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domingo, 8 de junho de 2025

Luís Amaro: o bibliógrafo de Aljustrel (2)

 


As observações de Sebastião da Gama sobre o livro Dádiva, de Luís Amaro, saído em 1949, tinham em consideração a amizade que, desde há quatro anos, os vinha aproximando: ambos se conheceram em 1945 na Portugália Editora, num terceiro andar da Avenida da Liberdade, e chegaram a ter quarto alugado na mesma residência, na capital, ainda que em tempos diferentes — na Rua das Taipas, em casa que pertenceu à fadista Adelina Fernandes, onde Sebastião teve quarto enquanto estudou em Lisboa, que, depois, passou para Luís Amaro. Pelo catálogo Dádiva - Luís Amaro - Uma Vida em Livros passam várias menções à relação entre o homenageado e o poeta da Arrábida: a propósito da relação editorial entre os dois (a partir do momento em que se conheceram, ano em que foi publicado Serra-Mãe, com a chancela da Portugália, mas com os custos da edição suportados pelos pais de Sebastião da Gama), do incentivo do poeta-professor junto do amigo para a publicação de Dádiva e de um encontro de trabalho de Amaro com Joana Luísa da Gama (1923-2014), em Massamá (em 1999), a propósito da obra inédita do poeta, que estava em preparação (momento de que é reproduzida fotografia).

Se 1949 foi o ano de publicação da obra poética de Luís Amaro que os amigos tanto desejavam ver, também foi o ano de reabilitação na saúde deste aljustrelense, que passou por grave crise relacionada com tuberculose pulmonar.

O catálogo, fortemente ilustrado, vai dando os traços biográficos essenciais do homenageado, assinalando a década de 1950 como a do aparecimento da revista Árvore, subintitulada “Folhas de Poesia”, resultado de iniciativa de Luís Amaro, António Luís Moita, António Ramos Rosa, Raul de Carvalho e José Terra, um projecto que teve apenas quatro números (1951 a 1953) e fim ditado pela censura do Estado Novo. A finalizar essa década (1959), é mencionado o casamento de Amaro com Amélia Magalhães, colega de trabalho, relação que durou até ao falecimento dela, em 2013.

O trabalho de Luís Amaro como tradutor e revisor manteve-se na Portugália até Março de 1970, altura em que passou a trabalhar na Fundação Calouste Gulbenkian (até 1989), na revista Colóquio - Letras, projecto que, sob as direcções de Hernâni Cidade, Jacinto do Prado Coelho, David Mourão-Ferreira e Joana Morais Varela, sempre teve o cunho esmerado do bibliógrafo, tal como foi reconhecido, no número de Março de 1989, sob a pena de Morais Varela, ao assinalar-lhe a sua “excepcional capacidade de trabalho” e retratando-o como “tão minucioso e apaixonado nas tarefas mais humildes como na investigação mais especializada”.

O tempo da aposentação ocupou-o Luís Amaro nas tarefas de que sempre gostou — a pesquisa contínua, a organização de bibliografias, a disponibilidade para ajudar investigadores com eles partilhando o seu saber (tendo continuado como consultor editorial da Colóquio - Letras), a correspondência intensa com amigos. Tão grande abertura e atenção aos outros levou a que, em vários momentos, tenha havido reconhecimento público do valor e do serviço prestado por Luís Amaro à cultura portuguesa — se houve espaço para algumas acções de cariz social e cultural, houve também oportunidade para esse reconhecimento ser feito através daquilo que sempre orientou o trabalho deste investigador, o livro: em 2005, o poeta aljustrelense via ser publicada a obra Para Lá da Névoa - Homenagem a Luís Amaro (Caixotim Edições), conjunto de dezassete depoimentos, entre os quais se contam os de Eugénio Lisboa, Fernando J. B. Martinho e Fernando Venâncio, para só mencionar nomes recentemente desaparecidos, e, três anos depois, a Câmara Municipal de Aljustrel atribuía o nome de Luís Amaro à Biblioteca Municipal, decisão honrosa para quem dedicou a vida ao livro e aos autores. Um livro constituiria ainda um outro momento de homenagem, mas póstuma, quando, em 2020, saiu Evocar Luís Amaro (Cosmorama Edições), duas dúzias de testemunhos, organizado por António Cândido Franco, António José Queiroz, Francisca Bicho e Paulo Samuel.

Por este catálogo passam ainda citações de homenagem de catorze autores, todas constituindo prova do importantíssimo contributo que este bibliógrafo aljustrelense deu à cultura portuguesa, de que destaco duas: se Fernando Venâncio reconheceu que Amaro “fez tanto pela literatura portuguesa como departamentos de universidade inteiros” (ele, um homem que apenas passou por uma Universidade, a Portugália, como mencionou numa carta que me endereçou), Sofia Santos considerou “uma tarefa tantálica elencar todas as contribuições que Luís Amaro dedicou à literatura portuguesa e aos seus autores”.

Indiscutivelmente, a sua “dádiva”, resumindo a sua obra, encontra eco em dois títulos: no que foi dado à exposição e a este catálogo, organizados pela Associação Do Fundo à Superfície, e no que foi atribuído à tertúlia realizada em Aljustrel em 13 de Junho de 2024: “Luís Amaro: um homem que era a memória viva da literatura portuguesa”.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1544, 2025-06-04, pg. 10.


sábado, 31 de maio de 2025

Luís Amaro: o bibliógrafo de Aljustrel (1)

 


“Meu Alentejano bisonho (Isto é por fora: por fora é que é o Alentejano bisonho, o bicho do mato; por dentro é um homem cheio de humanidade, de compreensão, de ternura. Por isso é que começou a nossa amizade, que já tem escrito algumas páginas bonitas).” Assim começa, em 20 de Julho de 1946, uma carta saída da Arrábida, assinada por Sebastião da Gama (1924-1952), dirigida a Luís Amaro (1923-2018), uma das mais antigas na densa relação epistolográfica entre o poeta azeitonense e o seu amigo de Aljustrel, à data a trabalhar em Lisboa, na casa Portugália Editora. A apresentação que é feita de Luís Amaro no início desta carta vai ao encontro do que Ernesto Rodrigues testemunhou e é reproduzido no catálogo resultante da exposição que celebrou o centenário do poeta e bibliógrafo alentejano: “Nome fundamental, no ‘silêncio perfeito’ que o poeta deseja, generoso, elegante”. 

A mostra, intitulada Dádiva - Luís Amaro - Uma Vida em Livros, acontecida entre Junho e Setembro de 2024 na biblioteca que o tem como patrono na sua terra-natal, teve continuidade em Maio através da publicação do respectivo catálogo, edição a cargo da Associação Do Fundo à Superfície (Associação de Defesa do Património Mineiro Cultural e Ambiental do Concelho de Aljustrel). O texto de abertura desta obra deve-se a Guilherme d’Oliveira Martins, que assim o apresenta: “Luís Amaro representa a memória viva da cultura e das letras portuguesas. (...) Foi poeta, bibliófilo, estudioso e investigador, tornando-se raro mestre em matéria bibliográfica, a quem qualquer editor competente podia recorrer com segurança quando houvesse dúvidas ou hesitações. (...) Sempre discreto, os maiores especialistas reconheceram-lhe essa excepcional qualidade, só possível a um grande conhecedor e a um trabalhador incansável.”

Oriundo de uma família humilde, Luís Amaro cedo começa o seu itinerário na causa dos livros — acabada a instrução primária, são um ajudante-farmacêutico, a biblioteca da Associação dos Operários Mineiros e Adeodato Barreto (advogado e poeta, em cujo cartório Luís Amaro começa a trabalhar aos 12 anos) os responsáveis pelo culto pelas letras e por um trajecto que sempre o aproximará dos livros e da leitura, passando por um estágio no “Diário do Alentejo” quando tinha 13 anos, por um emprego na Biblioteca Municipal de Beja, por colaboração jornalística em diversos periódicos (Ala EsquerdaO ArraiolenseBrados do AlentejoRevista Transtagana, entre outros), até chegar a um emprego em Lisboa, na Livraria Portugália (onde foi caixeiro-livreiro). Daí, transitaria para a Portugália Editora como revisor de provas, sob cujo olhar criterioso passaram as obras de alguns dos mais conceituados escritores portugueses do século XX — Aquilino Ribeiro, Fernando Namora, Jaime Cortesão, José Saramago, José Régio (uma leitura do volume da correspondência trocada entre Régio e Amaro, editado em 2024 pela editora Colibri, trabalho devido a Ernesto Rodrigues, demonstra bem o cuidado e a qualidade de revisor-editor que Luís Amaro praticou), Manuel da Fonseca, Sebastião da Gama, Soeiro Pereira Gomes, entre muitos mais.

Com o cuidar da obra dos outros e com o espírito reservado que o caracterizava, só em 1949 publicou a sua obra, depois de muitos incentivos de amigos, entre os quais Sebastião da Gama. Dádiva foi o título atribuído, escolha que Sebastião da Gama assim comentou no seu Diário (registo de 18 de Fevereiro de 1949): “Ao escrever isto — ‘ser professor é dar-se’ —, lembro-me do Amaro. Pobre querido Amigo, tão nobre, tão modesto, tão púdico da sua intimidade. Um António Nobre que chegou tarde, uma flor que o vento magoou... Há três anos que lhe peço o livro: ele, tímido, recusa sempre mostrá-lo ao Mundo. (...) Pois há uma semana encontrei o Amaro. Acompanhei-o. Junto de um portal, com medo de que alguém que passasse o ouvisse, segredou-me: ‘Vou publicar.’ “Diário Íntimo?’ ‘Não. DÁDIVA.’ Senti cá dentro uma lágrima que era a compreensão exacta e comovida daquele nome. Dádiva. Dádiva. Dádiva.” Luís Amaro conheceu esta opinião do amigo uns meses depois, quando, em 2 de Outubro, recebeu de Sebastião da Gama longa carta (uma das mais longas no seu epistolário para o amigo), apreciando o livro e transcrevendo este excerto do seu diário. Diário Íntimo - Dádiva e Outros Poemas viria a ser o novo título da obra, ampliada, em 1975 e em 2011, enquanto em 2006 se intitularia Diário Íntimo.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1539, 2025-05-28, pg. 6.


quarta-feira, 18 de setembro de 2024

Sebastião da Gama - A inquietação pela palavra essencial (1)

 


Quando, em 1952, saiu o número 4 da revista coimbrã Sísifo, dirigida por Manuel Breda Simões, três textos chamavam a atenção sobre Sebastião da Gama: logo na abertura, uma nota da direcção a dar conta do falecimento do poeta, contando que a notícia da sua morte chegara quando a revista estava «em andamento» e já integrava o poema inédito “Anunciação”, que neste número se publicava (o segundo texto); na página seguinte, sob o título “Uma carta do Poeta”, surgiam as respostas de Sebastião da Gama, redigidas aquando do seu regresso do Marão (onde fora em meados de Setembro de 1951), a um conjunto de quatro questões que uma carta de Breda Simões lhe fizera chegar. As três primeiras perguntas debruçavam-se sobre o percurso biobibliográfico do poeta, mas a quarta recaía unicamente sobre a arte poética: «Que pensa da Poesia em geral e da sua própria Poesia?»

A resposta do autor de Campo Aberto, obra publicada em Fevereiro de 1951, foi telegráfica, sem se desviar do assunto: “Minhas ideias acerca da poesia. Vide: ‘Louvor da Poesia’, in ‘Campo Aberto’. Será tudo? Olhe que a resposta ao n.º 4 não é para posar. É que só nos versos sei o que penso da Poesia.” De forma simples e objectiva, Sebastião da Gama separava o poeta da pessoa que era, assumindo a existência de uma biografia literária, responsável pelo acto e pelo percurso poéticos.

No poema, de três estrofes, datado da Arrábida em 7 de Fevereiro de 1950, o “louvor da poesia” é assim justificado: “Dá-se aos que têm sede, / não exige pureza. (...) // Sabe a terra, a montanhas, / caules tenros, raízes, / e no entanto desce / da floresta dos mitos.” A poesia como dádiva a quem se predispõe a recebê-la e a quem a procura, o trabalho do poeta, afinal, numa atitude de adesão ao seu tempo e ao seu espaço, à vida — poucos dias após ter sido publicado Campo Aberto, Sebastião da Gama escrevia ao seu amigo Luís Amaro, a partir de Estremoz (6 de Março de 1951), a dar-lhe conta da recepção que já tivera ao livro e a responder à apreciação que dele recebera: “o que eu quero sobretudo dizer-te é isto: nunca procurei assunto; nunca fiz exercícios literários. É natural que haja no ‘Campo’ poesias que não são poesia autêntica; mas escrevi-as com tanta unção e tanta sinceridade — juro-te — como escrevi os poemas da Serra-Mãe e os do Cabo.”

A ideia expressa no poema “Louvor da Poesia” surge como a amplificação do eco vindo do dístico que abre Campo Aberto: “Tudo frutificou: o campo estava aberto, / deu conchego e raiz a todas as sementes.” Quando Maria de Lourdes Belchior prefaciou a segunda edição desta obra, em 1960, fê-lo traçando a evolução da obra poética de Sebastião da Gama, referindo: “Neste livro, (...) se houve por um lado uma crescente interiorização, houve, por outro, cada vez mais, uma abertura para as circunstâncias exteriores, para os acontecimentos, dos quais partia, carregando-as de intrínseca beleza poética e de uma valorização simbólica.” E, depois de mencionar alguns poemas: “o pendor descritivo-narrativo do poeta ficou intacto mas não saturou os versos.”

Em 12 de Agosto de 1947, em “Nocturno”, poema incluído em Cabo da Boa Esperança, saído nesse mesmo ano, surgia um retrato do ambiente requerido para o tempo poético: “Era um murmúrio longo de ondas mansas... / Um cochichar de Estrelas curiosas... / Um concerto de grilos tresnoitados... / Mais presente que tudo, aquele enorme / silêncio religioso, imagem pura / dos ouvidos atentos do Poeta...” Os elementos vão-se juntando mansamente, num perscrutar dos sons da Natureza — uns, reais, como o som das ondas ou o estridular dos grilos; outros, sugeridos, como o segredar entre estrelas —, favorecedores do encontro com um “silêncio religioso” ouvido pelo poeta. A audição é, de resto, uma das linhas que percorre a poesia de Sebastião da Gama, captada, preferencialmente, a partir da Natureza, cujos sons se transformam em música — num artigo publicado no Jornal de Letras (n.º 188, 2.Out.1986), David Mourão-Ferreira chamou a atenção para “as mais diversificadas alusões à música e as mais reiteradas sugestões de natureza musical” presentes na poesia de Serra-Mãe (marca que se prolongou nas outras obras), concluindo que “o canto e a música se mostraram invariavelmente em conexão muito íntima com momentos privilegiados quer da sua comunhão com a natureza quer da natureza da sua comunhão com a poesia” — não por acaso, o primeiro poema de Serra-Mãe fala-nos de “melodia” e de “som” e o segundo intitula-se “Harpa”.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1373, 2024-09-18, pg. 10.

 

OBS: Este texto constitui parte do posfácio ao livro O Inquieto Verbo do Mar, de Sebastião da Gama (Assírio & Alvim, 2024).


sábado, 6 de junho de 2020

Luís Amaro - Testemunhos para a amizade



Em 9 de Novembro de 2008, em Massamá, Luís Amaro (1923-2018) escreveu quatro dedicatórias em outros tantos livros que Sebastião da Gama lhe tinha dedicado - Serra-Mãe, Cabo da Boa Esperança, A Região dos Três Castelos e Campo Aberto. As mensagens apresentam idêntico teor, com algumas variações, aqui se transcrevendo a que foi exarada no primeiro dos livros: “À Biblioteca do Museu Sebastião da Gama, em Vila Nogueira de Azeitão, terra natal do Poeta e onde este livro - peça bibliográfica única, porque com dedicatória do querido e inesquecível autor! - ficará mais resguardado, como relíquia que é, oferece comovidamente o Luís Amaro - Homenagem também a Joana Luísa da Gama, Companheira do Sebastião”.
O Museu Sebastião da Gama ficava, assim, com a posse de quatro obras autenticadas com as assinaturas de Sebastião da Gama e de Luís Amaro, dois pólos de uma relação intensa construída sobre a poesia e a amizade, que tivera início em 1945, era Luís Amaro funcionário da Livraria Portugal, em Lisboa.
Ao longo da sua vida, o aljustrelense Luís Amaro foi autor de apenas um livro de poemas, cuja primeira edição saiu em 1949, Dádiva, que reapareceria em reedições de 1975, 2006 e 2011, assumindo um título diferente, Diário Íntimo, a que, em 1975 e em 2011, foi acrescido o subtítulo “Dádiva e Outros Poemas”. Uma interpretação rápida dos títulos permite dizer muito daquilo que Luís Amaro foi como pessoa - muito reservado, mas sempre disponível para oferecer o seu contributo aos outros.
A propósito dos seus 80 anos, um grupo de amigos preparou-lhe uma surpresa - a edição de Para lá da névoa - Homenagem a Luís Amaro (Edições Caixotim, 2005), em que testemunharam 16 autores, rol que integrou dois setubalenses, António Osório e Daniel Pires. Em 2020, novo projecto nos vem lembrar o poeta e bibliófilo alentejano através da obra Evocar Luís Amaro (Cosmorama Edições), coordenada por António Cândido Franco, António José Queiroz, Francisca Bicho e Paulo Samuel e reunindo depoimentos de 19 amigos, incluindo Daniel Pires. A linha que perpassa por todos os testemunhos é a da generosidade do homenageado, autodidacta que sempre abriu portas a quem o procurava, epistológrafo genial, já que a maioria das informações que partilhava seguia através de cartas cheias de anotações, apontamentos, referências. No retrato que a sobrinha Maria Dulce P. Amaro lhe traça, é dito: “O seu percurso não teve nada de fortuito, nem de milagroso. Era um perfeccionista, trabalhou arduamente para atingir a excelência, colocando em segundo plano a sua vida pessoal, que de um modo ‘envergonhado’ frequentemente escondia.”
Por finais de 1990, numa deslocação a Monsaraz com alunos, vi um grupo de três pessoas, parecendo-me ser uma delas o Luís Amaro. Nunca lhe tinha falado, mas conhecia-o de uma fotografia publicada algures e sabia de muita da sua acção em prol da literatura portuguesa. Fui ter com ele, apresentei-me e saudei-o. “Mas como reconheceu que sou o Luís Amaro se nem apareço por aí nos meios?” Lá lhe contei a minha história e os meus afectos literários, por onde passavam alguns amigos dele. Ficámos amigos. As cartas que dele conservo são lições sobre livros, achegas para investigações que me têm envolvido, provas de amizade inexcedível, em duas delas evocando esse encontro alentejano. Subscrevo aquilo que Daniel Pires regista no testemunho deste livro de 2020, chamando a generosidade e a disponibilidade de Luís Amaro para traços maiores. Foi também isso que senti, essa permanente dádiva, de que fui um dos privilegiados.
* "500 Palavras". O Setubalense: nº 410, 2020-06-05, p. 17.

quarta-feira, 10 de outubro de 2018

Sebastião da Gama e Luís Amaro: Uma amizade para sempre



Por meados da década de 1990, estava com alunos numa visita de estudo em Monsaraz. A dada altura, três pessoas aproximavam-se do restaurante. Uma dessas pessoas era Luís Amaro. Reconheci-o por uma fotografia que vira pouco antes, sabia do seu trabalho em favor da literatura portuguesa, tinha alguma informação sobre a sua amizade com Sebastião da Gama. Tendo ao alcance a oportunidade de o conhecer, meti conversa. Ficou admirado por o ter reconhecido, pois não era dado a publicitações e cultivava a sua discrição. Lá contei como o conhecia e falei-lhe de Sebastião da Gama, da “Colóquio-Letras” e de literatura. Mantivemos um bom bocado de conversa. E, à despedida, voltou a manifestar a sua admiração por o ter reconhecido...
Passaram uns anos e, por 2007, voltei a contactá-lo, agora por carta. Fomos mantendo diálogo, ora por telefone, ora epistolarmente. Deu-me informações sobre Sebastião da Gama, fez-me chegar indicações bibliográficas, enviou-me anotações sobre a edição do “Diário” de Sebastião da Gama que preparei no sentido de melhorar uma próxima edição, ofereceu-me o seu livro com dedicatória a propósito, usando sempre uma afabilidade e disponibilidade que me impressionaram. Em duas das cartas referiu a lembrança daquele encontro em que nos conhecemos em Monsaraz, num gesto de memória extraordinário.
Senti perder um amigo e uma grande oportunidade de mais saber quando fui informado do seu falecimento em finais de Agosto.
Inevitavelmente, na rubrica “Evocar Sebastião da Gama”, teria de lembrar a extraordinária relação de amizade e essa aproximação fraternal que envolveu Luís Amaro e Sebastião da Gama (Jornal de Azeitão: nº 265, 2018-10, pg. 15).

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Associação Cultural Sebastião da Gama - Boletim nº 6

Saiu o nº 6 do Boletim Informativo da Associação Cultural Sebastião da Gama. Conteúdos: “O Diário tem 60 anos”, “Prémio Nacional de Poesia Sebastião da Gama 2009”, “Serra-Mãe oferecida a alunos”, “Monumento a Sebastião da Gama em Azeitão vai ter preservação”, “Sebastião da Gama estudado por Alexandre Santos" (com intervenções de D. Carlos Azevedo, José Eduardo Franco e João Reis Ribeiro), “Uma medalha para Sebastião”, “Pintores homenageiam Sebastião da Gama”, “Assinalados os 60 anos do Diário” e “Algumas achegas muito avulsas para a bibliografia (activa e passiva) de Sebastião da Gama (1)” (por Luís Amaro). São oito páginas de informação sobre a vida da Associação e sobre o seu patrono.
Pode ser pedido directamente para a Associação ou para o e-mail que figura ali em cima.

sábado, 24 de maio de 2008

A "Colóquio-Letras" à distância de um clic

A Colóquio-Letras, editada pela Fundação Calouste Gulbenkian, é, enquanto revista dedicada à causa literária, publicação de consulta indispensável, quer pelo leque de assuntos abordados ao longo da sua história de quase quatro décadas, quer pela lista de colaborações que lá têm deixado a sua assinatura, quer pelo contributo que, sobretudo no meio académico, tem dado à investigação. O mais recente investimento promovido pela instituição editora foi o acesso pela internet à revista (opção importante, sobretudo se pensarmos que grande parte dos números desta publicação estão esgotados), podendo o leitor chegar aos textos por temas, por autores das colaborações ou pelas edições da revista (que está digitalizada até ao número duplo 157/158, correspondente a Julho-Dezembro de 2000) no endereço http://coloquio.gulbenkian.pt/ (que já acrescentei nas "horas úteis" ali ao lado).
Surgida em 1971, após o desmembramento do título Colóquio (1959-1970), que originou, também em 1971, Colóquio-Artes (aparecendo, mais tarde, em 1988, a Colóquio-Ciências e, em 1992, a Colóquio-Educação), foi inicialmente co-dirigida por Hernâni Cidade e Jacinto do Prado Coelho (nº 1, Março de 1971, até ao nº 8, Julho de 1972). Ao longo da sua história, pelo lugar de direcção da revista passaram: Hernâni Cidade (a partir do nº 9, de Novembro de 1972), Jacinto do Prado Coelho (desde o nº 24, de Março de 1975, depois de ter sido seu director-adjunto a partir do nº 9), David Mourão-Ferreira (desde o nº 80, de Julho de 1984) e Joana Morais Varela (desde o nº 142, de Outubro de 1996, depois de ter exercido os cargos de assessora - a partir do nº 108, de Março de 1989 - e de directora-adjunta - a partir do nº 121, de Julho de 1991). Outros dois nomes a destacar são o de Luís Amaro (secretário de redacção desde o primeiro número, director-adjunto desde o nº 94, de Novembro de 1986, e consultor editorial a partir do nº 108, de Março de 1989, até ao nº 142, de Outubro de 1996) e o de Abel Barros Baptista (director-adjunto desde o nº duplo 143/144, de Janeiro de 1997).
Vários números temáticos têm sido editados, de que cito os dedicados a Guerra Junqueiro, a Ferreira de Castro, a Camilo Castelo Branco, a Antero de Quental, a António Nobre, a David Mourão-Ferreira, a Irene Lisboa, a João Cabral de Melo Neto, à literatura galega, a José Saramago, a Almeida Garrett, entre outros. A grande procura desta revista levou a que fossem já publicados dois volumes sob o título de "Cadernos da Colóquio-Letras", coordenados por Luís Amaro, compreendendo uma selecção de textos críticos sobre "Teoria da literatura e da crítica" (1982) e sobre "Modernismo e vanguarda" (1984). Em 1998, por ocasião do "Salon du Livre", foi editado, em francês, um número especial da revista sob o tema "La poésie portugaise de Fernando Pessoa à nos jours".
A última edição da revista foi o número duplo 168/169, respeitante a Julho-Dezembro de 2004, estando anunciado um próximo número dedicado a Sebastião da Gama e à sua correspondência com amigos.

terça-feira, 4 de dezembro de 2007

Rilke, uma referência para Sebastião da Gama

Nesta data, em 1875, nasceu Rainer Maria Rilke (1875-1926) em Praga. Uma das suas obras mais conhecidas é Cartas a um jovem poeta, de que reproduzo parcialmente a primeira das várias missivas dirigidas ao senhor Kappus, aprendiz de poeta, datada de 17 de Fevereiro de 1903, de Paris. Lendo-a, percebemos a razão que levou um poeta daqui da nossa região, Sebastião da Gama, a consagrar a Poesia com maiúscula, a cantar o que cantou, a tornar inseparável a arte e a sua forma de viver. Lendo-a, percebemos qual o motivo que levou o mesmo Sebastião da Gama a recomendar a leitura destas Cartas aos seus amigos, alguns deles vultos importantes da cultura portuguesa do século XX – em 9 Agosto de 1946, a partir do Portinho da Arrábida, Sebastião da Gama escrevia a Lindley Cintra, seu colega, dizendo: “Tenho lido um livro admirável que deves ler – embora não lhe sigas o maior preceito: andar horas e horas por si dentro sem encontrar ninguém. É o Cartas a um Poeta, de R. M. Rilke”; em 10 de Fevereiro de 1948, em carta a David Mourão-Ferreira, aconselhava Sebastião da Gama: “Pega, David, nas Cartas a um Poeta: ele sabe muito bem que sem a solidão nada feito. Olha que a mim até me dá para ser cruel e irreverente. Chego a doer-me a mim próprio.”; em 22 de Julho desse mesmo ano, numa carta para Luís Amaro comentava: “Cartas a um Poeta é um livro admirável, de termos à cabeceira e lermos assim como um catecismo. Assim é que deviam ser os Poetas: assim sinceros e protectores e modestos.”
Não era caso para admirar esta dedicação de Sebastião da Gama a Rilke – é que o estudo da poesia também preocupava o poeta da Arrábida, que era um homem informado sobre a cultura clássica e sobre a sua contemporânea. Em Portugal, no final da década de 40 e início da seguinte do século passado, as Cartas de Rilke eram um prodígio. Só assim se compreende o anúncio que o Diário Popular fez da 2ª edição da tradução portuguesa desta obra, a cargo de Fernanda de Castro, em 22 de Fevereiro de 1950: “Escrevendo ao jovem poeta Kappus, Rilke elaborou a Arte Poética do nosso tempo”.
“Meu caro senhor:
Acabo de receber a sua carta. Não quero deixar de lhe agradecer a grande e preciosa confiança que esta representa, mas pouco mais posso fazer. Não analisarei a
maneira dos seus versos, porque sempre fui alheio a qualquer preocupação crítica. Para penetrar uma obra de arte nada, aliás, pior do que as palavras da crítica, que apenas conduzem a mal-entendidos mais ou menos felizes. (…)
Dito isto, apenas posso acrescentar que os seus versos não revelam uma maneira
sua. (…) O seu olhar está voltado para fora: eis o que não deve tornar a acontecer. (…) Há só um caminho: entre em si próprio e procure a necessidade que o faz escrever. Veja se esta necessidade tem raízes no mais profundo do seu coração. Confesse-se a fundo: ‘Morreria se me não fosse permitido escrever?’ (…) Aproxime-se da natureza. Experimente dizer, como se fosse o primeiro homem, o que vê, o que vive, o que ama, o que perde. Não escreva poemas de amor. Evite, de princípio, os temas demasiado correntes; são os mais difíceis. (…) Diga as suas tristezas e os seus desejos, os pensamentos que o afloram, a sua fé na beleza. Diga tudo isto com uma sinceridade íntima, calma e humilde. (…)
Apenas me é possível dar-lhe este conselho: mergulhe em si próprio e sonde as profundidades onde a sua vida brota. Só lá encontrará a resposta à pergunta ‘Devo criar?’ Desta resposta recolha o som sem forçar o sentido. (…)
Apenas fiz questão de aconselhá-lo a evoluir segundo a sua lei, gravemente, seguramente. Não lhe seria possível perturbar mais violentamente a sua evolução do que dirigindo o seu olhar
para fora, do que esperando de fora as respostas que só o seu sentimento mais íntimo, na hora mais silenciosa, poderá talvez dar-lhe. (…)
A minha dedicação e a minha simpatia. Rainer Maria Rilke”
[foto a partir do livro Lettres à Lou Andreas-Salomé, de Rilke (Paris: Mille et une nuits, 2005)]