quarta-feira, 27 de setembro de 2023

Camilo Castelo Branco e Eça de Queirós juntos

 

Esculturas de Camilo Castelo Branco (Francisco Simões, no Porto) e de Eça de Queirós (Teixeira Lopes, em Lisboa)

Os últimos tempos têm andado de feição para Camilo Castelo Branco (1825-1890) e para Eça de Queirós (1845-1900), não fosse o trabalho da memória uma coisa que mexe com os povos e com a cultura...

Camilo veio à liça por causa de uma escultura no Porto, situada no largo que tem o nome de um dos seus mais conhecidos livros - Amor de Perdição. Há pouco mais de uma década, a obra de arte, assinada por Francisco Simões, foi ali colocada, mesmo em frente do edifício onde o escritor esteve preso. Os tempos passaram e um grupo de perto de 40 cidadãos apresentou documento a Rui Moreira, edil do Porto, a pedir a retirada da estátua por razões tão sublimes quanto o “desgosto estético” e a “desaprovação moral”... Pelo meio, discussão para muitos gostos chegando-se ao ponto de ter sido opinado que as duas figuras da escultura - Camilo e uma representação feminina - deveriam estar em jogo de igualdade: ou ambas nuas, ou ambas vestidas. E assim se discutiam os gostos e as ideias e outras coisas quase inomináveis. Rápido a decidir foi o presidente portuense que logo terá mandado recolher a obra de arte para os depósitos camarários. Rápido também foi o aparecimento de uma petição, com milhares de assinaturas, a contestar a decisão. E o presidente deu o dito pelo não dito e retrocedeu porque terá descoberto que, afinal, a estátua estava ali por decisão da Câmara, etc., etc. Mas, mesmo assim, Rui Moreira ainda veio escrever sobre o caso - no Público, de 18 de Setembro, lavrou o seu arrazoado: “Acresce que também eu tenho opinião. E, peço desculpa por o dizer assim, tenho uma legitimidade acrescida, porque presido ao município e tenho nas minhas mãos o pelouro da Cultura. Não sou especialista em estatuária, mas não gosto da estátua. Não por pudor ou moralismo. Felizmente, o nu e o erotismo fazem parte da arte, e estão presentes na cidade. Não considero aquela estátua erótica ou pornográfica. Apenas pornograficamente horrenda.”

É caso para dizer que mais teria valido não dizer nada, pois o emaranhado argumentativo esboroa-se por sua conta - o senhor tem opinião, acha que a sua opinião é agravada por ter a mão na cultura, não é especialista em estatuária, não gosta da estátua, não a considera erótica, mas acha-a “pornograficamente horrenda”. Isto é uma enciclopédia de saber, caramba! Só faltou a Rui Moreira dissertar sobre o conceito do “pornograficamente horrendo”, que deve dar uns bons quilos de prosa!...

Como quando se fala de Camilo também o nome de Eça salta para a ribalta, uns dias depois foi o turbilhão em torno da trasladação (ou não) dos restos mortais do autor de Os Maias para o Panteão Nacional. Eça esteve sepultado em Lisboa e, em 1989, foi trasladado para o concelho de Baião, onde se localiza a Fundação com o seu nome, instalada em lugar que ele tão bem descreveu e para o qual inventou um nome - Tormes.

É verdade que o Panteão honra e destaca. Mas qualquer cemitério é espaço de respeito e de honra - ali estão marcas de pessoas que fizeram vidas. Deverão os restos mortais de alguém andar ao sabor de momentos histórico-políticos? Pelos vistos, sim. O problema é que os contextos histórico-políticos variam e, 90 anos depois de falecer, Eça foi levado para Baião e, agora, passados mais cerca de 30 anos, querem fazê-lo regressar a Lisboa. Lá por Baião, um candidato derrotado a Presidente de Junta tem feito finca-pé quanto a mais esta viagem queirosiana, ajudando a que o caso seja um problema político e não uma questão cultural, alimentando a querela entre descendentes de Eça divididos quanto ao destino dos restos mortais (uns, pró-Panteão; outros, contra), mais discussões parlamentares e decisões judiciais pelo meio...

Eça e Camilo, lá por onde andam, devem rir-se a bandeiras despregadas destas diatribes caseiras que vão acontecendo... e que tão mal dizem da forma como encaramos a memória, que vai sendo algo para jogar quando dá jeito e pouco mais.

Deixe-se a estátua de Camilo onde está e fiquem os restos de Eça onde estão. Afinal, como se pode provar qual a facção que tem mais razão? Será que, nestas coisas da memória, também temos de andar a reboque dos “remakes”, das reconstruções, dos sabores de ocasião? Eça e Camilo estão condenados a andar juntos, por muito que alguns sobrevalorizem um ou outro - e, por estes dias, esse debate tem surgido de novo com adeptos ferrenhos da supremacia artística de um ou de outro. Na verdade, o que importa é que se conheça a obra dos dois e que as suas páginas sejam lidas, pois são bons retratos do que é ser português. Se assim fosse, talvez não tivéssemos de assistir a estes tristes espectáculos cheios de provincianismo.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: nº 1154, 2023-09-27, p. 10 (acrescentado) 


quarta-feira, 20 de setembro de 2023

Luís Aguiar: a partilha dos silêncios e o amor


Há uma canção de Bob Dylan, de 1968 (“Open the door, Hommer”), em que o papel das memórias é assim poetizado: “Cuida de todas as tuas recordações / pois não podes revivê-las.” Estes versos do poeta-cantor nobelizado acentuam de forma crua o efeito da lembrança, uma quase-metáfora para tornar presentes coisas acontecidas no passado, momentos distanciados pelo factor tempo e pelo contexto em que os acontecimentos e as recordações ocorrem.

A obra surgida da edição do Prémio Literário Manuel Maria Barbosa du Bocage de 2022 que agora se publica, O sossego do tempo sobre a pele (Setúbal: LASA - Liga dos Amigos de Setúbal e Azeitão, 2023), de Luís Aguiar, joga com esse elemento fundamental que é o tempo, fermentador de uma certa quietude e elevador das recordações, num percurso resultante da brutalidade do encontro com a morte, com o silêncio.

Na mais antiga recordação, o poema que inicia o livro, há a vivência de um passado que fazia o tempo, trajecto prolongado que parecia não ser interrompido - “Éramos tão novos, meu amor, / mas o tempo trazia nas veias lume, / romãs e os lugares / que um dia iríamos esquecer”. Contudo, este correr da vida e da paixão surge ameaçado logo no segundo poema, quando a escrita se confronta com a sorte e com a doença - “o destino é um viajante, / assim é a dor que o naufrágio causa / (...) / enquanto a leucemia se estendia / pelo sangue e pela linfa, / como se fosse um vestido preso / no estendal da quinta.”

A memória impele para lugares de revisitação, numa tentativa de construção de momentos de felicidade retomada - “Ontem, estive junto à praia onde namorávamos / sem que a tua mãe o soubesse. / (...) / Em escassos segundos recordei-me do teu sorriso.” Porém, tais instantes podem acentuar a dor, trazida pela ausência - “O mundo não mudou e tu, agora, repousas em parte incerta, / enquanto eu me tento expulsar deste quarto / onde adormeceste ontem, e ontem foi há tanto tempo”.

A continuação do poema constrói-se sobre recordações assentes em objectos (as cartas), em partilhas (uma viagem de comboio para Caminha), em instantes de alegria (o vento na praia, a areia nos pés, os campos verdes), como é conseguida nas imposições do sofrimento (“Doem as perguntas mais planas, / e as histórias que desapareceram no azul desvanecido”) ou na insistência na vã procura do ser amado - “Diz-me, / em que manhã, / ou em que pôr-do-sol, / poderei / procurar o teu cheiro, / ou o teu beijo, / misturado num lívido poema (...)?”

A leitura deste O sossego do tempo sobre a pele é um desafio à sensibilidade do leitor, uma viagem pela dor e pelas cicatrizes trazidas pela vida, num percurso interrompido pela morte, que “chegou na idade em que o cimento / estava fresco, e as searas eram infindas / para os passos que não conseguíamos dar”. O trajecto torna-se difícil para o poeta, que, depois de se ver “órfão” na viagem, sente a falta do abraço do “último momento”, tem de responder às perguntas sobre a morte, peregrina na tentativa de minimizar a ausência.

Na justificação apresentada pelo júri para premiar esta obra, assinada por José-António Chocolate, é referido estar-se “perante uma história de amor e saudade, sendo esta última não o resultado de uma revolta perante as circunstâncias adversas da vida, mas um hino de agradecimento a quem partilhou uma relação intensa e verdadeira”, ao mesmo tempo que se sublinha a riqueza imagética e metafórica conseguida no poema. No fundo, um livro construído sobre o silêncio e a vertigem da dor.

Se, como disse Jaime Salazar Sampaio, “é preciso ter amado a vida para aceitar a morte”, este longo poema de amor é prova desse percurso, via difícil de procura e de encontro, que se conclui com uma declaração que ultrapassa todas as agruras, que vence a dor: “Amo-te, / mesmo que as rosas me rasguem as mãos, / por não suportarem / o peso do teu nome inscrito numa lápide.”

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1149, 2023-09-20, p. 10


domingo, 10 de setembro de 2023

Pedro Narra desvenda segredos da Comporta



Em quase uma centena de fotografias, Pedro Narra (n. 1974) leva-nos a um encontro com segredos da Comporta, nem sempre visíveis a quem daquele espaço aproveita apenas o mais óbvio, num convite para descobertas pessoais e momentos de contemplação da Natureza que nos cerca.

O desafio passa pelas páginas de Terras da Comporta, álbum recentemente editado pela Vanguard Properties (fora do circuito comercial), título que se conjuga também com a marca dos empreendimentos que esta empresa está a promover na zona da Comporta - “Dunas” e “Torre”.

O livro corre em duas vertentes - por um lado, nessa linha do desvendar, mostrando momentos quase únicos e insistindo na urgência do olhar e do parar; por outro, na pista das memórias do artista, que ali cresceu e se deixa mergulhar nas memórias vividas.

“Revisitação do passado” - é assim que este livro é qualificado por Pedro Narra, para quem a Comporta é “um estado de alma”, conjunto de olhares resultantes do tempo ali passado a “contemplar o mar, as dunas” e a absorver “as fragrâncias que chegavam”. Um livro feito de sentidos, pois, em que se adivinham os cheiros, os ruídos, os gostos, os toques, vindos das brisas, do restolhar, do chilreio, dos sabores, do bate-que-bate das águas enroladas na areia. Um livro feito de olhares oportunos, demorados, contemplativos, perscrutantes, atentos, sub-reptícios.

Estruturado em cinco partes - “terra”, “azul”, “asas”, “areia” e “luz” -, por cada uma delas passa o mais forte de cada título, cobrindo a vida que nos é trazida dos meandros do arrozal, do sapal, das dunas ou do estuário. Encanta-se o leitor-observador com os animais (a gineta, o ouriço-cacheiro, a salamandra, o abelharuco, o chapim, a poupa, o pintassilgo, a garça, o pato-real, o golfinho, a cegonha, a águia-pesqueira, a raposa, entre outros), com as plantas (a alfazema, a camarinha, o pinhal, o feto, a azeda, a planta do arroz, o cravo-das-areias, partes de uma lista maior) ou com os efeitos de luz e cor (conseguidos em espaços como o arrozal próximo da praia da Comporta, as praias da Raposa, do Pinheirinho e do Carvalhal ou nos meandros a que Pedro Narra chamou “vida nas dunas” ou mesmo nas gotas de orvalho que serrilham uma folha).

Há fotografias que nos obrigam a parar, de tal forma a Natureza se nos impõe e se manifesta, como a que inaugura o livro - paisagem verde de arrozal, cruzada por linha vertical cor de terra, espaço de passagem e de divisão de lotes de terreno agrícola, quase mostrando as simetrias ou as geometrias com que a Natureza se nos apresenta muitas vezes - ou como a das camarinhas (nas suas bagas apelativas e tentadoras), a do pinhal na Praia da Comporta (com tufos de plantas que disfarçam a areia, dando ideia de que a protegem), a dos pintassilgos (no esforço de repartir o alimento pelos filhotes, em simultâneo com a avidez de bicos abertos na busca do pedaço que cairá em sorte), a do canal da Comporta (no seu delinear ziguezagueante, composição magistral de desenho livre), a da planta do arroz (na força da sua fragilidade), a dos flamingos em bando (construção de linhas paralelas estilizadas, em espírito de grupo e de orientação), a dos fetos castanhos (trabalho de recorte fino e de ornamentação), a do cravo-das-areias (quase querendo fazer com que o seu odor ou a sua cor corram na brisa) ou a da Praia do Carvalhal (mistura de cores numa paleta que desafia os restos de luz).

É um livro bonito este, que Pedro Narra construiu para que o mundo próximo de nós nos surpreenda e para que o leitor se torne observador do que lhe é contíguo.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: nº 1139, 2023-09-06, p. 8.


segunda-feira, 4 de setembro de 2023

Círio de Nossa Senhora da Tróia vivido em livro



“A Festa de Nossa Senhora do Rosário de Tróia tem a duração de três dias (sábado a segunda-feira) e a sua data é marcada nas três primeiras semanas do mês de Agosto, dependendo das marés, de modo a que os barcos de pesca de maior calado possam entrar na Caldeira de Tróia na tarde de sábado e saírem na tarde de segunda-feira para o regresso a Setúbal.” É assim que começa o livro Círio de Nossa Senhora da Tróia (2023), em texto assinado por José António Carvalho, o seu mentor.

São quatro os autores que colaboram nesta obra, cujos textos surgem em português e em inglês: José António Carvalho, Casimiro Henriques, Maria Miguel Cardoso e Inês Vaz Pinto.

O primeiro faz a apresentação da festa, com o seu programa detalhado, e contextualiza-a no âmbito das comunidades piscatórias setubalenses de Fontainhas e de Tróino, nascidas a partir de geografias diferentes (da zona da Murtosa, a primeira, e da região algarvia e de Setúbal, a segunda), cada qual com a sua romaria própria ao longo de muito tempo, separação entretanto esbatida, quer pelas alterações sociais, quer pelas mudanças resultantes do ordenamento - explica José António Carvalho, recorrendo a informação de Maria Miguel Cardoso, que a rivalidade entre os dois bairros “era essencialmente masculina”, uma vez que as mulheres e as crianças “rapidamente se misturavam  nas fábricas de conservas onde as relações sociais estabelecidas primavam pela solidariedade na pobreza”. Por outro lado, o reordenamento da zona ribeirinha setubalense acontecido na década de 1990, ao trazer os barcos de pesca para a Doca dos Pescadores, acabou por ser determinante para a aproximação entre as duas comunidades, de tal forma que, “actualmente, a comissão de festas é constituída por pescadores e descendentes de pescadores varinos, mas no círio fluvial e na festa participam pescadores de todas as comunidades.”

José António Carvalho é ainda responsável por cerca de uma centena de fotografias da festa, organizadas em três momentos (ou “narrativas fotográficas”), captadas nas cerimónias realizadas entre 2010 e 2019, verdadeira reportagem visual da totalidade das festas e do empenho posto pelos participantes, de tal maneira é forte e expressiva a presença humana nos tempos retratados, em que surgem os intantes da preparação, da oração e da alegria da festa.

O padre Casimiro Henriques assina o texto que se debruça sobre a experiência de fé dos romeiros, explicando o convívio entre o dogma e a religiosidade popular. A intensidade desta aproximação é visível no momento da experiência que vivencia a festa - “Para entendermos o sentido profundo dos romeiros e da romaria, é preciso estar lá. Olhar olhos nos olhos encharcados dos que dirigem ‘à santa’ as suas preces. É preciso contemplar as mãos trémulas ao acender as velas. É preciso saborear as palavras simples impregnadas das graças recebidas e agora agradecidas.” Eivado deste sentimento testemunhal, o texto funciona como um convite em que a emoção marca presença.

Maria Miguel Cardoso faz uma abordagem sociológica da festa, destacando o papel assumido pela população na preservação deste evento ligado à freguesia de S. Sebastião (não esquecendo o que foi a “reconquista” da organização da festa em meados da década de 1940, depois de, durante cerca de 15 anos, ter sido organizada por um padre de Melides, que não consentiria na participação dos setubalenses...). Interessante é ainda a leitura apresentada quanto ao sentimento comunitário que a festa tem e quanto ao seu papel na proximidade entre as pessoas e na construção de famílias.

O último texto, assinado por Inês Vaz Pinto, apresenta Tróia como “lugar sagrado”. Recuando às visitações da Ordem de Santiago, verifica-se que, já pelo século XVI, “a ermida não era apenas frequentada pelos habitantes da região, mas sim um lugar de peregrinação para gente vinda de longe”. O texto passa pela primeira referência explícita à festa em 1707 (por Frei Agostinho de Santa Maria), à presença do pregador bem conhecido na região que foi o padre Nabeto ou à retoma da organização da festa pelos pescadores de S. Sebastião em 1945. Para Inês Vaz Pinto, a capela de Nossa Senhora do Rosário da Tróia assenta num espaço que a História tem provado ser tradicionalmente religioso - “não só está muito perto da igreja paleocristã da época romana, como parece ter sido construída sobre um templo romano.”

O círio de Nossa Senhora da Tróia, cuja procissão é em linha directa, atravessando o Sado, da igreja de S. Sebastião para a Caldeira, e com passagem pelo Outão e trajecto costeiro no regresso às Fontainhas, surge bem documentado numa abordagem visual e interdisciplinar nesta obra, que fica como referência para esta manifestação religiosa setubalense, em fotografias que alimentam a memória e em textos de que não está alheia a vivência da festa.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: nº 1135, 2023-08-31, p. 10