo-se a Setúbal, que estava na sua "segunda terra-natal", onde a família crescera.
Fascinado pela paisagem, este médico e escritor seria o autor do conhecido epíteto "rio azul" atribuído ao Sado, que hoje está generalizado na promoção da região, inspiração que não será estranha ao facto de Cabral Adão ter vivido na rua Ocidental do Mercado, que permitia o contacto diário com o rio. O seu primeiro livro, repleto de crónicas sobre a região, foi publicado em 1953 sob o título de Flores do Rio Azul. Mas o mesmo fascínio pela cor do Sado o acompanhava em 1988, quando, no mesmo discurso, evocava o que sentira ao ver, cinquenta anos antes, "a coruscante seda do rio, este rio bonzão que roubou o azul ao céu pela calada duma noite de luar e ficou sem julgamento por falta de prova".
O território ligado ao Sado foi ainda o motivo da sua última crónica publicada no semanário O Distrito de Setúbal, em 31 de Março de 1992, intitulada "O Ribassado - Uma Utopia? Um Palpite?" (o jornal publicaria ainda, em 28 de Abril do mesmo ano, um outro texto de Cabral Adão sob o título de "Efeméride", que continha a mensagem que lera no descerramento da lápide quatro anos antes). A sugestão encaminhava-se no sentido de ser constituída uma província designada por "Ribassado", que Cabral Adão pincelava nas suas vertentes geográfica, etnográfica e humana, constituída pelos concelhos de Sesimbra, Setúbal, Palmela, Alcácer do Sal, Grândola, Santiago do Cacém e Sines. Na conclusão, dizia o cronista: "Utopia? Palpite? Confio na minha inspiração e estou a ver os habitantes da nova província responderem, ufanos, se perguntados nesse sentido: Eu sou do Ribassado! E, nas entradas de Setúbal, além da legenda Rio Azul, a que já nos habituámos, esta outra, bem vincada: Capital do Ribassado!".
Desde sempre ligado à imprensa, Cabral Adão deixou crónicas, poemas e contos dispersos por jornais como O Setubalense, Jornal de Notícias, Gazeta do Sul e A Voz de Palmela, entre outros. Além dos títulos já referidos, Cabral Adão foi ainda autor de Meu Liceu, Minha Saudade (1948), Paisagens do Norte (1954), As Flores do Arrozal e Médicos da Seiva (ambos de 1955), Gineceu (1958), Vila Flor (1966), Plectro a Jesus (1971, que o filho António conseguiu publicar no dia do aniversário do pai, em 24 de Junho) e O Homem da Terra (1986).
O pendor para a poesia que caracterizava Luís Cabral Adão levou-o a ser um dos fundadores da Arcádia da Fonte do Anjo, tertúlia de poetas locais do início da década de 50 em que também participou António Matos Fortuna, com quem Cabral Adão calcorreou a zona de Palmela (a cuja vila chamou "ninho de casas brancas à sombra dum castelo roqueiro", em Flores do Rio Azul) e Quinta do Anjo.
Matos Fortuna recordava ainda o carácter repentista e humorístico de Cabral Adão. Um dia, quando estavam na casa de seus pais, na Serra do Louro, Cabral Adão e outra visita, António Henriques, resolveram, por sugestão do médico, fazer quadras a despique, tendo começado António Henriques com estrofe alusiva à família anfitriã: "Lar português e cristão / De virtudes rico centro / Tem aspecto pobretão / Mas onze Fortunas lá dentro". A resposta de Cabral Adão foi imediata: "Palácio nobre da serra / Sem torreões nem colunas / Colmeia viva que encerra / A família dos Fortunas". Numa outra altura, passeando pela Serra do Louro, os dois amigos viram escrito a lápis num marco geodésico: "Eu chamo-me Sales Parente / E tenho uma dor num dente". Logo o médico puxou de lápis e redigiu resposta pronta: "Eu chamo-me Cabral Adão / E dava-te já solução".
Os registos literários do médico transmontano resultavam, na maior parte das vezes, das visitas a pé que fazia na região e dos contactos com as pessoas no seu ambiente de trabalho, não conseguindo dissociar as pessoas das paisagens. Sintomático é o texto sobre as mondinas, a quem chamou "flores do arrozal", que assim as valoriza: "São as mondinas. No esmalte verde das folhas quadriculadas, engastam-se os coloridos vivos dos seus trajos como as policromias dum mosaico mourisco. São papoilas, são malvas, são hortênsias que se vão mexendo lentamente, sempre vergadas para o chão, na faina útil de livrar a cultura das ervas parasitas que a podem debilitar. O trabalho das mondinas, visto de dentro, será muito natural, uma tarefa vulgar, como qualquer outro trabalho de campo. Mas visto de fora, visto com olhos de interessada análise, que espinhoso e duro é o trabalho das flores do arrozal!".
Os contactos com estas terras e com estas gentes deixou-os Cabral Adão em 6 de Agosto de 1992, quando faleceu na sua casa de Almada, vitimado por paragem cardíaca, dali partindo, no dia seguinte, para Vila Flor, para jazigo de família. O seu último acto cultural foi ainda para Setúbal, sua terra de adopção. Juntamente com outras figuras sadinas, colaborara num volume que recolhia fotografias de Américo Ribeiro, intitulado Um Tesouro Guardado - Setúbal d'Outros Tempos. A vida trocara as voltas ao fotógrafo Américo, falecido umas semanas antes da apresentação do livro. E, ironia das ironias, trocou-as também a Cabral Adão, que faleceu na véspera da apresentação do livro que pretendia ser uma homenagem à obra do amigo, sobre quem escreveu, em Março de 1981: "Nada vaidoso, um homem simples, uma sombra viva que perpassa aqui e ali, quase sem se dar por ele, célere, ágil, procurando ângulos, sorrisos, focando objectivas, dando ao gatilho: clic!". Um outro "clic" não permitiu a um nem a outro verem a obra...

A pedra de Cabral Adão, na Arrábida

sábado, 23 de maio de 2009

Miguel de Castro: Testemunho da Memória

Daniel Nobre Mendes viveu em Setúbal e foi amigo de Miguel de Castro, o poeta falecido na semana passada. A residir em Castelo Branco, Nobre Mendes fez chegar este texto evocativo da sua amizade com Miguel de Castro, que publico, desde já com um agradecimento.
«É mesmo doloroso escrever sobre o que as entranhas arrecadaram à moda de tesouro e que de repente se sente que uma violação veio, de algum modo, como intrusa, meter-se com a gente para no-lo roubar e empobrecer, mas... o cadinho da recordação, mais estreito na sua malha do que um frasco de vidro transparente e mais poderoso do que a frieza cega da própria morte não permite que se suma para sempre tudo aquilo que nos foi caro e continua a ser objecto da nossa própria afectividade e de que damos e passamos o testemunho.
O meu poeta, amigo de Sebastião da Gama, amigo de Couto Viana, amigo de David Mourão Ferreira e de muitos mais que confeccionaram a Távola Redonda, ao jeito do Rei Artur, e que hoje têm um destacado lugar na literatura do país, o meu alegre poeta, brincalhão, que sorria e dizia coisas sérias a sorrir, que falava da vida e da liberdade como de autênticos bens malbaratados e reveles na e daqueles tempos em que pontificavam o ódio político e a negridão salazarista, o meu poeta do "Chapéu de Chuva" – conheci-o um dia no café Esperança, aí pelos meados da maltrapida década de 60 do século que ainda há pouco se escapou da prisão do calendário, e tornámo-nos amigos!
Foi uma amizade linda, toda cheia de flores, daquelas flores tão mimosamente rescendentes que embriagam os sentidos e ferem subtilmente a sensibilidade como se de maviosa música se ouvissem os acordes mais bem timbrados, envoltos em túnicas quaisquer, não sei bem o quê, quais, de maravilhas inventadas constantemente, ao sabor de encontros nunca combinados. Que amizade, que ternura santas se escapavam da nossa relação fraterna, solidária, saudável quando entrava no Esperança e se sentava à minha mesa de tristeza nos tempos dos pides e bufos mas também de gente boa e bem formada. Que saudades, meu poeta. De ti. De ti. De mais pessoas extremosas que preenchiam os meus dias de solidão, tão longos...
Quando entravas ou sempre que já lá estavas havia no ar rolos de fumo de cachimbo inconfundíveis como se de uma espiral interminável se tratasse – esse sem-fim da vida que rola, desenrola, rebola e se prolonga para além de nós, deixando pelo caminho uma presença, um sinal, um gesto que se não extingue como o fanal da memória que permite que os navios atravessem as borrascas alterosas e aportem ao cais seguro do nosso sentimento. O meu poeta amava a vida, os seus amigos, a poesia, as mulheres, as crianças e os livros. O meu poeta foi sincero, autêntico, verdadeiro, não era fabricado nos hipermercados nem tinha etiqueta de validade porque a vida dele fez um ser natural como as tempestades que assolam e deixam na atmosfera esse nimbo mágico de tragédia que se transcende pela emoção estética de teimar vivo, persistindo, resistindo e insistindo na construção de uma obra que é a nossa herança!
E no Ateneu, uma casa de fortes tradições de cultura, esteve ligado ao teatro amador, de Carlos Ferreira, outro saudoso que também pela minha vida passou. No Ateneu Setubalense amou a mulher com que se casou e foi lindo tudo!

Ilusões de Vida
Quem passou pela vida em branca nuvem
E em plácido repouso adormeceu;
Quem não sentiu o frio da desgraça,
Quem passou pela vida e não sofreu,
Foi espectro de homem - não foi homem,
Só passou pela vida - não viveu.

Miguel de Castro – Jasmim Rodrigues da Silva continua a vir na praia mar do meu sentir e permanece ancorado ao cabo de amarra que acarinha vivências de outros tempos!»
Daniel Nobre Mendes,
com poema do brasileiro Francisco Octaviano
[foto do setubalense Américo Ribeiro (Um Tesouro Guardado - Setúbal d'outros tempos. Setúbal: 1992), retratando o momento em que Miguel de Castro recebia das mãos do Prof. Doutor Hernâni Cidade o prémio dos Jogos Florais do II Centenário do Nascimento de Bocage, em 1965]