domingo, 31 de agosto de 2008

Max Arthur e as vozes da Primeira Grande Guerra

Em Agosto de 2004, Max Arthur começou a redigir o livro Last Post, título explicado pelo acrescento “The final Word from our First World War soldiers”. Publicado em 2005, foi agora traduzido para português sob o título Palavra de Veterano – Os sobreviventes da Guerra de 1914-18 (Col. “Para que conste”. Colares: Pedra da Lua, 2008).
O que Max Arthur fez foi entrevistar os 21 sobreviventes ingleses da Primeira Grande Guerra que ainda havia nessa altura, homens nascidos entre 1896 e 1900, já todos centenários. Nem todos chegaram a ver o livro com o seu depoimento por terem falecido entretanto, mas foram vários os que ainda puderam ver a obra de Max Arthur. Refira-se ainda que dois desses veteranos ingleses estão ainda vivos – Bill Stone, nascido em 1900, e Henry Allingham, nascido em 1896, com 112 anos feitos em Junho passado, considerado o europeu mais idoso.
No livro, não é dito como foram conduzidas as conversas, mas o leitor consegue perceber que o que estes sobreviventes fizeram foi contar a sua vida, aí incluindo a sua lembrança sobre a Primeira Grande Guerra.
As sensações que perduraram nas suas memórias são idênticas àquelas que, na altura, mais foram vincadas entre os combatentes: a dureza das trincheiras, a convivência com a morte, o sofrimento nas batalhas, a coragem necessária para ver morrer e também para matar.
Mais do que um conjunto de testemunhos sobre o vivido, este é um livro de memórias sobre acontecimentos distantes no tempo – afinal, em 2004, tinham já passado 90 anos sobre o início da Grande Guerra e 86 sobre o seu fim. Mas, pela expressão destes homens (alguns tiveram que mentir quanto à idade para se alistarem e poderem participar) passa a condenação da guerra, a consciência de que se tratou de um tempo e de uma luta sem sentido (que eles fizeram). Alguns referiram mesmo a sua surpresa perante esta lembrança pois nunca o tinham querido fazer. Eles, que tiveram que lutar pela sua sobrevivência, ultrapassaram o século com o pesar de o seu sacrifício não ter servido para nada, nem sequer para acabar com as guerras… Pelo meio, há a evocação dos companheiros e algum humor quanto às condições de vida, como quando John Oborne (n. 1900) refere o caso dos piolhos que coabitavam nas trincheiras – “Eu não tinha piolhos. Os piolhos é que me tinham a mim. As costuras das calças eram o seu ninho – tínhamos de passar as costuras pela chama de uma vela. Lembro-me sempre, havia um tipo, quando estávamos a catar piolhos, que dizia: ‘Ah, pá, vou voltar a pôr-te na roupa e apanho-te amanhã, quando fores maior.’”
A referência à participação portuguesa é escassa – apenas Harold Lawton (n. 1899) refere de relance o Abril de 1918 e o martírio infligido aos portugueses para dizer que por isso teve que ir ocupar uma trincheira com alguns camaradas. A outra referência a Portugal é mais tardia e relaciona-se com a experiência na marinha mercante de Nicholas Swarbrick (n. 1898) – “Estive na Marinha Mercante nos anos vinte – a época perfeita para se estar no mar. Conheço muito bem Portugal e tínhamos quatro dias de três em três semanas e um dia ou dois em Lisboa e um dia na Madeira.”
Alguns destes sobreviventes preocuparam-se também com uma mensagem educativa, como foi o caso do já referido Oborne: “O que é que diria agora a um jovem de dezoito anos? Suponho que lhe diria: ‘No emprego, faz um bom trabalho e tem mais maneiras com as pessoas – sê mais educado.’ Uma data de jovens não têm maneiras hoje em dia. Acho que nunca serão chamados para uma guerra, mas, se o fossem, não tinham energias. Não iam conseguir aguentar o que nós passámos na Primeira Guerra Mundial. A juventude de hoje não aguentava.”

Frases vivas
Alfred Anderson (n. 1896): “Não quis reviver essas memórias. Acabou-se, já passou. Se tivesse ficado agarrado ao que aconteceu naqueles tempos terríveis, nunca teria vivido para chegar à idade que tenho hoje. Tento pôr tudo isso para trás das costas. Não tenho vontade nenhuma de reviver essas memórias. Mas o que vi e aquilo por que passei ainda me afecta, mesmo hoje. (…) Olhando para trás, pergunto-me: ‘O que é que ganhámos?’ Perdemos de certeza muito e, no entanto, voltámos à estaca zero. Acho que o homem combaterá sempre. A guerra é necessária, suponho, para resolver certas coisas – mas talvez haja um método melhor.”
Albert ‘Risonho’ Marshall (n. 1897): “Para ser franco, ninguém chegou muito longe. Tudo o que acontecia era morrerem dez ou vinte pessoas por razão nenhuma. Para chegar a lado nenhum. (…) Durante uma batalha, era impossível dizer quantos morriam de um lado e de outro. A única coisa que sabíamos era qual era o nosso papel. Podia estar a decorrer uma batalha terrível mesmo ali ao lado, mas não se sabia que o nosso melhor amigo morrera senão no dia seguinte. Só se sabia da parte da batalha que podíamos ver, o resto era apenas uma questão de bombas a rebentar aqui, a rebentar ali, a rebentar em toda a parte – e ninguém se livrava delas. Não interessava muito o que se fazia. Por isso, para dizer a verdade, não se pensava para além da zona em que estávamos. De vez em quando, as coisas acalmavam, mas ouvíamo-los disparar mais adiante. Sabíamos que havia gente a morrer, mas não sabíamos dizer quantos. Perdíamos gente todos os dias.”
Henry Allingham (n. 1896): “Pensando na primeira guerra, acho que não sabia o que esperar. Pensava que havíamos de ganhar – mas nunca esperei que tivéssemos de voltar a combater daquela maneira nos cem anos seguintes. Nunca esquecerei os meus camaradas, mas uma pessoa não pode deixar-se afundar nas coisas terríveis que aconteceram. Não se poderia continuar a viver, se fosse assim. Porém, em dias como o do Armistício, rezo por eles.”
Alfred Finnigan (n. 1896): “Não acho que o país em geral tenha apreço pela guerra. É uma coisa que aprendi em jovem, que a guerra – como todas as guerras – era uma coisa idiota. Absolutamente idiota e não gostei de ver os meus mais velhos a apoiarem aquele disparate. (…) Quando me casei, tomei conscientemente a decisão de nunca ter filhos – não estava disposto a fabricar carne para canhão para o exército ou para a indústria. Hoje em dia, não tenho paciência para políticos nem para governos – nem para qualquer forma de religião. Nenhum se saiu bem na Grande Guerra. As lições são ignoradas e a humanidade continua a cometer os mesmos erros. Recuso-me a ver televisão por causa da guerra, das más notícias e da porcaria que dá. Recentemente, sofri uma pequena operação aos olhos que me restaurou a vista, pelo que posso voltar a ler os meus livros. Prefiro manter-me à parte do que se passa hoje no mundo. A Primeira Guerra Mundial foi uma idiotice. Começou idiota e manteve-se assim. Era um disparate, tudo aquilo.”
Harry Patch (n. 1898): “Todas aquelas vidas perdidas para uma guerra que se resolveu a uma mesa. Diga-me lá se isto faz algum sentido. Era só uma discussão entre dois governos.”
William Roberts (n. 1900): “Olho hoje para trás e penso que a Grande Guerra não passa de treta política. Não devia haver guerra. Essa guerra foi uma data de maldita treta política.”
George Rice (n. 1897): “Tenha eu a opinião que tiver hoje, nessa altura essa era a minha função como soldado. Eles eram o inimigo e tinham de ser rudemente combatidos. Era eles ou nós; os sentimentos não entravam na conversa.”
Ted Rayns (n. 1899): “As coisas ainda me afligem, mas nunca falei muito acerca das minhas experiências de guerra. Hoje é duro de recordar. Foi tudo há tanto tempo!”

sábado, 30 de agosto de 2008

Agora, que o ano escolar está para começar...

Com data de 28 de Agosto, D. Manuel Clemente, bispo do Porto, publicou o texto “Um ano para educar, uma escola a redescobrir”, que é oportuno, não só pelo calendário em que surge, mas também pelas ideias que expõe, sobretudo depois do que foi a agitação do ano lectivo anterior. Apresento alguns excertos, mas o texto pode ser lido na íntegra aqui.
«(…) Educação significava acção formal e formativa, escola era instituição adequada a tal, família e docentes iam no mesmo sentido, sobre valores comuns e desejados. Actualmente, família e docência parecem menos consistentes, escola e educação são (in)definições mais trabalhosas. Estas questões têm um âmbito bem mais largo, que é precisamente o da sociedade e da cultura. - Concretamente quanto à escola e à educação, em especial as públicas, o que é que queremos todos para transmitir a todos, mesmo que só essencialmente falando? Creio que nenhum de nós saberá responder sem hesitar a esta questão, aliás a mais básica e directa… Chegámos portanto a uma aporia ou hesitação irremediável. E, quando isto acontece, qual beco sem saída, só nos resta uma solução, caso não queiramos desistir: voltar atrás e procurar outro caminho.
(…) Só nos restará então voltar à rotunda e sair por outra via. Assim estaremos, parece, sem perder nada dum passado que só no fim se mostrou insuficiente, dando-nos, precisamente nisso, o melhor contributo para o futuro. Mesmo para o futuro da educação em Portugal.
(...) É sabido como a figura do professor, sobretudo na viragem do século XIX para o XX, era tida como determinante para a formação de novas gerações laboriosas e progressivas. Quase substituía o sacerdócio antigo da divindade pelo “sacerdócio” novo da humanidade e do futuro. Depois, em termos menos românticos mas ainda iluministas, “abria” inteligências e adestrava engenhos, em saberes mais clássicos ou mais tecnológicos. O mundo estava aí como campo largo e a história projectava-se como caminho certo. O problema, magno problema, surgiu com a desilusão de guerras e pós-guerras, as suspeitas generalizadas sobre os reais intuitos de grandes e pequenos, as retracções consumistas dos antigos ideais e a dificuldade em mantê-los como horizonte, tudo isto junto e a fragilizar a figura e a convicção do professor remanescente. Numa escola que transmitia o saber adquirido, era deste lado que normalmente se situava o professor, como seu expositor e guardião. Numa escola onde se repercutam mais as dúvidas teóricas, ainda que metódicas, e as incertezas, ainda que de operação e ensaio, a natureza docente mudará também. Aliás, a sociedade actual manifesta uma relação ambígua com a escola. Compreende-se e advoga-se o seu papel de transmissão e inovação no campo dos saberes teóricos e práticos. Mas não se lhe dá o lugar central que pretenderia ter nesse sentido, quer porque a escola perdeu a reverencial proeminência anterior, quer porque a transmissão dos conhecimentos a extravasa, numa rede muito mais larga e omnipresente, informática sobretudo. Por tudo isto e além do mais, procura-se um outro enquadramento escola-sociedade e estamos longe da nova plataforma a alcançar. Entretanto, a transformação do sistema educativo traz ao professor custos e riscos. Tão inevitáveis como promissores, acrescente-se.
(…) É como sociedade aberta e dinâmica, do passado para o futuro, que nos devemos redefinir. Então também nos reencontraremos na escola, e muito especialmente aí. Longe de se desactualizar, ela obterá a máxima pertinência, mas como local onde de algum modo estejamos todos. Todos, porque a formação será obra da vida inteira, do pré-escolar ao “sénior”, aprendendo-se sempre, segundo a respectiva idade. Todos, porque em cada patamar de ensino se conjugarão as diversas instâncias da sociabilidade e da cultura: professores e alunos, auxiliares e famílias, instituições e ambientes, o meio próximo e o mais alargado. Que a escola e os que a fazem não se sintam postergados, mas valorizados pelo seu lugar central no conhecimento.
(…) De iniciativa pública ou particular, a escola não pode restringir arbitrariamente a proposta cultural, também no que à religião respeita. E insistindo sempre no carácter pessoal e personalista do processo educativo. Para os professores, seja qual for a matéria, trata-se de partilhar o saber que activamente “professam”. Há muito que sabemos como eles são tão importantes como o ensino que ministram, exactamente pela intensidade existencial com que o façam. Com tais professores, os alunos são mais facilmente envolvidos num processo geral de conhecimento em que já começam a ser protagonistas. Para realizar o bem comum, cabe ao Estado viabilizar uma escola assim, de iniciativa pública ou particular, distribuindo recursos e motivando sempre: segundo a vontade de todos e em benefício da coexistência e partilha de ideários e métodos legítimos. Legítimos pelo critério humanista (em prol da dignidade de cada pessoa humana), legítimos pela bondade realmente demonstrada (activando a solidariedade), legítimos pela real capacidade criativa (da ciência ao espírito). (…)
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Hoje, no "Correio de Setúbal"

Diário da Auto-Estima – 84
Manta Rota – O que pode justificar que uma discoteca ao ar livre, na praia, aberta até às cinco da manhã, tenha os decibéis apontados para as redondezas, num raio que ultrapassa o quilómetro e meio, obrigando todos os naturais residentes e os veraneantes em férias a suportar o festim noite fora? Há um ano, houve obras de requalificação no centro do lugar, que pertence à freguesia de Cacela, com presença ministerial; hoje, ao lado do espaço requalificado, há autorização para uma discoteca a funcionar em tais condições. O jet set passa por lá, as revistas sociais fotografam e embelezam, as pessoas protestam pelo desrespeito dos ruídos da noite e alguns jornais noticiam o desconforto. Nada contra a discoteca ou a diversão; tudo contra as condições. A culpa pode ser do soprar dos ventos, como alguém já alvitrou; mas essa situação era previsível (já se sabia que os ventos sopravam e que não o faziam sempre na mesma direcção) e, pelos vistos, não teve consideração. Falta de respeito, pois! Pela terra, pelas pessoas, pelo ambiente.
Tróia – Há três anos, o país parou para ver a implosão de umas torres em Tróia pela televisão e, em Setúbal, houve público bastante para assistir ao espectáculo que corria no outro lado do Sado. O próprio Primeiro-Ministro deu a sua mãozinha ao acontecimento, nele participando. Agora, vai ser inaugurada a primeira fase do complexo turístico. O Diário de Notícias foi reportar e o retrato não é muito feliz: é a nostalgia dos que para lá iam passar os dias de férias; é o descontentamento deste tempo de obras dos que lá têm residência; é o aumento de preços nas travessias sem se vislumbrar melhoria do serviço. Há também a esperança de que, com os milhões investidos e com os postos de trabalho a criar (directos e indirectos), a vida passe a ser melhor. Mas há, sobretudo, indefinições: Setúbal, por exemplo, vai usufruir deste investimento, oferecendo o quê? Que hábitos dos setubalenses vão mudar por força deste projecto? Os jornalistas do Diário de Notícias (em 16 de Agosto) chamaram a esta obra “o segundo fôlego de Tróia”. Oxalá não se fique apenas pelo pormenor dos números possíveis!
Números – Quando o Primeiro-Ministro, regressado de férias, foi dizer, no Norte do país, que pouco faltava para cumprir uma das metas do seu Governo, que era a da criação de 150 mil empregos, fiquei com a impressão de não ter ouvido bem. Os números do desemprego não baixaram tanto quanto isso e, por certo, o Primeiro-Ministro interessa-se e preocupa-se com o desemprego. Não era necessária a demagogia dos números… Comparando apenas os resultados (que não os métodos), faz-me lembrar aquela história da distribuição dos hipermercados que argumenta que, com a abertura nas tardes de domingo, serão criados mais uns milhares de postos de trabalho, sem ser dito quantos acabam em virtude desta luta entre o comércio da grande superfície e o comércio tradicional…
Demba – O semanário Expresso (15 de Agosto) descobriu Demba Diabaye, senegalês a vender bugigangas na praia da Costa da Caparica, que teve direito a curta reportagem com fotografia. E que ficamos nós a saber? Que Demba veio para Portugal fazer investigação sobre Garrett e sobre o Romantismo em Portugal com vista a uma tese de mestrado a defender na universidade senegalesa de Dakar, que vende bugigangas ao fim-de-semana para pagar as fotocópias da documentação que consulta na Biblioteca Nacional e na Biblioteca da Faculdade de Letras, que estuda a língua portuguesa há 11 anos. Tem um sonho – “Quero ser embaixador da língua portuguesa no meu país e trabalhar lá até chegar ao topo da carreira como professor”. Demba vai andar por cá até final de Setembro a alimentar o sonho. Bom exemplo e boa história em defesa da língua que é a nossa pátria, como Pessoa disse.

quinta-feira, 21 de agosto de 2008

Rostos (81)

Monumento a Juan Ramon Jimenez, em Huelva

Máximas em mínimas (32)

Os homens, as coisas e a vida
A vida dos homens, a sua transformação, é rápida, vertiginosa; a da terra, a das coisas, leva séculos e dá-nos por isso uma impressão de eternidade.
Américo Olavo. Na Grande Guerra. Lisboa: Guimarães & Cª Editores, 1919.

Rostos (80)

Ponto Negro, em Quinta do Conde (à saída da vila, na EN 10, na direcção do Casal do Marco)

Silhuetas como esta, de 3 metros de altura, foram colocadas pelo Governo Civil de Setúbal, em seis pontos de maior sinistralidade rodoviária no distrito, seguindo o critério de pontos que, em 2007, numa distância de estrada de 200 metros, tenham tido pelo menos cinco acidentes com vítimas. Números e casos para pensar!... A colocação das silhuetas, com a presença da governadora Eurídice Pereira, ocorreu no final de Julho.

As palavras de Maio lidas por Jean-Philippe Legois em "Les slogans de 68"

“No princípio era o verbo…” A frase é bíblica, mas relaciona-se com o livrinho Les slogans de 68, de Jean-Philippe Legois (Paris: First Éditions, 2008, verdadeira edição de bolso no formato 12 cm x 8,5 cm) e com a leitura que é feita dos slogans que animaram o Maio de 68, há 40 anos, em que a palavra gritada nas paredes teve, muitas vezes, a força da imaginação e da opinião e a visibilidade generalizada, além de, frequentemente, ser o uso da máxima, fosse ela de uma corrente de pensamento ou de um poema. Alguns slogans dessa altura tornaram-se célebres e correram mundo, mas nem todos tiveram essa sorte e, recorrendo aos arquivos, o investigador Legois relembra muitos deles e categoriza-os, se se pode chamar categorização ao estabelecimento de uma ordem temática, na tentativa de visitar o que foi o “esprit de Mai” e de fazer uma viagem “au cœur des mots de 68”.
E por onde passa essa viagem, que o mesmo é perguntar quais são os temas que Legois encontra, eles também definidores de um “espírito” e de um tempo? Pela ordem que são apresentados, tendo-se seleccionado um exemplo para cada um deles: ter opinião (“Interdit d’interdire!”); acção (“La barricade ferme la rue, mais ouvre la voie”); revolução (“Cours, camarade, le vieux monde est derrière toi”); utopia (“Oublier tout de que vous avez appris, commencer par rêver”); liberdade (“Tout pouvoir abuse, le pouvoir absolu abuse absolument”); educação (“Grâce à l’examen et aux professeurs, l’arrivisme commence à six ans”) ; trabalho (“En faisant la grève illimitée, les travailleurs ont fait la part des choses. Le bien-être: Oui. L’esclavage: Non.”); sexualidade (“Désirer la réalité c’est bien! Réaliser ses désirs, c’est mieux.”); herança cultural e ideológica (“Notre espoir ne peut venir que des sans-espoir”, frase de Walter Benjamin); auto-crítica (“Prenons la Révolution au sérieux, mais ne nous prenons pas au sérieux”).
No final, há ainda pistas para uma bibliografia sobre as “expressões efémeras” desse Maio – nomeadamente, a obra Paroles de Mai, de Michel Piquemal (Paris: Albin Michel, 1998) – e sobre interpretações do tempo em que este movimento ocorreu. Nas palavras finais de Legois, este livrinho não pretendeu ser mais do que uma “dégustation”…

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Minudências (28)

NOUTROS TEMPOS, A FRANÇA
Por mais que alguns espíritos orgulhosamente independentes o pretendam negar, a verdade é que, hoje, nós, os povos latinos, e muito especialmente o povo português, recebemos da França, inteiramente fabricadas por ela, as opiniões às quais sujeitamos o nosso modo de ver social, político e literário. É a França que nos fornece a literatura e a moda, a cozinha e a arte, as inovações democráticas e as mobílias, a devoção e o teatro, os cretones de que forramos as nossas salas e as ideias de que forramos os nossos cérebros. A pouco e pouco – impotência invencível ou criminoso desleixo? –, deixámos de ter o mínimo vislumbre de iniciativa nacional em qualquer destas importantes questões.
Maria Amália Vaz de Carvalho. “A propósito dos liceus femininos”. Cartas a Luísa.
Porto: Barros & Filha Editores, 1886, pg. 33.

terça-feira, 19 de agosto de 2008

Rostos (79)

Painel alusivo a D. João II (parte), no Jardim Tropical do Monte, na Madeira, por Alberto Cédron
(o acontecimento retratado ocorreu em Setúbal quando corria o ano de 1484)

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

O que tem Setúbal para mostrar de seu?

Esta é a pergunta que Brissos Lino faz na crónica que publica n'O Setubalense de hoje, sob o título "A peculiaridade como factor de desenvolvimento". A questão não é nova e uma pessimista resposta tem já pergaminhos na cidade, pois de há muito se diz que Setúbal é prejudicada pela rapidez e curta distância a que está da capital... Duvido que seja essa uma razão que explique a origem, embora admita que explique a consequência.
Brissos Lino menciona outras cidades bem próximas de Lisboa que apresentam vida própria (Almada e Montijo) e outras, no norte do país, bem próximas do Porto, que seguem igual via (Gaia, Guimarães e Braga). Assim atiradas estas cartas, o argumento estafado da proximidade relativamente a Lisboa cai...
Facto é que continuamente se ouve o lamento da falta de atracção que Setúbal tem apresentado. Talvez seja urgente uma reflexão sobre a identidade setubalense, talvez seja urgente uma análise sobre as linhas que têm conduzido esta cidade e esta região, talvez seja urgente...
Remeto para os dois parágrafos finais da crónica de Brissos Lino por me parecer que espelham algumas razões do problema, ao mesmo tempo que enunciam algumas pistas para reflexão.

Máximas em mínimas (31)

Liberdade
C’est la force et la liberté qui font les excellents hommes. La faiblesse et l’esclavage n’ont fait jamais que des méchants. (…) Je n’ai jamais cru que la liberté de l’homme consistât à faire ce qu’il veut, mais bien à ne jamais faire ce qu’il ne veut pas.
Jean-Jacques Rousseau. Les rêveries du promeneur solitaire, 1782.

domingo, 17 de agosto de 2008

Mário Zambujal: "Já não se escrevem cartas de amor"

O subtítulo “Um irrequieto enamorado na Lisboa dos anos 50” aposto ao romance Já não se escrevem cartas de amor, de Mário Zambujal (Lisboa: A Esfera dos Livros, 2008), abre perante os leitores o pano do que vai acontecer na narrativa logo quanto a três pormenores: a personagem, o tempo e o espaço.
Organizado em quinze capítulos, cujas designações resultam do tempo marcado no relógio, entre as 17h35 e as 23h45, o romance vai contando uma história em dois tempos, absolutamente necessários para que o último capítulo os una.
Pelas 17h35 daquele dia é já o lusco-fusco e Duarte, narrador participante, na onda dos seus quase 78 anos, espera, na companhia de Feliciana, que a mulher chegue de uma ida a Lisboa. Tal espera arrasta-se por cerca de seis horas, com preocupações pela demora, com temor pela noite invernosa que se pusera. Mas esse tempo é também o da lembrança e da memória, a pretexto do telefonema de um amigo de juventude, César de Mendonça, a convidar Duarte para a sua festa dos 78 anos, evento a que decide não ir não se fosse quebrar “o fio de recordações” em que via os outros convivas como rapazes, “sem a erosão das décadas posteriores”, todos da sua geração, que, na década de 50, eram jovens e gozavam o ambiente da capital.
O início de cada capítulo é marcado pelo tempo em que a memória se exerce, rapidamente passando a narrativa para o tempo memorado. Apenas o último capítulo, curto mas eficaz na surpresa e na rapidez com que resolve o fecho da história, se situa no tempo do presente. A narrativa da vida nos anos 50 ganha credibilidade com as referências históricas, sejam elas de origem política (actuação da censura e da PIDE, obras públicas), cultural (sucessos de Amália Rodrigues, cinema, literatura que se ia publicando) ou social (emigração a salto para França, marcas de produtos usados e anúncios, desporto, cafés de Lisboa, Casino do Estoril). Simultaneamente, vai correndo a história das paixões de Duarte, centrada sobretudo em duas personagens femininas, Erika e Nora, uma parecendo rumar para o desaparecimento, outra parecendo impor a sua presença.
A distância entre os tempos que alimentam este romance, assim como a sua caracterização, pode ser obtida através de dois exemplos surgidos da forma de comunicação: o agora, tempo de lembrança, em que “ela tem por hábito desligar o telemóvel mal entra no carro” e em que o narrador tenta “enganar a espera sem notícias espreitando o correio electrónico”; o antes, tempo de juventude do narrador, “em que se vivia sem telemóvel e [se sabia] esperar” e em que “grande novidade tinha sido a automatização da rede telefónica, [passando-se] a marcar os números em vez de pedir a uma telefonista a bondade da ligação”. Em algumas situações evocadas, o narrador chama a atenção do leitor para a diferença dos tempos, sobretudo no que se relaciona com os costumes, como se pode ver na referência aos chás-dançantes de final de tarde, em que o frequentador podia, caso não a levasse, procurar companhia feminina – “Sempre se sentia nos braços uma fêmea diferente, conforto menos trivial que actualmente. Quem não viveu essa época, ignora que apalpar a namorada na rua ou dar beijos glutões na boquinha dela era caso de polícia, por atentado ao pudor e à moralidade pública.”
A história presente em Já não se escrevem cartas de amor corre depressa, sobretudo centrada na acção, com algum humor e muitas memórias de uma vida na Lisboa de meados do século passado, (re)vividas por um dos seus possíveis protagonistas, nos caminhos da boémia, da cultura e da paixão. É um romance, mas podia ser um conjunto de histórias da Lisboa desse tempo. É um retrato, mas é também a nostalgia a invadir Duarte, que quis contar a sua história de amor.
Momentos da escrita
1. “O correio electrónico – Alucinante, o despacho desta correspondência. Não me apaga, porém, saudades do tempo em que se manuscreviam cartas e não só as cartas de amor. Nada mais pessoal que a caligrafia, a letra de cada pessoa é identificação e intimidade. Os próprios prosadores e poetas conquistados pela desenvoltura do computador não deixarão nos espólios o cunho da caligrafia, o testemunho dos retoques e emendas que ilustrem a criação das suas obras.”
2. “A serenidade e o silêncio desafiam a memória.”
3. “A memória prega-me partidas. Tanto apaga o que aconteceu há dias, ou minutos, como retém, com nitidez, factos e gente que o galopar dos anos condenaria a esquecer. O que nem sempre me traz é precisão de datas e a sequência real dos acontecimentos.”
4. “O tempo e as distâncias roem as paixões até ao osso.”

sábado, 16 de agosto de 2008

Azul & azul

"O mar, esse elemento que tão caprichoso se nos antolha e que todavia tão sujeito é ás leis pela Natureza dictadas, essa vastidão de aguas que umas vezes fascina como um abysmo e outras apavora como uma fera, mas que sempre nos causa admiração e sympathia, - o mar, estrada aberta á comunicação das terras e dos povos, esphynge que excita as elucubrações do philosopho e os devaneios do poeta, - o mar tem-se imposto desde remotas eras ao espirito do homem sempre que este se ha incontrado em presença das scenas maravilhosas de que as suas aguas são theatro."
in O Mar. Col. "Bibliotheca do Povo e das Escolas" (52). Lisboa: David Corazzi Editor, 1883.

sábado, 2 de agosto de 2008

Rostos (78)


"Primavera" e "Inverno", no Jardim das Laranjeiras (Lisboa)

Minho em ponto cruz por Nuno Neves



Ao olhar a capa deste Minho de Nuno Neves (Algés: Publicações Serrote, 2008), três recordações me assaltaram: os lenços de namorados e o seu genuíno e emotivo bordado num loquaz ponto cruz; o verde, tom dominante na paisagem minhota; uma citação de Miguel Torga no seu Portugal (1950) a propósito do recanto minhoto classificando-o como “bovino”.

Três motivações para se desenhar o Minho, pelo menos o Minho que o seu autor viu e guardou. Nuno Neves fez desta apresentação do Minho um trabalho original – os dizeres que traz ao visitante do seu livro são desenhos de temática minhota feitos em ponto cruz, por si construídos informaticamente. Ele próprio o diz em curta nota introdutória: “Depois de ter visto uma colecção de Lenços de Namorados de Vila Verde e ter feito algumas viagens pelo Minho, resolvi fazer estas ilustrações. Apliquei a técnica do ponto cruz num formato digital, desenhando pixel a pixel todas as páginas deste livro.” Está o leitor perante um trabalho artesanal, também, se escândalo não é misturar o artesanato com as modernas tecnologias...
Pelas páginas deste livro de ilustrações passam algumas das imagens que associamos à terra minhota: lenços de namorados, as bandas de músicos em barro e o galo de Barcelos, a “coca” monçanense, os “zés pereiras”, os “cabeçudos”, as juntas de bois, os espigueiros do Soajo, os trajos de pastor de Laboreiro (chancas e croça), a música popular, o sarrabulho, o vinho verde, a gastronomia, os recantos (farol de Montedor, por exemplo), a apanha do Sargaço (da Apúlia), o guerreiro das Terras de Basto, a filigrana, os cestos da Festa das Rosas de Vila Franca do Lima, as procissões em tempos de festa, as devoções (ex-votos de cera), a festa (na pirotecnia, por exemplo). É uma maneira bonita de se ver o Minho, original, ainda que talvez pudesse ter ido um pouco mais além dos estereótipos que uma certa visão turística tem propagandeado.
[fotos: capa do livro e desenho das mordomas que transportam os cestos de flores na Festa das Rosas,

em Vila Franca, na margem esquerda do Lima]





Hoje, no "Correio de Setúbal"

Diário da auto-estima – 83
Escola – O ano lectivo chegou ao fim com a sensação generalizada de que foi mais desgastante do que outros, sobretudo pelo caminhar que o caracterizou, numa discussão com muito pouco sentido que nem ajudou a que as coisas fossem justas. No final, umas sessões de formação apressadas vieram tentar atenuar a pressão da avaliação do desempenho docente, com leituras nunca antes admitidas, dando a entender que se trata de uma invenção e de um sistema que vai ser benéfico, que vai ser construído pelos envolvidos, com insistência em tónicas como a transparência, a clareza e a abertura. Para se chegar aqui, bem poderiam os responsáveis ter pensado na formação em mais oportuno tempo, evitando desgastes e pressões que não facilitaram o ano lectivo e ajudando as escolas a construírem a sua avaliação de forma sensata e cordata! Cá estaremos para ver as voltas que ainda vão acontecer e as justificações com que vão ser fundamentadas.
Saramago – Mesmo próximo do Palácio Nacional da Ajuda, o carteiro acabava o café e dirigia-se ao balcão para pagar o custo do seu intervalo, quando viu prospectos da exposição sobre Saramago que no dito Palácio se mostrava. “Ah, não sabia! Mas sabe se está aberta ao fim-de-semana?” O homem do bar acenou que sim. “Tenho que ir lá ver… Não que seja leitor de José Saramago, mas sempre é um Nobel português e do meu tempo… Tenho que lá ir!” E arrancou, a completar o giro que lhe fora destinado, com a promessa de que ainda visitaria o que de Saramago se exibia. Não sei se o carteiro chegou a ir visitar Saramago ao Palácio. Mas, se não foi, perdeu uma bela oportunidade de se aproximar da formação da escrita, do processo por que se constrói um escritor, num mapa de referências culturais, sociais, históricas, num quotidiano de pesquisa, de labuta, de criação, num caminho em que se cruzam o teatro, a crónica, o jornalismo, o conto, o romance, a epistolografia, a política, a cidadania, a arte, numa saga entre o manuscrito, o dactilografado, o emendado e o produto final que um livro é, numa abertura em que os testemunhos dos leitores entravam também.
Agustina – “Dicionário Imperfeito” é o título do primeiro volume da colecção “opera omnia”, que vai reunir a totalidade da obra de Agustina Bessa-Luís e também o título do seu mais recente livro (Lisboa: Guimarães Editores). Constituído por pensamentos e aforismos retirados de textos não ficcionais de Agustina, este livro, organizado por Manuel Vieira da Cruz e Luís Abel Ferreira, contém essências da trama agustiniana que muito ajudam a compreender as suas personagens e que constituem, além do mais, um bom conjunto de reflexões sobre o homem e o viver do século. Como exemplo, a citação sobre a “pequena sabedoria”: “Eu sabia pouco de tudo. Ainda hoje sei muito pouco de tudo, o que me causa embaraço quando vejo a tremenda bagagem de conhecimentos que têm as pessoas. Se ouvirmos tudo o que se diz nos autocarros, nas praias, nas repartições, ao fim do dia podíamos escrever uma enciclopédia em vinte volumes e até ter êxito com ela. Não há nada de mais aceitável do que a pequena sabedoria, os amores confessáveis e as histórias de doenças.”
Se eu e tu – Os meus alunos fizeram tercetos a propósito de um poema com este título, de João Pedro Mésseder. Agora, em fase de arrumações, tropecei em alguns. Reproduzo três: “Se eu fosse água e tu fosses fogo / abraçava-me a ti / sem nunca te apagar.”; “Se eu fosse sol e tu fosses lua / iluminaria a tua noite / mesmo em dias de tempestade.”; “Se eu fosse folha e tu fosses árvore / amava-te para sempre / até cair aos teus pés.”

sexta-feira, 1 de agosto de 2008

"Magazine Reportagem" (nº 1) com a "chincha" em Sesimbra

“Chincha – A arte xávega sesimbrense”, com fotografias de Rui Cunha e texto de Vanessa Pereira, é o trabalho que dá corpo ao primeiro número de Magazine Reportagem, datado deste mês de Agosto. A revista tem 12 páginas, é ocupada apenas pelo texto referido e, na sua capa, apresenta a periodicidade como mensal e um subtítulo que diz muito das intenções que lhe presidem: “O mundo à frente das objectivas”.
«S. Pedro arrastava da terra para o mar e só apanhava banhistas. Um dia Deus desceu à terra e disse-lhe: ‘S. Pedro, experimenta fazer ao contrário. Lança a rede ao mar e puxa-a para terra se queres ver o que é peixe!’» Assim começa a reportagem escrita, numa história contada por um dos mestres sesimbrenses, Serafim Painho, em jeito de explicação para a origem da arte xávega local. Forma de pesca artesanal, a chincha é assim apresentada: «Numa aiola (pequena embarcação típica de Sesimbra), três homens fazem-se ao mar para lançar uma rede em forma de saco, onde se acumula o peixe, que, no areal, os restantes pescadores puxam para terra através de dois cabos (as asas do saco), à força de braços.” Depois, fotografias e texto completam-se – umas, porque mostram expressões, ilustram e levam o leitor até lá; o outro, porque conta a história de pessoas, deixa perpassar o sentimento e apresenta homens que enfrentam a sorte e o mar com as suas mãos, a sua teimosia, a sua força, não faltando a marca da fé no patrono, Senhor Jesus das Chagas.
A publicação é dirigida por Rui Cunha, fotógrafo de Sesimbra. Algumas das fotografias e uma outra versão do texto tinham já sido publicados na blogosfera.