sexta-feira, 27 de novembro de 2009

José Fanha veio à Escola

Hoje, foi dia de José Fanha na Escola. Já lhes tinha lido vários textos do poeta, designadamente de A porta (Alfragide: Gailivro, 2009) e de Diário inventado de um menino já crescido (4ª ed. Alfragide: Gailivro, 2009), excertos que mexeram com eles, na ondulação dos sentimentos e da leitura. Hoje, foi dia de José Fanha na Escola, uma década depois de aqui ter estado com Francisco Fanhais (em Junho de 1999) numa actividade que celebrava o 25º aniversário da instituição.
José Fanha veio à Escola com o Pedro Reizinho (setubalense, com dois livros infantis publicados, editor de obras de sucesso). Ouviram-no com atenção e participaram nos desafios. O poeta contou histórias, leu poemas (seus e de outros – de António Lobo Antunes, de António Ramos Rosa, de António Jacinto, de João Roiz de Castelo Branco, de Ary dos Santos, de Lawrence Ferlinghetti). E os alunos riram, ouviram, participaram. E Fanha aconselhou sobre necessidade de ler, de ler, de ler (e também de ter cuidado com as informações da net, muitas delas falsas). E houve palmas. E sempre poesia. E houve apontamentos biográficos – “Vou contar-lhes a história deste livro, de um jovem de um tempo em que não se mamava e não se comia a ver televisão”, a lembrança da avó, as pinturas do filho parecido consigo “30 quilos atrás”. E houve atenção e sorriso. E autógrafos. E alunos contentes e surpreendidos.
À noite, a mensagem de uma mãe (de um jovem que não é meu aluno) para o telemóvel: “Obrigada pelo momento proporcionado hoje na escola. O meu filho não pára de falar dos poemas, das histórias e da maneira diferente de as contar.” Ora ainda bem! A poesia faz disto: imiscui-se, infiltra-se e faz com que se manifestem. Com a ajuda do artista, claro! E o agradecimento vai direitinho para o José Fanha… Creio que muitos destes alunos recordarão com prazer o tempo em que estiveram no anfiteatro a ouvir literatura.

Rostos (137)

Pelourinho, no Soajo (Arcos de Valdevez)

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

"ViVER Setúbal" - Os roteiros de uma exposição (3)

Viver Setúbal. Uma forma de ver a cidade
- Notas críticas a um roteiro (II)

por Carlos Mouro
IV. No segundo volume do roteiro há mais um infeliz parágrafo (seguindo, aliás, o texto original), em referência ao Fórum Municipal Luísa Todi: “Foi inaugurado em 1960, durante as comemorações do Centenário da elevação de Setúbal a Cidade. Substituiu o Teatro Rainha D. Amélia, demolido em 1956, depois de 68 anos ao serviço da cultura setubalense.” (p. 4). O que foi inaugurado em 1960 foi o cine teatro Luísa Todi e não o Fórum Municipal! O velho teatro D. Amélia (e não Rainha D. Amélia), arquitectado por Nicola Bigaglia, fora inaugurado a 1-8-1897. Os republicanos rebaptizaram-no como teatro Avenida. Depois, em 1915, por iniciativa da Academia Sinfónica de Setúbal, que ali se instalara, passou a ostentar o nome da Todi. Assim foi até à demolição, em 1956. No mesmo espaço ergueu-se, com traça de Fernando Silva, um moderno cine teatro, inaugurado a 24-7-1960. A 21 de Abril de 1989 o imóvel foi adquirido pela CMS que o transformou em Fórum Municipal, sob o patrocínio, ainda, da celebrada cantora lírica sadina Luísa Rosa de Aguiar Todi (1753-1833).
V. Logo a seguir há novas confusões, desta feita a propósito do Club Setubalense. Lemos ali que “O seu primeiro nome – Grémio Setubalense (de inspiração britânica) – foi substituído em 1898, devido ao mal-estar criado pelo Ultimato Inglês” (p. 6). O ainda existente Club Setubalense foi fundado em 1855, sucedendo à Sociedade de Recreio Familiar, de 1850. Certo. A embrulhada vem depois (até porque não foi seguido o texto original, que está correcto). O primeiro nome daquela associação foi Club Setubalense – designação, esta sim, de inspiração inglesa. Aquando do Ultimatum de 11-1-1890, entre outras reacções de protesto face à atitude britânica, o vocábulo ‘Club’ foi, frequentemente, substituído por ‘Grémio’ ou ‘Centro’. O grupo setubalense não perdeu tempo e, em Fevereiro de 1890, adoptou a designação de Grémio Setubalense. Assim se manteve até 10-2-1898, quando os associados deliberaram repor a primitiva designação, a que hoje subsiste: Club (e não Clube) Setubalense.

As duas notas com imprecisões
VI. Na página seguinte escreveu-se, a propósito do monumento a Luísa Todi: “Inaugurado logo após a sua morte em 1933”. De facto, o monumento em causa foi inaugurado em 1933. Luísa Todi, porém, morrera 100 anos antes! Aliás, a construção daquela simples memória pretendeu celebrar, localmente, o nome da cantora quando se cumpria o I Centenário da sua morte, ocorrida a 1-10-1833.
VII. Na legenda da segunda fotografia dessa página lê-se: “Américo Ribeiro – Construção da glorieta a Luísa Todi, 1938”. Como explicar a discrepância de datas? Sucede que em 1933 o singelo monumento foi inaugurado no lado nascente do Parque das Escolas (hoje Largo José Afonso). A fotografia, porém, regista a reconstrução daquele, após a transferência do espaço inaugural para o local em que todos o conhecemos – na Av. Luísa Todi, nas proximidades da Praça de Bocage, no que foi popularmente conhecido por Jardim dos Gatos – o que ocorreu, de facto, em 1938.
Notícia e fotografia do monumento a Luísa Todi

VIII. Na página 8 lê-se que a Fonte Luminosa é conhecida como Fonte do Centenário. Preferíamos, por nos parecer mais correcto, ler ali o contrário: Fonte do Centenário, mais conhecida por Fonte Luminosa. Ainda assim, a fórmula adoptada é mais feliz do que uma outra que circula com frequência, apelidando aquele monumento de Fonte das Ninfas.
IX. Nos pequenos roteiros, bem como nos mapas que os acompanham, há outros lapsos menores. Nos textos que lhes serviram de base há, também, alguns. Citemos apenas um, tirado de "As elites d’ouro branco – de Santa Maria a Bocage". A certo passo, escreveu-se: “…a 4 de Outubro de 1910, às 21 horas, quando anarco-sindicalistas, socialistas e republicanos incendiaram os Paços do Concelho e mutilaram a antiga fonte do Sapal…”. De facto, o antigo edifício municipal foi incendiado na noite de 4-10-1910, após escaramuças entre populares e forças da ordem. Entre aqueles haveria, admitimo-lo, anarquistas, socialistas, republicanos… Corrija-se, apenas, um lapso que é comum, aliás. A mutilação da magnífica fonte do sapal (hoje reconstruída na Praça Teófilo Braga) teve lugar na noite de 11-12-1910 quando um mestre da armada, de nome Júlio Marques, num momento de exaltação revolucionária, tentou apear o escudo e a coroa – símbolos da realeza deposta – que encimavam a artística fonte. A operação correu mal. Júlio Marques foi gravemente atingido pelas pedras que tirava com uma corda. Faleceu, no hospital local, a 13 daquele mês e ano.

Referência à Fonte do Centenário



O leitor emendará outros pequenos lapsos que ali existam. As incorrecções que inventariámos, e a natureza das mesmas, são suficientes para que lamentemos, entre a tristeza e a incredulidade, os lapsos registados. Com trabalhos deste quilate, como se promoverá Setúbal e a região que a envolve, junto de autóctones e de forasteiros?Para que esta prosa não termine de modo tão desencantado queremos deixar uma palavra de elogio ao grafismo dos roteiros elaborados, seguindo a linha de toda a exposição. Gostámos. Apreciámos, ainda, a solução encontrada para mostrar o património construído setubalense, captado pela objectiva de Américo Ribeiro (ou de outros que, em Setúbal, o precederam) em confronto com imagens actuais dos mesmos lugares, construções ou monumentos, apresentados numa composição francamente atractiva.

"ViVER Setúbal" - Os roteiros de uma exposição (2)

Viver Setúbal. Uma forma de ver a cidade
- Notas críticas a um roteiro (I)
por Carlos Mouro
Entre Junho e Setembro puderam os setubalenses apreciar, na sede da AERSET e, depois, na casa da Sociedade Musical Capricho Setubalense, uma exposição intitulada "Viver Setúbal. Uma forma de ver a cidade", da responsabilidade da Sociedade SetúbalPolis. Na ocasião foram editados três pequenos roteiros, organizados em torno de outros tantos percursos pela História e património setubalenses – Do Largo de Jesus ao Largo da Fonte Nova (1.º), Avenida Luísa Todi (2.º), Da igreja de S. Julião à igreja de Santa Maria (3.º) – com textos adaptados de outros, da responsabilidade de técnicos do Museu de Setúbal/Convento de Jesus, também editados, em separado. Com a desmontagem daquela exposição desaparecerá o que de bom e de menos bom se expunha. Pelo contrário, os roteiros impressos manter-se-ão, perpetuando o que de bom e de mau encerram. Justificam-se, pois, estas notas corrigindo erros grosseiros com que ali nos deparámos.
I. No primeiro caderno somos surpreendidos por uma inaudita versão da conhecida lenda sadina que narra a origem da freguesia de Nossa Senhora Anunciada: “Reza a lenda da criação desta igreja que uma peixeira pobre estava a assar cavalas quando uma delas saltou do fogo. Depois de várias tentativas para a assar, a peixeira apercebeu-se de que a cavala era, afinal, uma imagem de Nossa Senhora.” (p. 7). O disparate já foi notado por João Reis Ribeiro que o causticou no seu “Diário da auto-estima” (Sem Mais – Jornal, 13-6-2009). Interrogamo-nos, também: Onde desencantaram tamanho disparate? Para mais, o desconhecimento andou de braço dado com a distracção já que, na página seguinte do opúsculo, se transcreve a versão correcta da lenda, sem referência a cavalas, cavalinhas ou qualquer outro teleósteo.

A lenda da Senhora da Anunciada com a leitura errada


II. Na página 9 há novo descuido na legenda da segunda fotografia. O espaço urbano registado por Américo Ribeiro, no cliché reproduzido, não se designa (nem nunca se designou) por Largo dos Combatentes. Denominou-se, antigamente, Largo das Almas. Com a República – em homenagem ao vice-almirante Cândido dos Reis (1852-1910), mentor, chefe e mártir da Revolução de 5-10-1910 – passou a conhecer-se por Praça Almirante Reis.

A foto com o monumento aos Combatentes e a legenda imprecisa


III. Logo na página seguinte – em capítulo intitulado, vá lá saber-se porquê, “Os caminhos de Roma” – refere-se o pelourinho de Setúbal: “Originalmente construído para a Praça da Ribeira (antigo Largo da Ribeira Velha) e depois de duas deslocações, o pelourinho é reconstruído na época de D. José I. Por representar o poder do Duque de Aveiro, o antigo símbolo local foi mandado demolir e construiu-se um novo, aproveitando a coluna antiga. (…). No cimo da coluna está o capitel de estilo coríntio trazido de Tróia”. O pelourinho que se ergue na Praça Marquês de Pombal foi construído para aquele lugar e não para o Largo da Ribeira (hoje Largo Dr. Francisco Soveral), como se depreende da leitura do citado parágrafo. Depois, são referidas “duas deslocações” que aquele vetusto símbolo terá sofrido. A que deslocações se referem os autores? Mais: no pelourinho levantado em 1774, não se aproveitou a coluna do anterior, nem o capitel que a encima proveio de Tróia. O que veio daquela península, o elemento romano daquela construção, é, precisamente, a coluna e não o capitel como, erradamente, querem os autores do roteiro (este particular aspecto consta do texto original).

O texto impreciso sobre o Pelourinho

(continua)

"ViVER Setúbal" - Os roteiros de uma exposição (1)


Entre Junho e Setembro, Setúbal pôde visitar a exposição “ViVer Setúbal - Uma forma de ver a cidade”, promovida pelo Programa Polis, primeiro no antigo edifício do Banco de Portugal e, depois, na sede da Sociedade Musical Capricho Setubalense.
A exposição, coordenada por Isabel Victor e Bruno Ferro, sobre fotografias de Américo Ribeiro e de Ricardo Cordeiro, teve a acompanhá-la a edição de três roteiros: “Do Largo de Jesus ao Largo da Fonte Nova” (1), “Avenida Luísa Todi” (2) e “Da Igreja de S. Julião à Igreja de Santa Maria” (3), todos com textos de Patrícia Silva Alves e de Paula Castro Rosa. Os textos destes roteiros partiram de outros textos, também publicados: “Da tentação à redenção – Os caminhos do Troino”, de José Luís Neto, “Avenida Luísa Todi”, de Francisca Ribeiro, e “As elites d’Ouro Branco – De Santa Maria a Bocage”, de José Luís Neto, respectivamente.
As informações que constam no texto dos roteiros padecem de algumas falhas inexplicáveis. O problema é que essas foram as publicações mais distribuídas e que ficarão para informar. E um erro, quando escrito, tem tendência a propagar-se… além de ser um atentado à memória.
Com a devida autorização, transcrevo, em duas partes, a opinião de Carlos Mouro, investigador e autor de obra sobre a história de Setúbal, por constituir uma reposição da verdade em informações que não denota(ra)m esse cuidado.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Intervalo (16)

Filosofia para a vida
Um professor, durante a sua aula de Filosofia, sem dizer uma palavra, pega num frasco de maionese, esvazia-o... e enche-o com bolas de golfe. A seguir, pergunta aos alunos se o frasco estava cheio. Os estudantes respondem que sim. Então, o professor pega numa caixa cheia de caricas e mete-as no frasco de maionese. As caricas enchem os espaços vazios entre as bolas de golfe. O professor volta a perguntar aos alunos se o frasco está cheio e eles voltam a dizer que sim. Então... o professor pega noutra caixa... cheia de areia e esvazia-a para dentro do frasco de maionese. Claro que a areia enche todos os espaços vazios e, uma vez mais, o professor volta a perguntar se o frasco está cheio. Nesta ocasião os estudantes respondem unanimemente um "Sim!". De seguida, o professor acrescenta duas taças de café ao frasco e claro que o café preenche todos os espaços vazios entre a areia. Os estudantes, nesta ocasião, começam a rir-se...mas reparam que o professor está sério e diz-lhes:
- Quero que se dêem conta de que este frasco representa a vida. As bolas de golfe são as coisas importantes como a família, os filhos, a saúde, os amigos, tudo o que os apaixona. São coisas que, mesmo que se perdêssemos todo o resto, manteriam cheias as nossas vidas. As caricas são as outras coisas que importam, como o trabalho, a casa, o carro, etc. A areia é tudo o demais, as pequenas coisas. Se puséssemos primeiro a areia no frasco, não haveria espaço para as caricas nem para as bolas de golfe. O mesmo acontece com a vida. Se gastássemos todo o nosso tempo e energia nas coisas pequenas, nunca teríamos lugar para as coisas realmente importantes. Prestem atenção às coisas que são cruciais para a vossa felicidade. Brinquem ensinando os vossos filhos; arranjem tempo para ir ao médico; namorem e vão com a vossa/vosso namorado/marido/mulher jantar fora; pratiquem o desporto ou hobby favorito. Haverá sempre tempo para limpar a casa e reparar as canalizações. Ocupem-se das bolas de golfe em primeiro lugar, das coisas que realmente importam. Estabeleçam as vossas prioridades, o resto é só areia...
Um dos estudantes levanta a mão e pergunta o que representava o café. O professor sorri e explica:
- O café é só para vos demonstrar que não importa o quanto a vossa vida esteja ocupada, porque sempre haverá espaço para um café com um amigo.

OBS: Texto cuja autoria desconheço, enviado por amigo. Num tempo como o nosso, esta história tem o seu quê de ensinamento...

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

"O destino do Capitão Blanc", de Sérgio Luís de Carvalho



Quando lemos O destino do Capitão Blanc, de Sérgio Luís de Carvalho (Lisboa: Planeta, 2009), ficamos de imediato marcados por essa palavra “destino”, que nos é cara na tradição literária portuguesa; depois, podemos associar a ideia ao subtítulo que o livro apresenta – “A missão e a paixão de um militar português na Primeira Guerra Mundial” – e o puzzle começa a compor-se.

Neste romance, o leitor acompanha cerca de quatro meses da vida da personagem Luís Blanc (se exceptuarmos as indicações sobre o seu passado, dadas por analepse), ocorridos entre o início de Agosto e o final de Novembro de 1918, em torno de uma missão para que o militar foi destacado na Flandres (e que lhe decidiu o destino), onde o Corpo Expedicionário Português (CEP) participava na guerra de trincheiras.
É curioso que o sentido de missão, bem como a história desta personagem, se vão alicerçar sobre o momento em que o CEP já perdera alguma da sua identidade. Porém, o facto de sabermos que a história desta guerra já se aproximava do final confere a este romance também a possibilidade de se fazer a leitura de uma história que se vai construindo sobre ruínas, marcada por uma verosimilhança caucionada ora pelos encontros que podemos fazer com o que da literatura memorialística da participação portuguesa na Grande Guerra ficou, ora pelo roteiro geográfico que a personagem percorre e pelas figuras (Tamagnini e Hélder Ribeiro, por exemplo) e momentos históricos com que se cruza (as notas bibliográfica e cronológica, que constam no final, asseguram essa ligação entre a ficção e a realidade).
O destino realiza-se nesta história com um à-vontade assinalável, encarregando-se de construir um final para cada personagem, seja para o inimigo antigo ou para o pai de Blanc, seja para a enigmática Emma, seja para o próprio Blanc. É um romance de desgosto e de decepção, com um final difícil de prever, mesmo na história de amor em que os apelidos Blanc (dele) e White (dela) pareciam prognosticar um final feliz pela coincidência dos apelidos.
Profundo é o que fica da experiência de guerra. E vale a pena lembrar episódios como o da destruição em Mont Sec, o da associação entre os amotinados e os “cães lazarentos”, o da morte que espera um herói vestido com a “farda principal, cheia de alamares e de dourados, de dragonas e distinções” a pouco mais de uma hora do fim da guerra ou a reflexão sobre o que ficaria do que foi essa (aquela) experiência logo que um filho perguntasse a um dos combatentes algo como “pai, o que é que fizeste na Grande Guerra?”
É o absurdo da guerra. Na sua realização, na participação, nos sentires, nas reflexões sobre a vida. É o absurdo do condicionamento da liberdade, do pensamento e da palavra. Tudo passando neste romance, eivado de ironia, efeito que é muito ajudado pelos comentários entre parênteses que entremeiam alguns parágrafos, ora como extensões do narrador ou das personagens, ora suscitando no leitor a vontade de acompanhar a reflexão.
A literatura portuguesa do século XXI contribuiu já com alguns bons títulos de ficção que tomaram como tempo e como cenário a participação portuguesa na Grande Guerra. O destino do Capitão Blanc, de Sérgio Luís de Carvalho, é um deles, que vem integrar esse rol em que já constavam obras como A filha do Capitão (de José Rodrigues dos Santos, 2004) e Memória das estrelas sem brilho (de José Leon Machado, 2008).

Sublinhados (por ordem de entrada na obra)
“Um campo de batalha não é um bom sítio para termos atrás de nós alguém que queira saldar contas antigas.”
“Ninguém olha para trás quando sai de uma trincheira para a retaguarda porque não lhe sente a falta, mas ninguém olha para trás quando sai de uma trincheira avançando para um ataque porque lhe sente a falta em demasia.”
“A busca ansiosa de heróis é timbre das grandes derrocadas.”
“Por mais teso que um gajo seja é sempre na mãe que fala quando está mesmo a morrer.”
“Os ratos são dos poucos a tirar bom partido desta guerra, para além dos banqueiros, dos empresários, dos piolhos, dos políticos oportunistas e dos fabricantes de armamentos, claro está.”
“O mundo tem, de quando em vez, umas surpresas que quebram o curso ordenado das coisas esperadas.”
“Estas coisas das revoltas são, como se sabe, muito contagiosas, sobretudo se há razões de sobra para isso.”
“Até o cão mais pacato se farta dos maus tratos.”
“É de lendas que se faz a fama de homens e de bichos.”
“As más notícias são sempre intemporais.”
“O melhor é viver um dia de cada vez. Aprende-se isso depressa, numa guerra…”
“Convém ter medo… Foram homens sem medo que conduziram o mundo a esta loucura… As pessoas decentes e sensatas, essas, costumam ter medo.”
“Pode-se acusar a morte de muita coisa, mas não de ser inesperada; está lá sempre, nós é que passamos o tempo a esquecer isso.”
“Um tipo tem de se defender de desilusões, senão damos em doidos.”
“Por vezes, a realidade é uma coisa muito inconveniente.”
“As coisas têm o seu tempo. Depois passam. Tudo passa.”
“Traição ou glória são coisas bastante relativas.”
“Esta guerra faz-nos pensar em tanta coisa, faz-nos tantos amargos de boca, que creio bem que dela nem os vivos sairão sobreviventes.”
“Em guerra, tal como durante a noite, uma pessoa faz coisas e diz coisas que não faria nem diria em tempo de paz ou à luz do dia. É a noite. E é a guerra. Estas duas coisas são muito manhosas.”
“As coisas, mesmo as do passado, sabem-se sempre.”
“Os rancores e as raivas acumuladas mais não são que merdices que nos encaganitam a vida e de que a morte se ri como uma alarve.”
“Mesmo assobiado e mesmo desafinado, hino nacional é hino nacional e com os pátrios brios nunca se brinca.”
“A verdade é uma coisa dura de se ouvir e, por vezes, muito pouco conveniente.”
“Ao menos a terra e a guerra não nos pregam mentiras. São o que são e mais nada. Para o mal e para o bem, a gente sabe com o que pode contar.”

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Rostos (136)


Em Setúbal, na Rua da Velha Alfândega

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

"Papel a mais" - Convite

Um dia, ao entrar na livraria setubalense Culsete, manifestei a estranheza por não estar no escaparate nem um exemplar de uma qualquer obra daquelas que, tão vertiginosamente como aparece, desaparece e ninguém a fica a lembrar. Já não recordo o título, confesso, mas tinha lugar marcado em todas as montras de livrarias e papelarias, aqui ou ali, em Setúbal como em Lisboa. Resposta do Manuel Medeiros: "Livros é que eu quero, não é papel..." Percebi, achei piada à resposta. Nesta repentista tirada reflectia-se o pensamento de uma profissão e de uma vida. E, agora, aí está Papel a mais, que não conta esta história (insignificante, claro!), mas conta outras que ajudam a perceber a consistência de uma tal resposta.
Este Papel a mais, de Resendes Ventura, poeta acumulado com Manuel Medeiros, livreiro em Setúbal, é um caso. De leitura, de reflexão, de partilha e de vida. Bem poderia o autor chamar-lhe, pedindo o título emprestado a Régio, "O meu caso"... É leitura obrigatória para quem goste de livros, de memórias, de testemunhos, de se cruzar com outros nomes grados das letras, de poesia, dos Açores, do ensaio, dos momentos em que se pensa a vida. O convite aí fica, pois!

domingo, 15 de novembro de 2009

Máximas em mínimas (52)

Raivas e risos
"Os rancores e as raivas acumuladas mais não são do que merdices que nos encaganitam a vida e de que a morte se ri como uma alarve."
Sérgio Luís de Carvalho. O destino do Capitão Blanc. Lisboa: Planeta, 2009, pg. 235.

"Aprender contigo", uma antologia de poesia da APPACDM

Em 2006, a APPACDM de Setúbal procedeu à apresentação pública de uma antologia intitulada Um olhar diferente, que reunia os premiados de uma década de poemas e de concursos de escrita levados a cabo pela instituição. Mais três anos passaram e a mesma APPACDM mostra que não só insistiu no certame mas também o alargou ao público escolar, de modo a que também os jovens dissessem dos seus diferentes olhares sobre a realidade da vida, ainda que agora sob o tema “Aprender contigo”.
E neste livro [Aprender contigo - Três anos de poesia (2006-2008). Coimbra: Temas Originais, 2009] está a partilha de mais três anos de reflexões, mais três anos de refúgios de escrita, mais três anos de dádiva, que congrega cerca de 50 textos, numa mensagem contra a indiferença e numa vertigem que nos obriga a olharmos para nós.
Estes textos são apenas uma parte dos muitos que apareceram. Este concurso tornou-se um evento com calendário marcado e esperado e é motivação forte para muitas vozes. Nesta antologia surgem apenas os textos contemplados com prémio ou com menção honrosa, amostra do vasto conjunto de missivas que chegaram, pontuada pelas preferências dos júris e por sentidos de vida.
Viajamos nestes poemas e confrontamo-nos com uma ecologia do sentir, em que cada poeta peregrina por si dentro para descobrir que com o outro aprendeu a ingenuidade, o saber esperar, o ser diferente, o dizer obrigado, o olhar para o lado, a dádiva, a generosidade, a alegria. Fica-se com a sensação de que foi preciso um confronto com este outro para se aprender algo que é natural, algo que andava cá dentro mas que não tinha sido descoberto, para aprender a simplicidade de viver.
E o mundo, como a vida, oscila em torno de sensações ou aprendizagens fortes, sejam elas as da dura realidade ou as da contemplação da natureza. Como não nos sensibilizarmos perante um poema de aprendizagem como “Fana”, em que se descobre a docilidade e as raízes de uma amizade? Como não alinharmos numa pequena fábula como a do poema “Historinha curta” em que se vislumbra o que aprender com os outros, mesmo quando são mais pequenos? Como ficar perante uma poeta que se confessa mãe, dizendo: “Que mais, meu filho, tu terás para me ensinar? Quero até aprender a esquecer a revolta tão contida… Ensina-me, meu amor, meu querido professor, meu exemplo de vida!”? Como ficar? Ou como não aderir a um caminho em que com o outro há lugar para “aprender coisas novas, o arco-íris procurar e para além dele ver o sol brilhar”?
São possíveis balizas as que acabo de indicar. Mas que só valem como figuração, como símbolo, como apelo à procura a fazer por cada um. Ou, como é dito noutro poema, “aprender contigo é uma luz para me encontrar”. E é esse um encanto deste livro: a disponibilidade de cada poeta para ir ao seu próprio encontro, para descobrir o que pode significar uma partilha do mundo com o outro, para descobrir o que de si deve ao outro. Tudo numa linguagem muito simples, onde se nota que os poemas são construídos sem outra pretensão que não seja a da partilha, a da alegria de viver nos outros ou com os outros.
[Na apresentação pública do livro, ocorrida ontem, no Salão Nobre da Câmara Municipal de Setúbal]

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Gonçalo M. Tavares envia "biblioteca" para leitores de Palmela

Gonçalo M. Tavares passou, a partir deste mês, a partilhar os seus apontamentos de “Biblioteca” com leitores através da Biblioteca Municipal de Palmela, num processo que pode envolver escritos de ambas as partes.
Em cada mês, Gonçalo M. Tavares enviará dois textos inéditos para serem divulgados pela Biblioteca de Palmela. Aos leitores é sugerido que produzam um texto-resposta (que pode assumir a forma de apontamento, poema, desenho, ilustração, etc.), devendo o mesmo ser entregue em qualquer dos pólos da Biblioteca palmelense. Posteriormente, os leitores serão convidados a participar num “Curso de Leitura e Imaginação” orientado por Gonçalo M. Tavares.
Para o mês de Novembro, o desafio parte de textos sobre Alexandre O’Neill, podendo ambos ser encontrados aqui.

"Papel a mais" - memórias e saberes de um livreiro (I)

“Quando optei por trabalhar a tempo inteiro na leitura, a escrita tornou-se papel a mais na minha vida.” Assim justifica Resendes Ventura (pseudónimo de Manuel Pereira de Medeiros) a sua mais recente obra, intitulada Papel a mais – Papéis de um livreiro com inéditos de escritores (Lisboa: Esfera do Caos, 2009).
Fico-me, por agora, pela introdução ao livro. Que não é tão curta quanto isso. Cerca de meia centena de páginas a justificar uma vida. Ou a explicar como um livreiro não pode existir sem ser leitor e, por vezes, a ser também escritor. Aliás, as três funções podem coexistir porque se sabe ser “confortável que escritores, editores e livreiros se sintam a viajar num mesmo barco para o país da leitura”.
Este texto é uma incursão pela memória, uma abordagem autobiográfica na viagem pela leitura dinamizada e possibilitada e pelas leituras feitas. Participa o leitor no que foi uma experiência dedicada à leitura nas suas várias frentes, no que foi (é) a história da acção de uma livraria (a Culsete) numa cidade como Setúbal no que à leitura respeita, no que foi um trajecto pessoal desde uma infância leitora no encanto açoriano até à acção em prol da leitura, com passagem pela experiência da escrita poética e com paragens em projectos de revistas ou de livrarias outras. Leitura, escrita, livros, tudo com os seus tempos, ganhando sentido nesta arrumação de “papel a mais”.
Nesta viagem, sentimos também muitas provocações, que são, sobretudo, um questionar o mundo do livro e da edição e o universo da cultura. Uma: “É do erro intelectual e da barbárie dos poderes, ganâncias e fanatismos que vêm e sempre vieram todas as involuções das civilizações.” Forte, demasiado forte, verdadeira mais do que acintosa. Outra: “Como é que um país pode ser culto sem edições disponíveis de obras fundamentais quer da cultura nacional quer da universal? Miséria de editores ou miséria de leitores? Nunca compreendi. Mas a conclusão, sim: miséria de leitura.” Forte, também, e dizendo respeito a todos, que nos vamos comprazendo com literaturas “light” e aceitando fotocópias que desmantelam livros e saberes e alteram hábitos. Mais uma: “Encontrei quem se escandalizasse ao constatar que havia editores a publicar livros sem os ler, mas nunca encontrei quem se admirasse de um livreiro ser ignorante como leitor”. Também forte, mexendo com as formas de atendimento que não podem ser meramente comerciais, mas têm de ser cultas e humanas, gerando uma ideia de livraria como espaço de procura de saber, que também o é; também forte porque a narrativa aqui inscrita vai sendo pontuada pelas referências de leitura de uma vida, assim abrindo caminho para a exigência dessa sobreposição do livreiro com o leitor. Por aqui perpassam ideias para um mundo da leitura a vir ou a ser, algumas delas experimentadas, vividas no âmago de um percurso quase a sós, recheado com algumas compensações (como a de encontrar leitores filhos de outros leitores que neste percurso descobriram, uns e outros, o fascínio da leitura).
“Histórias do meu percurso livreiro”, assim sumaria lá mais para o final desta introdução o velho livreiro. Memorialismo assumido, pois. Com relato de saber e algum exemplo. Como todos os olhares para trás numa vida, este é também uma reflexão sobre a prática, sobre o caminho levado, em que muitas vozes, saberes, escritas, nomes, leitores, momentos, escritores, conversas, editores, poemas, opiniões, lançamentos e prosas se cruzaram, encontrando-se, fazendo do livro um ponto, momento, espaço de encontro, de comunhão. É pouco? É um sentido, é uma vida.
Concluo com uma pergunta do início desta introdução ao livro, que constitui o desafio para essa procura de sentido: “Valeu a pena na perspectiva da leitura tirar a vida ao escritor por dedicá-la ao livreiro?” Há uma coisa que eu sei: a minha experiência de leitura tem vindo a ser enriquecida com os despertares que também da livraria do Manuel Medeiros vão irradiando. E nesta leitura de Papel a mais não encontro novidades, acho pedras sobre que se edifica aquilo que este livreiro tem sido.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Morgado de Setúbal, dois séculos depois, em Setúbal

Até 28 de Novembro, o visitante tem a possibilidade de poder admirar 24 obras do Morgado de Setúbal, provenientes de várias colecções, numa exposição patente na Casa da Baía, em Setúbal, intitulada "Pintura e quotidiano - O Morgado de Setúbal, um pintor do tempo de Bocage". A acompanhar a mostra, há um roteiro contendo textos de Fernando António Baptista Pereira, Joaquim Oliveira Caetano e Ana Maria Fernandes, bem como reproduções fotográficas de obras do pintor.
No décimo-primeiro capítulo de Viagens na Minha Terra, quando ainda está para começar a história da personagem Joaninha, escreveu Almeida Garrett, descrevendo um cenário que apresentava o movimento da dobadoira junto da qual estava a avó da protagonista: "Era o único sinal de vida que havia em todo esse quadro. Sem isso, velha, cadeira, dobadoira, tudo pareceria uma graciosa escultura de António Ferreira ou um daqueles quadros tão verdadeiros do Morgado de Setúbal". O romance começou a publicar-se em revista em 1843 e o Morgado de Setúbal tinha falecido em 1809. À distância de pouco mais de três décadas sobre a sua morte, o génio de Garrett invocava para a pintura do Morgado a qualidade da fidelidade do retrato em relação ao objecto.
Muito embora tendo ficado conhecido por "Morgado de Setúbal", o certo é que José António Benedito Soares da Gama de Faria e Barros nasceu em Mafra por meados do século XVIII, em 21 de Abril de 1752, na altura em que seu pai, António José Bernardo Soares da Gama e Barros, casado com Josefa Antónia Caetana Perpétua de Ossuna, exercia as funções de síndico no convento mafrense dos frades arrábidos.
Mais tarde, viria para Setúbal, onde administrou o morgado dos Soares, que veio a herdar. Na cidade do Sado, acabaria o Morgado os seus dias, quando ainda não tinha 57 anos, solteiro, com uma filha que não conseguiu legitimar ("pela ter havido em mulher casada"), deixando os bens a José Augusto Maria Lopes Soares de Faria Mascarenhas de Barros e Vasconcelos, seu sobrinho, e sendo sepultado em túmulo de família na Igreja de Santa Maria.
O nome do Morgado de Setúbal consta na toponímia sadina, em rua da freguesia de S.Sebastião. No entanto, a cidade prestou-lhe já outra homenagem, colocando lápide evocativa na casa em que viveu e faleceu. Porém, entrado o edifício em ruína e definitivamente demolido, a evocação pública desapareceu também. A imagem do Morgado foi reabilitada para Setúbal em 1957 pelo pintor Luciano dos Santos, que o integrou no painel dos artistas do seu "Tríptico", desde essa data exposto no Salão Nobre da Câmara Municipal.
a lápide e a casa
Apesar da importância que a obra do Morgado de Setúbal teve, o primeiro centenário do seu falecimento, ocorrido em 12 de Fevereiro de 1909, não teve grandes manifestações, talvez pela situação de instabilidade que o país vivia e por razões particulares que afectaram vários prováveis intervenientes nessas comemorações. No entanto, houve esforços para que a efeméride fosse assinalada, sobretudo da parte de António Maria de Faria, bisneto do sobrinho a quem o Morgado deixara os seus bens, que contactou conhecidos e jornais de Mafra, de Lisboa e de Setúbal, a fim de promoverem a data, tendo ele mesmo organizado uma antologia com os vários artigos publicados e alguma correspondência a que deu o título de Primeiro Centenário da Morte do Célebre Pintor Morgado de Setúbal, editado em Milão em 1909.
Em 22 de Outubro de 1908, o periódico Revista de Setúbal publicara longo texto, lembrando que, em Fevereiro do ano seguinte, passaria o primeiro centenário do falecimento do Morgado de Setúbal e propondo quatro manifestações: uma exposição da obra, a publicação de um jornal em número evocativo e único, a realização de um sarau literário e a aposição de uma lápide na casa em que vivera o Morgado. Contudo, na véspera da data evocativa, em 11 de Fevereiro de 1909, o mesmo jornal lamentava-se: "A nossa voz ficou quase sem eco; e, se não fora as referências deste jornal, é possível mesmo que o dia passasse despercebido, o que realmente não seria muito lisonjeiro para os apregoados brios desta cidade".
Certo foi, no entanto, que a lápide, pelo menos, chegou a ser colocada, contendo os seguintes dizeres: "O célebre pintor Morgado de Setúbal - José António Benedito Soares da Gama de Faria e Barros - senhor que foi desta casa, aqui residiu e faleceu solteiro a 12-2-1809". Uma fotografia de Américo Ribeiro, datada de 1939, publicada em Setúbal d'Outros Tempos, reproduz o café "Casa das Águas", com a lápide ao nível do primeiro andar. Numa outra fotografia datada de 1952, publicada na mesma obra, já o prédio estava parcialmente destruído, sem o primeiro andar. Acabaria o mesmo por ser demolido para naquele espaço ser construída a sede da Caixa Geral de Depósitos, na Avenida Luísa Todi.
Em 11 de Fevereiro de 1952, véspera de mais um aniversário da morte do Morgado, o jornal O Setubalense informava que a lápide, "em mármore branco, por sinal já partida numa ponta", se encontrava num casarão que arrecadava forragens, propriedade do industrial Henrique Gomes, "ao fim da rua José Carlos da Maia, quase à entrada do Bairro dos Olhos de Água". Dois dias depois, o jornal acrescentava que Henrique Gomes adquirira a lápide "a um indivíduo que, por sua vez, nada soube dizer sobre a proveniência dela".
entre as flores e S. Pedro
As resenhas biográficas do Morgado de Setúbal rapidamente começaram a ser difundidas. Logo em 1815, José da Cunha Taborda fez o seu retrato em Regras da Arte da Pintura, sucedendo, em 1823, uma outra da autoria de Cyrillo Volkmar Machado, que sobre o artista escreveu: "pôs-se a pintar toda a sorte de objectos que lhe pareciam pinturescos, como aves, animais, utensílios de cozinha, frutos, labregos notáveis, hortaliças, etc., e, apesar da extrema secura e dureza do seu pincel e da composição dos seus painéis, há em muitos deles coisas tão naturais que agradam".
Em 6 de Fevereiro de 1858, o periódico O Curioso de Setúbal apresentava uma nota biográfica, relatando que a inclinação do Morgado para a arte lhe vinha desde a infância: "sem mestre, começou desde logo, extraindo do suco das flores, a imitar com as próprias cores a natureza". Um pendor de "naturalidade" foi aposto às obras do Morgado de Setúbal, contando-se histórias como a que, "pintando um gato em um quadro, foi necessário retirar este da vista de alguns cães, que se arremessavam ao animal pintado, julgando agredir um gato natural", como registou Almeida Carvalho nos seus apontamentos. Curiosa também é a história do modelo para pintar a figura de S.Pedro: tendo-se comprometido com uma encomenda de um quadro sobre o santo, andava o Morgado a passear pela praia de Tróino quando reparou num pescador, de cabelo desgrenhado e barba crescida, que logo contratou para ir ao seu gabinete; cioso do seu aspecto, o pescador, com o dinheiro recebido, tratou do cabelo e fez a barba, vestiu-se melhor e apareceu ao Morgado na data combinada... Foi o desgosto do Morgado, porque o aspecto que o pescador apresentava já não servia para modelo! O que há de verdadeiro nestas histórias? Pouco, provavelmente, uma vez que há quem as conte, com ligeiras variações, sobre outros artistas. No entanto, serviram também para rechear a biografia do pintor de Setúbal.
Aquando da celebração do primeiro centenário da morte de Bocage, em 1905, foi organizada em Setúbal uma exposição, promovida pela Associação Setubalense de Socorros Mútuos das Classes Laboriosas, onde estiveram presentes vários quadros do Morgado de Setúbal. Cerca de meia centena de obras suas voltariam a estar expostas na cidade do Sado na primeira quinzena de Agosto de 1964 (com 600 visitantes só na primeira semana). Em texto para o catálogo, Glória Guerreiro escrevia sobre o traço do Morgado: "há nas suas pinturas um cunho tipicamente nacional, que é o seu maior mérito; nas suas telas reflecte-se a ingenuidade do nosso povo, aliada a um certo lirismo", apreciação bem diferente daquela que lhe fez o polaco Rackzynski, que, no século XIX, considerou o Morgado de Setúbal um "fraco desenhador", de um "colorido terroso".
Com uma obra dispersa por muitos particulares e por museus (Museu Nacional de Arte Antiga, Museu de Évora, Museu Carlos Machado, de Ponta Delgada), o Morgado de Setúbal foi contemporâneo de Bocage, de Luísa Todi e de Santos Silva, formando, com os três, um grupo bem interessante para a cultura sadina da centúria de Setecentos.
João Reis Ribeiro. Histórias da região de Setúbal e Arrábida - I.
Setúbal: Centro de Estudos Bocageanos, 2003, pp. 77-82

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Rostos (135) - No Dia do Armistício

Monumento aos Mortos na Grande Guerra, em Estremoz (1941)
Às 11 horas do dia 11 do 11º mês de 1918, punha-se fim ao flagelo iniciado no Verão de 1914. Aquilo que inicialmente se pensava que não chegaria ao Natal de 1914 estendeu-se, afinal, por quatro natais, quase chegando ao quinto!... A guerra no seu esplendor, na sua barbaridade! Saldo: 8 milhões de mortos e 22 milhões de feridos, destruição e o lançamento das raízes que viriam a gerar uma nova guerra dali a duas décadas. Na trincheira, lembrada no monumento estremocense, era o convívio dos homens com a sobrevivência, a vida, a morte, a lama, os ratos, os piolhos, a coragem e o medo. Sobre esse mítico número 11, passam agora 91 anos.

Rostos (134) - No dia de S. Martinho

Evocação da história de S. Martinho, em Oxford, no sítio onde existiu uma igreja que o teve como patrono

domingo, 8 de novembro de 2009

Depois da leitura de "Homenagem ao Papagaio Verde", de Sena

O conto “Homenagem ao Papagaio Verde”, de Jorge de Sena [integrado na sua obra Os Grão-Capitães, disponível também na antologia Homenagem ao Papagaio Verde e outras histórias de animais (Col. "1001 Livros", 8. Lisboa: Lisboa Editora, 2006)], foi proposta de leitura. Quase no final da narrativa, o leitor “assiste” à morte do Papagaio Verde, depois de se ter apercebido do que significara esta personagem para o narrador. Foi pedido aos alunos para imaginarem que, nos últimos dias de vida, o Papagaio Verde tivera necessidade de deixar uma mensagem escrita para a criança que o acompanhara, relembrando a relação entre os dois e manifestando os seus sentimentos quanto ao que ambos viveram. Aqui deixo sete dessas abordagens, devidas aos meus alunos de 8º ano, com a contingência de ter sido um trabalho feito em aula, sem tempo para outros pensamentos e aperfeiçoamentos que pudessem acontecer fora desse espaço.
1) Ana Sofia Simões
Amigo:
Decidi deixar este documento escrito para te lembrares sempre de mim. Para que não te esqueças dos nossos passeios pela casa, dos nossos concertos ao piano e até do truque que me ensinaste com a vassoura. Nunca te esqueças que, sempre que precisares de um amigo, há um, algures no teu coração. Esse amigo é verde e voa.
Eu estou a morrer, disso já sabes. Os papagaios têm uma vida curta. A minha pode ter sido curta, mas foi óptima ao teu lado, companheiro. Por estes dias, parece que tenho alucinado, dizendo tudo o que me vem à cabeça, o que aprendi ou o que ouvi.
Eu sei que vais sentir a minha falta, mas a vida é mesmo assim. Uns nascem, outros morrem. Tu foste o único em quem confiei. Só me aguentei mais tempo porque me obrigavas a comer e porque dizias à tua mãe para me fazer o curativo…
Só te peço uma coisa: não te vás abaixo com a minha morte. Cuida do Papagaio Cinzento. Sê feliz por mim. Sei que não estarei a teu lado, mas também sei que vais ser feliz. A morte não é o fim do mundo… Talvez arranjes outro papagaio para o meu lugar na gaiola, mas eu sei que o do coração estará sempre reservado para os nossos dias de alegria e diversão.
Serás sempre o melhor amigo que alguma vez um papagaio teve.

2) Ana Veloso
Querido Amigo,
Sei que já não me restam muitas horas de vida e, por isso, quero deixar-te uma última recordação.
Em cada dia que passa, sinto-me cada vez mais fraco e a perder a minha grande beleza, mas tu estás sempre lá para carinhosamente me tratares e me dares a comida que eu próprio já nem consigo comer, embora logo de seguida, num movimento rápido e leve, me deite no canto da gaiola a desfalecer…
As músicas que tocas para mim no piano… confesso que me consolam, pois são as minhas músicas preferidas. Sei também que já faltaste à escola para ficares a cuidar de mim e a dar-me o teu ombro amigo e que, quando não faltas à escola, mal ela acaba, vens a correr para casa.
Sinto-me o papagaio mais privilegiado do mundo por te ter conhecido. Um grande obrigado por tudo.
Quando chegares, pressinto que já cá não estarei. Cuida bem de ti.
PS: Nunca te esquecerei. Foste o melhor amigo que alguma vez poderia ter arranjado.

3) Bárbara Arrojado
Querido rapaz:
Sei que estás triste por eu estar a morrer, mas quero que saibas que eu estou muito contente pelo que passámos juntos – as brincadeiras que fizemos dentro de casa, as visitas que fizemos ao Papagaio Cinzento e também por me teres cuidado assim tanto!
Espero que tenhas entendido o que é a amizade.
Não quero partir sabendo que vais continuar só e triste, porque eu sou um papagaio que gostou muito de ti, que te queria acompanhar por mais tempo, ensinar muitas mais coisas boas.
Mas também tens de perceber que não é por causa de uma “pessoa” que não vais ser feliz. A vida continua em frente.
Também não quero que te aborreças muito com a tua família. Como eu te disse, é a tua família.
Gosto muito de ti, não te vou esquecer (espero que não te esqueças de mim).
Papagaio Verde

4) Maria Antunes Marques
Querido e fiel amigo,
Agradeço-te tudo o que fizeste por mim. Agradeço-te por me teres deixado de fazer o curativo, porque, apesar de eu saber que era para meu bem, causava-me um enorme sofrimento.
Adorei aqueles momentos passados ao lado do piano em que eu, com as minhas garras (já sem força), agarrava a tua mão esquerda e tu, com a tua mão direita, tocavas as melodias que eu adorava, as mais belas, as mais pacíficas… Aquelas em que eu dançava mas que, naquela altura de sofrimento, estava incapacitado de fazer.
Agradeço-te por me teres tratado como um rei. Por me teres dado água e alimento, apesar de eu normalmente os recusar. Mas, de vez em quando, lá fazia um esforço, só para te agradar.
Agradeço-te por teres ouvido o meu reportório final. Aquele que era igual a todos os outros. As frases que eu costumava dizer, os palavrões que tu não devias ouvir e até aquelas palavras em línguas que tu nem sequer conhecias.
Sei que a última frase que me ouviste dizer não foi a mais agradável mas peço-te que me guardes na tua memória e no teu coração como um fiel amigo… Não! Como um fiel melhor amigo!
Bicadas Carinhosas
Papagaio Verde
P.S.: Vou guardar-te na memória e no coração até à eternidade.

5) Paolla Moura
Quando cá cheguei, sentia-me sozinho e amargurado. Passei por muitos lugares, navios, terras, florestas, mas nunca estive num sítio como esta varanda e eu sabia que ia ser para durar. Não tinha confiança em ninguém e as empregadas eram muito importunas. Ainda me lembro das vezes em que me deixavam encharcado e me aleijavam com a vassoura de modo a tentar irritar-me! Mas isso foi passando com o tempo, aquele ódio doentio pelos humanos, porque tinha de arranjar um espacinho no meu coração para ti. Continuava a odiar, mas a nossa amizade era mais importante e para mim marcou um novo ciclo na minha vida, um ciclo de amizade.
Lembro-me das malandrices e planos maldosos, porém divertidos, que fazíamos, passando por insultar os vizinhos com os mais variados e cómicos palavrões e a acanhar o Cinzento, aquela sombra da qual não gosto nem vou gostar. A monotonia foi desaparecendo e as divertidíssimas melodias ao piano tornaram-se habituais.
Eu ficava à tua espera, contando as horas, minutos e segundos, pois a minha única alegria eram as nossas brincadeiras. Mas o destino foi cruel e quis que eu apanhasse esta doença. Mas quero que saibas que, onde quer que esteja, vou sempre lembrar-me de ti e a nossa amizade vai sempre sobreviver ao tempo e até ao ímpeto da morte.
Obrigado, amigo.

6) Sara Santos
Querido Amigo:
Lembro-me bem daquela vez em que as criadas queriam lavar-me a gaiola, coisa que eu odeio, e me molharam. Tu foste ter comigo e limpaste-me docilmente as penas. Percebi nesse momento que não teria de ser reservado contigo. Ou de quando eu saí da “prisão” para melhor ver o céu, fazendo um alvoroço cá em casa, e tu apareceste lá com uma cara sorridente!…
Sabes?, adoro quando me levas para ao pé do piano e me tocas a minha música preferida. Nesse momento, sou uma abelha que encontra uma rosa pela primeira vez, sou uma mãe que vê o filho crescer…
O tempo que me resta é escasso, mas quero que saibas que só a tua presença me tira da sonolência, que só como para te fazer feliz.
Metade de mim já partiu, o exterior, e em breve partirei completamente. Guarda-me no lugar a que chamam “coração”.
O teu sempre amigo,
Papagaio Verde
PS: Cá fora, o tempo está agradável. Às vezes, vem uma brisa que me despenteia as penas.

7) Sofia Azevedo

Carta para o meu Amigo e Companheiro de sempre

Sim, sou eu, o Papagaio Verde, aquele que muitos desprezaram, ignoraram e fingiram nem sequer existir.
De todas as viagens que fiz, de todas as pessoas que conheci, tu foste o único que me acolheu, falou comigo, chorou comigo e até tocou para mim aquelas músicas de que eu gostava. Sim, as músicas, como eu as recordo! Alegravam-me e libertavam-me das angústias, sofrimentos, más recordações e, por vezes, até daquelas malditas alucinações.
Tanta coisa te queria eu dizer, mas só tenho estas linhas para te escrever… Vou, por isso, adiantar-me.
Lembro-me de quando te vi pela primeira vez. Eu pensei: “Mas que raio! Um pirralho agora para me puxar as penas e fazer-me arreliar!” Na verdade, eu pouco me engano, posso quase dizer que esta foi a única vez. Enganei-me redondamente. Foi pena só ter descoberto naquela tarde, a pior tarde da minha vida! Malditas empregadas, malditos banhos, estava eu tão nervoso, às voltas na gaiola, a pingar das penas e do bico!... Pensei não resistir, afinal a idade não perdoa e tão encharcado que eu estava!... Foste tu quem me acudiu, quem me enrolou num pano, quem me secou as penas e me disse palavras bonitas com uma calma voz. Nesse momento, olhei-te de forma diferente e vi-te não como miúdo mimado, mas sim como pessoa meiga e solitária. Tu completavas-me, eras o único humano que para mim merecia respeito!
Estiveste desde então sempre a meu lado, até ao fim, e digo bem “fim”, pois esse chegou. Deixo-te aqui as minhas palavras escritas. Com tudo isto só te queria dizer: adoro-te!
Saudades do Papagaio Verde

Rostos (133)

Aldrava, em Faro (colaboração de Quaresma Rosa)

domingo, 1 de novembro de 2009

Corrupções

A gente vai ouvindo e lendo as notícias e… não pode ignorar. Como podemos acreditar numa série de pessoas, habitualmente a circular nos corredores do(s) poder(es), sistematicamente envolvidas em histórias algo obtusas e pouco (ou nada) claras, como? Não sei se há justiça que chegue, isto é, se há sistema judicial que consiga atender a todos os casos, não sei. O que sei é que somos continuamente bombardeados com notícias que nos atingem com flamas de incompetência, de cambalacho, de negociata, de imoralidade e sei lá que mais… O que sei é que seria bom que, para saúde da democracia e da sociedade, essas pessoas suspendessem as suas funções até prova de inocência ou de culpa. Talvez passássemos a confiar mais uns nos outros, talvez acreditássemos mais no regime em que estamos, talvez. Não podemos é andar neste jogo em que se está à espera do nome seguinte, conhecido e destacado, envolvido em mais um escândalo, venha ele da banca, da política, das chefias ou dos delfins! É necessária uma ética social em que todos estejamos envolvidos. E não podemos aceitar que a nossa sociedade ande a reboque da escandaleira sucessiva e da suspeita contínua. Haja decoro, porque o país é mais interessante do que as imagens que têm passado e porque o país deve impedir que estas situações se perpetuem (como, infelizmente, tem acontecido)!