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quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

A força que as mãos têm

 


A universalmente conhecida escultura de Rodin intitulada “Catedral” (1908) atrai pelo entrelaçar de duas mãos, que não se tocam, numa forma que convida à aproximação, ao recolhimento, à elevação. A delicadeza que transparece esculpida deixa que o silêncio domine, num crescendo que vai muito além da visão das mãos que quase prolongam o movimento - olhamos esta obra (que, inicialmente, não teve esse título) e associamos-lhe a expressividade que a mão tem em toda a obra de Auguste Rodin (1840-1917). Não terá sido a pensar nesta escultura que João Pina de Morais (1889-1953) escreveu sobre a imagem das mãos (mesmo porque o fez quando estava como combatente na Grande Guerra) no seu diário, em 24 de Abril de 1917, mas a citação poderia constituir legenda para a peça de Rodin: “As mãos são expressivas: como são suplicantes quando se erguem a encaminhar para o céu as palavras que se vão dizendo; como são dolorosas quando cheias de dor se contorcem aflitivas, e mais e mais.” (in A quem encontrar este livro… - Diário de Guerra 1917-1918, publicado em 2015).

A mão, símbolo de acção, de poder ou de generosidade, é também objecto de leituras poéticas, por vezes reprimidas pelos poderes instituídos... Quando a censura se deparou, em 1946, com a publicação colectiva Bloco - Teatro, Poesia, Conto, não hesitou em proibir a circulação da obra, entre outros motivos por causa do poema “Cântico” (em que o censor apôs um risco vermelho), de Mário Ruivo (1927-2017), um texto contra o trabalho escravo, que proclama: “Nós não temos carabinas / nem bombas nem baionetas // Nós não temos bombardeiros / nem couraçados nem tanks // Nós não temos casamatas / nem jeeps nem cavaleiros // Nós não temos nada disso / Não temos Não // Mas temos as nossas mãos / que semeiam o trigo / e ceifam as searas / e amassam o pão // Nós temos as nossas mãos / que arrancam do subsolo / o ferro e outros metais / que estão nos vossos canhões // Nós temos as nossas mãos / que extraem do seio da terra / todo o petróleo e carvão / que faz mover vossos navios vossos carros celulares // Nós temos as nossas mãos / que constroem as turbinas / e manejam os volantes e as alavancas / dos geradores eléctricos // E as máquinas das fábricas paradas / e a cidade às escuras / e os colectores sem água / e o padeiro sem vir / e o mercado fechado / E tudo com fome E tudo com fome / E A VIDA PARADA // Nós não temos carabinas / Não temos Não // Mas temos as nossas mãos / Mas temos as nossas mãos”.

Igualmente intenso na mensagem, pelo desafio que constitui para o homem pensante, construtor e interventivo, é o poema “As Mãos”, que Manuel Alegre (n. 1936) incluiu no livro O Canto e as Armas (1965), título também apreendido pela polícia política do Estado Novo, soneto que assim se inicia: “Com mãos se faz a paz se faz a guerra. / Com mãos tudo se faz e se desfaz. / Com mãos se faz o poema - e são de terra. / Com mãos se faz a guerra - e são a paz.” Depois de mencionar o valor do trabalho e a força transformadora exercida pelo homem, o poema conclui com um terceto apelativo: “De mãos é cada flor cada cidade. / Ninguém pode vencer estas espadas: / nas tuas mãos começa a liberdade.”

Vale ainda lembrar o último romance de José Gardeazabal (n. 1966), A Mãe e o Crocodilo (de 2023), obra de questionamento sobre a vida e sobre o mundo, que refere a força das mãos, a propósito de um fenómeno social muito actual: “Os imigrantes imigram com as mãos, é uma maneira de ganhar a vida. Quando não se conhece a língua, ganha-se a vida com as mãos. Depois da língua, a melhor parte do corpo são as duas mãos.”

A expressividade da mão pode definir-nos relativamente aos outros e ao mundo, às crenças e às situações; daí, também, a quantidade de expressões feitas em que a palavra “mão” surge, dando ideia da pluralidade de dimensões que interferem na vida. E os poetas, esses, surpreendem-nos com o uso metafórico que dela fazem, como muito bem o demonstraram, por exemplo, Pedro da Silveira (1922-2003), quando, no “Pequeno poema infinito”, construiu o terceto “A mão sobre o mapa / não viaja, / interroga.” (in Fui ao mar buscar laranjas, 2019), ou Sebastião da Gama (1924-1952), que, em Cabo da Boa Esperança (1947), confiando na segurança da mão, escreveu “Nem um momento só, / largo das mãos meu leme de certeza”, ou, indo ao encontro do acto de criar, definiu o poeta - “Era nas suas mãos que terminavam / as coisas infinitas e as finitas. / Por isso as suas mãos eram abismos / aonde se perdia o Pensamento.”

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1235, 2024-02-07, pg. 10

** Foto: Auguste Rodin, "Catedral" - Casa-Museu Rodin, Paris

 

quarta-feira, 12 de janeiro de 2022

Como Jorge Ginja levou Mário Viegas e a poesia para a guerra



Em finais de 1968, o portuense Jorge Ginja (1940-2020) e o escalabitano Mário Viegas (1948-1996) conheceram-se no Teatro Universitário do Porto. A ligação comum ao teatro e à poesia foi responsável por um gesto que se manteve guardado durante meio século. No ano seguinte, o médico transmontano foi convocado para o serviço militar, com partida para Cabinda (Angola) no início de 1970 como oficial médico. Provavelmente, terá levado livros consigo, mas o que de certeza transportou foi quase meia centena de textos ditos pela voz de Mário Viegas, encadernados em bobine, além do respectivo aparelho leitor, claro.

Foi em 1969 que Jorge Ginja pediu ao amigo que gravasse esse conjunto - 47 poemas e 2 textos dramáticos - para os levar consigo para o cenário da guerra colonial. Em 2021, Catarina Ginja e Pedro Ginja decidiram partilhar essa memória, reunindo em livro os textos gravados e passando para cd os sons das fitas, num trabalho em que estiveram também envolvidas a livraria portuense In-Libris e a Direcção Regional de Cultura do Norte, editoras da obra, assim nascendo Voz Própria - Jorge Ginja e Mário Viegas - Poesia, Resistência e Liberdade.

Em nota introdutória ao livro, Manuela Jorge refere que a selecção dos textos coube a Jorge Ginja - “Recordo-me muito bem de me ter dito que ia marcar poemas nos seus livros e levar o Mário Viegas a casa da mãe, para gravarem os poemas que queria levar para a guerra.” No prefácio que assina, Manuel Alegre admite como “possível que Mário Viegas tenha sugerido alguns textos”. Temos assim uma antologia lida e dita, construída por dois nomes que partilhavam o gosto da representação e da poesia, mas também das ideias.

Entre os poetas representados, constam: Gastão Cruz, Guerra Junqueiro, José Gomes Ferreira e Sebastião da Gama (todos com um poema); António Gedeão, Armindo Rodrigues, Joaquim Namorado, Pablo Neruda e Vinicius de Moraes (dois poemas); Bertolt Brecht (quatro poemas); Ary dos Santos e Manuel Alegre (sete poemas); Alexandre O’Neill (quinze poemas). Os textos dramáticos devem-se a Máximo Gorki (excerto da peça “Pequenos Burgueses”) e a Anton Tchékhov (“Os malefícios do tabaco”).

Em tão vasto leque, consegue o leitor-ouvinte encontrar pontos fortes como: a força da palavra; o encorajamento e o incentivo à acção; a denúncia da guerra e da prisão; a ironia; o triângulo da emigração, do exílio e do longe; a ausência; a liberdade; a partilha e a busca da paz. E percebe-se o que seria a proximidade de ideias entre os dois amigos que recriaram a poesia, como se entende o subtítulo escolhido para o livro: desde a liberdade cantada por Armindo Rodrigues (“Ser livre é querer ter um rumo / e ir sem medo”), à memória de Manuel Alegre no dia de aniversário na prisão em Maio de 1963, à indignação do soldado por uma guerra que não dava sinais de paz nas palavras de Brecht, à ironia de Ary na descrição de um “país de luz” e de “pus”, para concluir no manifesto da personagem tchekhoviana - “Só apetece fugir não se sabe para onde” e deixar “esta vida estúpida e banal, esta vida medíocre, que fez de mim um deplorável pateta”.

A recolha dos textos, em obras publicadas entre 1885 e 1969, segue o critério dessa afirmação dos dois amigos. E, na voz de Viegas, então com 20 anos, percebemos já o fulgor do artista que era. Este livro é de antologia! Pela beleza do objecto, claro. Mas sobretudo pela poesia, pelo pensamento, pela arte, pela memória, pela história que o criou!

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 763, 2022-01-12, p. 9.


sábado, 21 de março de 2020

Neste Dia Mundial da Poesia...


... dois poemas de que gosto muito: "As mãos", de Manuel Alegre, e "O sonho", de Sebastião da Gama, um e outro autor incontornáveis, um e outro poema igualmente incontornáveis. Dois grandes momentos da poesia portuguesa do século XX, que continuam a cumprir-se, que têm de continuar a cumprir-se!





sexta-feira, 9 de junho de 2017

Prémio Camões 2017 para Manuel Alegre


A 29ª edição do Prémio Camões teve como vencedor Manuel Alegre. Parabéns ao poeta, romancista, cronista! Parabéns ao militante das causas cívicas e ao cidadão interventivo! Parabéns, Manuel Alegre!


Do Público:
Antes do prémio agora atribuído a Manuel Alegre, o Brasil, com 12 premiados, tinha apenas mais um do que Portugal, que estreou a galeria com Miguel Torga, o primeiro escritor a receber o Camões, em 1989. Nos anos seguintes, o prémio voltou a ficar em Portugal com Vergílio Ferreira (1992), José Saramago (1995), Eduardo Lourenço (1996), Sophia de Mello Breyner Andresen (1999), Eugénio de Andrade (2001), Maria Velho da Costa (2002), Agustina Bessa-Luís (2004), António Lobo Antunes (2007), Manuel António Pina (2011) e Hélia Correia (2015).
A lista de premiados brasileiros começa com João Cabral de Melo Neto, em 1990, e inclui Rachel de Queiroz (1993), Jorge Amado (1994), António Cândido (1998), Autran Dourado (2000), Rubem Fonseca (2003), Lygia Fagundes Telles (2005), João Ubaldo Ribeiro (2008), Ferreira Gullar (2010), Dalton Trevisan (2012), Alberto da Costa e Silva (2014) e Raduan Nassar (2016).
O poeta moçambicano José Craveirinha foi o primeiro autor africano a receber o Camões, em 1991. Em 1997, Pepetela, então com 56 anos, tornava-se simultaneamente o primeiro angolano e o mais jovem autor de sempre a ser galardoado com este prémio, que só voltaria à literatura africana em 2006 para reconhecer a obra do angolano Luandino Vieira, que recusou o galardão. Em 2009, venceu o poeta cabo-verdiano Arménio Vieira, e, em 2013, o escolhido foi o romancista moçambicano Mia Couto.

quarta-feira, 5 de abril de 2017

Para a agenda - Fernando Rolim e o tempo de Coimbra



Fernando Rolim (n. 1931), nome desde sempre ligado à medicina e ao fado de Coimbra, vai apresentar o cd Coimbra, Um Tempo que Não Passa em 8 de Abril, no salão Nobre da Câmara Municipal de Setúbal, pelas 17h00.
No libreto que acompanha o cd, escreve Manuel Alegre que Fernando Rolim “permaneceu sempre fiel a si mesmo e à toada tradicional do fado de Coimbra a que trouxe algo de inconfundível: a arte de bem cantar, com sabedoria, sem nunca falhar uma nota e sem nunca transigir com o facilitismo.” E Nuno Pacheco, em artigo recente no diário Público, escrevia sobre este trabalho: “O disco agora editado tem o mérito, para lá de nos surpreender com uma voz segura e jovial que ignora olimpicamente a idade do cantor, de ‘ressuscitar’ algumas guitarradas dos anos 1980, onde se ouvem as guitarras dos saudosos António Portugal (1931-1994) e António Brojo (1928-1999); de recordar temas de Menano, Hilário, Edmundo Bettencourt, Anthero da Veiga e outros; e, por fim, de trazer para a ribalta colectivos musicais como o Grupo Etnográfico da Região de Coimbra, a Quarentuna ou a Tuna do Antigos Tunos da Universidade de Coimbra.”
Uma oportunidade para a agenda!

domingo, 14 de agosto de 2011

Urbano Bettencourt - uma escrita fina...

... de ironia inteligente, com humor quanto baste, divertida, que mexe com o leitor.
Um exemplo?
Este, retirado de Que Paisagem Apagarás? (Ponta Delgada: Publiçor, 2010), que, em boa hora, foi apresentado em Setúbal pelo Manuel Medeiros há uns meses. Ei-lo:

Vida Social
Ele frequentava muito a literatura.
Para falar de gastronomia, citava o lascivo e doce passarinho de Camões. Os transportes marítimos não passavam sem dois ou três versos do poeta Alegre. A ecologia vinha, por norma, acompanhada de uns excertos de Sophia. O boletim meteorológico pendia sempre para umas frases de Nemésio. E até os problemas oftalmológicos desembocavam fatalmente em Saramago.
Era o perfeito socialite da literatura.

domingo, 27 de dezembro de 2009

Poemas de Natal (10) - Manuel Alegre

A Luísa optou por uma mensagem da autoria de Manuel Alegre.

NATAL
Acontecia. No vento. Na chuva. Acontecia.
Era gente a correr pela música acima.
Uma onda uma festa. Palavras a saltar.
Eram carpas ou mãos. Um soluço uma rima.
Guitarras guitarras. Ou talvez mar.
E acontecia. No vento. Na chuva. Acontecia.

Na tua boca. No teu rosto. No teu corpo acontecia.
No teu ritmo nos teus ritos.
No teu sono nos teus gestos. (Liturgia liturgia).
Nos teus gritos. Nos teus olhos quase aflitos.
E nos silêncios infinitos. Na tua noite e no teu dia.
No teu sol acontecia.

Era um sopro. Era um salmo. (Nostalgia nostalgia).
Todo o tempo num só tempo: andamento
de poesia. Era um susto. Ou sobressalto. E acontecia.
Na cidade lavada pela chuva. Em cada curva
acontecia. E em cada acaso. Como um pouco de água turva
na cidade agitada pelo vento.

Natal Natal (diziam). E acontecia.
Como se fosse na palavra a rosa brava
acontecia. E era Dezembro que floria.
Era um vulcão. E no teu corpo a flor e a lava.
E era na lava a rosa e a palavra.
Todo o tempo num só tempo: nascimento de poesia.

Manuel Alegre, Coisa Amar (1976)

sábado, 7 de março de 2009

Manuel Alegre no "Expresso"

Manuel Alegre é entrevistado no Expresso de hoje, com um antetítulo que diz que o entrevistado “quebra o silêncio”. Não sei se terá sido boa ideia esta para apresentar um homem que se tem comprometido contra o silêncio…
Obviamente, a entrevista fala da política e do mal-estar que o deputado e poeta (tem) causa(do) e muitas pistas podem ser tomadas. Mas há uma que não deixo em claro: sendo Alegre um “militante do PS”, uma “referência histórica do PS”, não deixa de ser interessante o seu discurso sobre os partidos e o seu papel, que o mesmo é dizer sobre os partidos e as suas vantagens e perigos.
Diz Alegre: “Os partidos não esgotam a democracia. Até a podem estragar. Sempre fui renitente em relação à lógica partidária. Mesmo na clandestinidade, fui um homem do partido por força das circunstâncias históricas, mas fui sempre um rebelde. As pessoas devem preocupar-se, a começar pelos líderes, com este fenómeno de os partidos se transformarem na entronização de um líder, seja ele qual for. É o grau zero da política, da discussão, da ideologia. Neste congresso [do PS em Espinho, no fim-de-semana passado], nem a moção do secretário-geral foi discutida!”
Aviso para os de fora e para os de dentro. Vale a pena repensar o papel dos partidos. Ou, pelo menos, na forma como muita gente chega aos lugares dos partidos e nas transformações que depois lhes imprime. Um partido é feito de pessoas, sabemos. Mas, atrás delas, vão muitos interesses, que, por vezes, falam mais alto do que a cidadania. Um partido deve ser um fim, um meio ou um contributo?

segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Uma noite com Luiz Pacheco

São cerca de três dezenas os textos que compõem Raio de luar (Lisboa: Oficina do Livro, 2003), conjunto de “artigalhada” produzida para jornais, em que revemos Luiz Pacheco na sua força e na sua coerência, apetecendo dizer com Rui Zink (que prefacia o livro): “Já fiz mais-valia com a leitura de Luiz Pacheco. Tradução: já ganhei muito com a sua leitura. E garanto que, nestes tempos cinzentos, não é coisa pouca, encontrar livros que nos dêem mais-valia.”
Pelas páginas de Raio de luar perpassam memórias e olhares sobre o mundo e sobre a cultura portuguesa, ao mesmo tempo que vai ficando um rasto autobiográfico assumido. Pacheco escreve sobre os outros para também falar de si. A variedade temática é grande, ocupando destacado e principal lugar a literatura, seja pelos nomes que são invocados, seja pelos assuntos trazidos (censura e liberdade, epistolografia, movimentos, vida editorial), seja pelas leituras que vão sendo acusadas.
A ironia e o riso surpreendem em muitas ocasiões, numa escrita que acompanha o gesto do próprio “escriba” – “onde o destempero das duas manas me deu enorme vontade de rir, foi quando a Clarinha revelou que tem medo do futuro. Medo de ficar sem emprego. É boa!” Mas também a pedagogia entra neste conjunto de textos, haja em vista a história de uma consulta no hospital de S. José, contada em “Granito? Não, obrigado”, que bem poderia constituir um texto de importância para o atendimento hospitalar… ainda que conclua com a promessa de, numa próxima consulta, transportar “uma moca tipo riomaior”…
Embora falando preferencialmente do que vê e lê, não esquece também as pequenas histórias do que viveu, em muitas ocasiões deixando que o eu se exponha – pelos sítios que frequenta (entre Palmela, no lar, e Setúbal, nas livrarias e na Biblioteca, por exemplo), pelo ambiente do seu quotidiano (o olhar sobre os companheiros de residência), pelas considerações quanto ao que lhe falta (“em Palmela, há um castelo, mas livrarias, que é delas?”, “Setúbal, cidade sob vários aspectos periférica em termos culturais”), pelas identificações (“o que mais me encanta neste livro é a alegria que ali julgo surpreender no acto da escrita”, dirá a propósito de O manto, de Agustina), pelas memórias agradáveis guardadas de alguns professores (Câmara Reys, que lhe indicou leituras, Vitorino Nemésio, o “labioso volúvel” que apreciava, ou António Gedeão, aliás Rómulo de Carvalho, verdadeiro “exemplo do humano”), pelo recuo até à infância alentejana (a propósito de uns poemas de Manuel Alegre), pelos “fait-divers” (como a sua entrada no filme Conversa acabada), pelo seu gosto e orgulho enquanto editor (“se há coisa que me encha de cagança é essa minha actividade de Editor, a qual excede de longe a de Autor e lanço daqui mesmo um desafio: não pode haver em Portugal nenhuma bibliotecazinha decente que não tenha lá um livro editado por mim – poesia ou teatro, cinema, ficção, ensaio”) e pela sua exposição do que considera ser um “escritor maldito” (título com que o cognominaram) em texto que encerra o livro.
Raio de luar lê-se de seguida, que o difícil é parar. E por essa escrita vai passando o tom oralizante de Pacheco, quase como se numa conversa estivéssemos… mas apenas ouvindo-o. Lendo-o, aliás.

domingo, 16 de novembro de 2008

Manuel Alegre em entrevista no "Diário de Notícias" de hoje

DÉFICES DE IDEIAS - «(…) Não acho que haja uma situação de asfixia. Temos eleições livres, estamos aqui a falar livremente, os partidos da oposição podem falar... Se calhar também há um défice de oposição, há com certeza um défice de oposição e um défice de alternativas. De tal maneira que às vezes parece que eu é que estou a fazer a oposição! Mas sempre houve vozes críticas dentro do PS. (…)»
DIÁLOGO - «(…) Estou disponível para facilitar o diálogo e o encontro entre pessoas de diferentes quadrantes, para pensar em políticas, políticas públicas, políticas alternativas, para reflectirem sobre novos rumos e sobre um novo paradigma. (…)»
ESQUERDA - «(…) Neste momento, a esquerda está muito debilitada. Pergunto mesmo, onde é que está a esquerda como solução política? (…)»
JUVENTUDE E PARTIDOS - «(…) Os quadros novos, as novas elites, seguem outros caminhos, não vão querer meter-se em partidos políticos muito fechados em si mesmos, com muita mediocridade lá dentro e, sobretudo, muito afunilados. Não quer dizer que não se interessem pela vida pública. Tenho filhos, conheço amigos dos meus filhos, muita gente nova. Na minha campanha tive esse privilégio de ter muita gente nova, gente que me dizia que era a primeira vez que abraçava uma causa. Mas não estão para suportar essa coisa de estar num partido, sujeitos a um presidente de federação que funciona com um cacique. Não estão para isso, vão à vida deles! Isto não é bom para a democracia.»
MAIORIAS - «(…) As maiorias absolutas num país como o nosso são propícias ao aparecimento de certos tiques. (…)»
MINISTRA DA EDUCAÇÃO - «(…) Irritei-me com a ministra da Educação e ele ficou um bocado nervoso com as coisas que eu disse, embora também tenha acrescentado que eu tinha o direito a ter a minha opinião. Respondi que gostaria que me dessem boas razões para não ter tantas razões de crítica. (…)»
NOVOS NA POLÍTICA - «(…) As pessoas também têm de aprender que a política se faz com rupturas, se faz com risco, se faz com ousadia! É uma coisa que me preocupa na nova geração: aqueles que vêm das juventudes são muito programados, são muito prudentes, fazem contas a tudo. (…)»
O QUE NOS CARACTERIZA - «(…) É necessário investir também no sector produtivo e nos seus núcleos mais competitivos: Investir na agricultura, em bens agrícolas, porque temos de diminuir a dependência do exterior e garantir a soberania nacional! Acabou-se com a agricultura, acabou-se com as pescas e acabaram-se com as indústrias tradicionais em Portugal como consequência da nossa entrada na União Europeia (UE). A questão da agricultura foi mal pensada, mal resolvida, mal negociada. E a das pescas também! Teve não só consequências económicas, mas também sociais e culturais. A agricultura e as pescas fazem parte da nossa própria identidade e da nossa soberania. Portanto, o investimento na agricultura é importante, porque a terra é a principal riqueza, a terra nunca se desvaloriza, e nós estamos entalados entre a Espanha e o mar... Tudo, neste momento, é muito volátil, tudo, neste momento, é muito incerto, não é? Somos uma velhíssima nação que foi pensada por grandes homens em momentos decisivos e através dos séculos e temos de saber garantir a nossa autonomia. Porque o facto de estarmos na UE - e sou partidário de estarmos na UE porque devemos estar na vanguarda e no centro das decisões - não significa uma dissolução nacional. (…)»
PARTIDO COMUNISTA - «(…) O PCP, basta ler as suas teses, tal como está não me parece que queira aliança nenhuma ou que esteja nessa disposição. Aliás, nunca a quis, e foi um dos males da nossa democracia em 74/75. (…)»
PARTIDO SOCIALISTA - «(…) O partido neste momento é uma máquina eleitoral, é uma máquina de poder. Deixou de ter uma vida própria e uma vida autónoma, a direcção do partido é o Governo. (…)»
PARTIDOS E CIDADÃOS - «(…) Os partidos afunilaram muito a sua vida, e há um divórcio hoje, não só aqui, muito grande entre a vida política partidária e a sociedade e os cidadãos. (…)»

terça-feira, 11 de novembro de 2008

As palavras de Manuel Alegre na "OPS"

«(...) Confesso que me chocou profundamente a inflexibilidade da Ministra e o modo como se referiu à manifestação, por ela considerada como forma de intimidação ou chantagem, numa linguagem imprópria de um titular da pasta da educação e incompatível com uma cultura democrática.
Confesso ainda que, tendo nascido em 1936 e tendo passado a vida a lutar pela liberdade de expressão e contra o medo, estou farto de pulsões e tiques autoritários, assim como de aqueles que não têm dúvidas, nunca se enganam, e pensam que podem tudo contra todos.
O Governo redefiniu a reforma da educação como uma prioridade estratégica. Mas como reformar a educação, sem ou contra os professores? Em meu entender, não é possível passar do laxismo anterior a um excesso de burocracia conjugada com facilitismo. Governar para as estatísticas não é reformar. A falta da exigência da Escola Pública põe em causa a igualdade de oportunidades. Por outro lado, tudo se discute menos o essencial: os programas e os conteúdos do ensino. A Escola Pública e as Universidades têm de formar cidadãos e não apenas quadros para as necessidades empresariais. No momento em que começa a assistir-se no mundo a uma mudança de paradigma, esta é a questão essencial. É preciso apostar na qualificação como um recurso estratégico na economia do conhecimento, através da aquisição de níveis de preparação e competências alargados e diversificados. Não é possível avançar na democratização e na qualificação do sistema escolar se não se valorizar a Escola Pública, o enraizamento local de cada escola, a participação de todos os interessados na sua administração, a autonomia e responsabilidade de cada escola na aplicação do currículo nacional, a educação dos adultos, a autonomia das universidades e politécnicos.
Não aceito a tentativa de secundarizar e diminuir o papel do Estado no desenvolvimento educacional do nosso país. Sou a favor da gestão democrática das escolas, com participação dos professores, dos estudantes, dos pais, das autarquias. Defendo um forte financiamento público e um razoável valor de propinas, no ensino superior, acompanhado de apoio social correctivo sempre que necessário. E sou a favor do aumento da escolaridade obrigatória para doze anos. Devem ser criadas condições universais de acesso à escolaridade obrigatória, nomeadamente através de transporte público gratuito e fornecimento de alimentação. O abandono escolar precoce deve ser combatido nas suas causas sociais, culturais e materiais.
Não se pode reformar a educação tapando os ouvidos aos protestos e às críticas. É preciso saber ouvir e dialogar. É preciso perceber que, mesmo que se tenha uma parte da razão, não é possível ter a razão toda contra tudo e contra todos. Tal não é possível em Democracia.»
in OPS! - Revista de opinião socialista. Nº 2, Novembro.2008.

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Professores e Ministério da Educação: o que falta para que a mediação seja urgente?

No programa de opinião "Conselho Superior" que a Antena 1 emitiu hoje, foi a vez de José Miguel Júdice falar sobre a manifestação de professores e sobre o relacionamento entre o Ministério da Educação e os professores. Perante a evidência de que as duas partes estão a seguir posições cada vez mais extremas (na manifestação ficou a ideia de que a contestação é para continuar e o Primeiro-Ministro já advogou a inflexibilidade), Júdice defendeu a necessidade de se proceder a uma mediação entre os dois parceiros e, em resposta ao jornalista, indicou mesmo alguns nomes que poderiam ter esse papel de mediadores entre o Governo e representantes do docentes como Manuel Alegre, António Barreto ou Marcelo Rebelo de Sousa.
A necessidade de mediação anda evidente desde há muito e só por teimosia de qualquer das partes ela não acontece. Foi, de resto, já defendida em Março, ainda antes da primeira manifestação, que levou a Lisboa 100 mil professores. Recordo de, no debate televisivo "Prós e Contras" que antecedeu a manifestação, João Lobo Antunes defender a existência de mediadores, com o argumento: “há um desacordo e tem que ser negociado esse desacordo”.
Depois da manifestação, em 16 de Março, Daniel Sampaio escrevia no Público, apelando também à mediação: «Se tudo continuar como até aqui, todos dirão que não recuam, mas não haverá reformas na educação, o clima escolar sofrerá progressiva deterioração e os alunos (a quem ninguém pede opinião...) serão os mais prejudicados. Uma mediação bem conduzida mostrará alguns aspectos positivos desta equipa do ME: os cursos profissionais, o Plano Nacional de Leitura, o inglês no primeiro ciclo, a permanência por três anos dos professores nas escolas; e evidenciará a necessidade de outras formas de escuta e participação dos docentes no futuro da educação, afinal aquilo que falhou de forma tão clara.»
Não sei se, neste momento, os sindicatos são os parceiros ideais para a mesa da mediação. Mas recordo que a manifestação de Março teve organizadores que não foram os sindicatos, demonstrando-se mesmo que não era uma questão sindical aquela que fazia mover a contestação. Perante a onda cavalgada por ideologias (venham elas dos partidos ou dos sindicatos), talvez a mediação deva encontrar outras representações, mesmo porque já se viu a incompatibilidade negocial entre Ministério da Educação e sindicatos...
Difícil, difícil, porque insustentável, é este fazer-de-conta que tudo se resolve pela teimosia (para usar o disfemismo) ou pela inflexibilidade (para quem seja mais eufemístico), venham eles de onde vierem... Está-se à espera de quê para haver uma mediação?

quinta-feira, 24 de julho de 2008

Manuel Alegre - sete partidas entre o Infante e o eu

O último livro de poesia de Manuel Alegre intitula-se Sete partidas (Lisboa: Edições Nelson de Matos) e apresenta-se como um poema dividido em doze partes, cujo título é sugerido pela figura que acompanha todo o poema – o infante D. Pedro (1393-1449), filho de D. João I, homem culto e viajado, que ficou conhecido com o epíteto de “Príncipe das Sete Partidas”.
O texto enuncia situações motivadoras para a escrita de um poema, aí funcionando como justificação para o próprio acto de poetar e de escrever – “pode escrever-se um poema quando as águas / irrompem no caderno e as montanhas se abrem / e do outro lado subitamente aparece // o país que não há”.
A poesia aparece, pois, como a (re)invenção do mundo, mas apresenta-se também como momento de reflexão ou de paragem num percurso. São vários os instantes em que é sugerida uma alteração de rumo – “O poema escreve-se nessa razão misteriosa que leva o Infante a retirar-se / sem saber ou talvez sabendo que ao fazê-lo está / a retirar-se da própria História e a permitir / que sejam outros a fazê-la e a escrevê-la” ou “Chega um tempo em que um homem se interroga / sobre o último sentido ou o sem sentido / o como o quê o para quê e o para onde / um tempo de balanço em que se mede / o vivido e o não vivido.”
O infante D. Pedro é um pretexto e o poema oscila entre a história dessa figura e o tempo de agora, em que o poeta é protagonista também – “eu sei que no mais fundo de mim / por entre pedras provocações insultos / enquanto D. Pedro avança eles atacam / às 20 em ponto na TV. E o poema escreve-se / no dia adverso como um sol inverso.” É, aliás, este indicador de contemporaneidade, aliado a outros (um tratado da Europa em Lisboa, por exemplo), que permite uma leitura deste poema sob a marca da escrita autobiográfica, acentuada em versos como estes, onde o poeta faz coincidir a data de escrita com a data de aniversário de Manuel Alegre: “O poema escreve-se (…) / por dentro / de nós mesmos neste 12 de Maio de 2008 / com tanta carta redigida e ainda não cumprida / tanta História já feita e ainda por fazer / e uma vida já longa na tão curta vida.”
Um poema abre, pois, outras saídas, outros paraísos, formas de dizer e de viver, partidas que existem também para o interior do poeta – “Há sempre outra cidade só na alma / um mar onde só chega o pensamento / um saber como Sócrates que se não sabe / senão que não se sabe e tudo passa / e só nesse passar é que se sabe.”

sexta-feira, 7 de março de 2008

Manuel Alegre, a segurança das manifestações... e um hábito que se vai instituindo?

Escreve Manuel Alegre hoje no seu blogue: "A ida da polícia a várias escolas em vésperas de uma manifestação nacional de professores tem de ser rapida e cabalmente esclarecida. É preciso saber quem foi, quem mandou e para quê. Não bastam explicações administrativas, exige-se uma resposta política de acordo com a tradição democrática do Partido Socialista e sem transferência de responsabilidades de cima para baixo. Caso contrário, algo não estará certo nesta democracia, pela qual somos todos responsáveis. Sobretudo aqueles que por ela lutaram e aqueles a quem, como aos órgãos de soberania e, em especial, ao senhor Presidente da República, cabe garantir os direitos e liberdades dos cidadãos."
De acordo com notícias divulgadas no Público, «a PSP visitou anteontem várias escolas do país perguntando quantos professores iriam aderir à manifestação de amanhã. (...) Ontem, ao início da noite, a PSP sustentou que quis apenas “garantir a segurança dos manifestantes” e, pouco tempo depois, o próprio Rui Pereira anunciava a abertura de um processo de averiguações.»
Já há tempos tinha havido uma situação parecida por causa de uma manifestação que iria ter lugar em local que o Primeiro-Ministro iria visitar. O argumento foi também o da segurança. Nesse caso, poder-se-ia perceber... era local, as forças de segurança estavam preocupadas...
Mas agora? Andar pelo país, aqui e ali, sabendo junto das escolas quantos irão participar numa manifestação em Lisboa, com base nas garantias da segurança dos manifestantes? Sempre foi assim?

quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

Camões pela pena de Alegre

Quando eu era criança, lembro-me de ver na minha casa e nas casas de pessoas de família ou amigas, normalmente na sala de visitas, um livro grande, encadernado, que se destacava de todos os outros. Nem sempre era da mesma cor, mas em todos eles havia o desenho de um homem com uma coroa de louros na cabeça e uma pala num olho. Um dia perguntei que livro era.” Está o leitor mesmo a ver que se tratava de Os Lusíadas. Foi, aliás, isso que, pela voz do pai, o narrador desta história ouviu, início de desvendamento de um mistério e começo de uma relação cultural, identitária e poética.
O texto que assim começa é também o princípio do mais recente livro de Manuel Alegre, intitulado Barbi-Ruivo – O meu primeiro Camões (Lisboa: Dom Quixote, 2007). E pode-se justificar o título: não havendo nenhum retrato de Camões feito a partir do modelo original, foi um registo documental escrito da Casa da Índia, datado de 1550 e divulgado por Faria e Sousa, biógrafo de Camões, que apresentou o poeta como “barbi-ruivo”, termo que Alegre recupera; quanto ao subtítulo, de feição metonímica, ele faz o cruzamento da vida e da obra camonianas com as memórias do narrador, mais precisamente, com as lembranças que o narrador tem do que, ao longo da vida, foi aprendendo e lendo de e sobre Camões.
Constituído por três partes, o livro é dedicado por Manuel Alegre aos netos, numa tentativa de passar a palavra, de transmitir o testemunho, recuando o narrador até à infância para contar os seus primeiros contactos com o tesouro camoniano – primeiro, pela vista (ver os livros); depois, pela audição (o pai lia-lhe Camões, de tal forma que a criança decorou o início da épica e alguns sonetos); mais tarde, pela leitura a expensas próprias.
Para o narrador, pontos marcantes deste percurso camoniano foram: a musicalidade (que o levou a aprender Camões de cor - “eu subia para cima de uma cadeira, dizia os versos e tinha a sensação de que dentro das palavras havia um ritmo, quase se podia assobiar ou entoar baixinho, era uma forma de música”); o ritmo (que, nalguns poemas, “lembrava o das canções e dos fados que se ouviam nas ruas e na rádio”); o amor (manifestação em que o soneto “Amor é um fogo que arde sem se ver” levava a palma nas declarações amorosas da geração do narrador e que também é essencial para a compreensão dos poemas de Camões, pois que “segundo o amor que tiverdes, tereis o entendimento de meus versos”); a diferença (várias mulheres ocupam o cenário da paixão camoniana, todas com traços fisionómicos e de raça diversos, numa pluralidade inebriante, que leva Alegre a considerar que “dois dos maiores poemas de amor da nossa língua – trovas a Bárbara cativa e 'Alma minha, gentil que te partiste', motivado por Dinamene – foram inspirados por mulheres de outra cor”); a procura de uma identidade (capítulo longo é o intitulado “Embarcar n’Os Lusíadas”, que passa sobre a epopeia e sobre os seus mais conhecidos e mais bem conseguidos episódios, numa “viagem pela nossa História” e até pela história da leitura e da recepção desta obra, visível, por exemplo, no testemunho do tempo do liceu – “o canto IX era o mais proibido e censurado e, por isso, o mais apetecido… afinal, um dos mais belos”); as leituras inovadoras (a figura do “Velho do Restelo” é apresentada como materialização da voz do próprio Camões, numa crítica ao processo como se desencadearam os descobrimentos, a descrição dos fenómenos naturais é vista como sendo “dos momentos mais inovadores e mais belos” do poema, o Adamastor é encarado como um “momento essencial” na história porque “decide o sucesso da viagem”); a lenda (em que a própria figura de Camões surgiu envolvida, prestando-se a isso um homem cultíssimo que escreveu o mais genial poema português e viveu na miséria, que deixou a ideia tão agradável e romanticamente definidora do ser português da “vida pelo mundo em pedaços repartida”, e de cujo percurso biográfico pouco se sabe, não existindo mesmo documentos autógrafos).
Ao longo dos tempos, Camões e a sua obra têm servido adaptações várias, com públicos diversificados. Assim, de repente, vêm à memória títulos como Os Lusíadas contados às crianças e lembrados ao povo (1930, de João de Barros), Aventuras do Trinca-Fortes (1946, de Adolfo Simões Müller), Camões poeta mancebo e pobre (1980, de Matilde Rosa Araújo), Camões (1990, texto de Oliveira Cosme e banda desenhada de Carlos Alberto Santos). Barbi-Ruivo junta-se a este rol de visitações da obra camoniana e, parecendo destinar-se aos mais jovens (quer pela dedicatória do autor, quer pelo aspecto gráfico), a verdade é que o seu público será quem queira conhecer a vida e a obra de Camões, em visita guiada por Manuel Alegre, um poeta do século XXI, que, na sua obra, também já tomou o épico para fonte de inspiração.
Diga-se ainda que a obra tem ilustrações de André Letria, conjunto de uma dúzia de desenhos de temática camoniana, em todos constando o livro como elemento comum, assim dando valor ao que de mais importante existe num poeta – a sua obra.
[Fotos: capa do livro e desenho do Adamastor, por André Letria.]

quarta-feira, 1 de agosto de 2007

Baptista-Bastos, sobre o medo

Ainda falando sobre o medo que Manuel Alegre pretendeu pôr na ribalta da discussão e que muitos "iluminados" acharam ser conversa estéril e na sequência do que aqui publiquei ontem, apreciei o já conhecido tom da bela escrita e do desempoeiramento usado por Baptista-Bastos no Diário de Notícias de hoje, intitulado "Discurso sobre o medo". A ler.

terça-feira, 31 de julho de 2007

No "Correio de Setúbal" de hoje

DIÁRIO DA AUTO-ESTIMA – 64
Manuel Alegre I – O artigo que o diário “Público” recentemente divulgou, assinado por Manuel Alegre, “Contra o medo, a liberdade”, agitou águas e demonstrou como são envernizadas as relações entre políticos, muitas vezes do mesmo partido. Alegre manifestou-se contra uma forma de estar na política e no poder que tem permitido o funcionamento da chamada “lógica de aparelho”, em nome da qual tudo vale, ela mesma erigida em ideologia. A oportunidade deste escrito resulta das situações apontadas como sendo “a delação e a confusão entre lealdade e subserviência”. Toda a gente sabe a que acontecimentos se refere Manuel Alegre e também não se pode ignorar que, não tendo que haver heróis, não ficaram bem os processos pelos quais os decisores tomaram as decisões relativamente aos casos de que se tem falado.
Manuel Alegre II – Poder-se-á dizer que o conteúdo desta mensagem não é novo nas intervenções do deputado-escritor. Mas o que não se poderá ignorar é a intervenção que Alegre tem tido sempre em prol da liberdade de expressão, seja nos seus poemas (que foram voz de muito “amordaçado”, que entusiasmaram por certo muitos dos políticos estabelecidos de agora), seja na sua prática de deputado, seja na sua visão de cidadania, haja em vista as vezes em que agiu por sua conta e risco, à margem do partido a que pertence.
Manuel Alegre III – Quando, após a divulgação do texto no “Público”, o histórico Almeida Santos falou numa emissora, dizendo que este texto era “humilhante”, não foi para se pôr ao lado de Alegre ou para criticar o partido, mas para, de alguma forma, minimizar os efeitos que a opinião do deputado poderia desencadear. Depois, houve comentadores que acentuaram a falta de novidade no discurso, como se todos os discursos tivessem que ter uma novidade, como se não fosse necessário falar muitas vezes do que é óbvio, porque sabemos que as evidências, de tão evidentes que são, se transformam muitas vezes em coisas esquecidas (como, por exemplo, a liberdade ou as restrições que lhe tentem impor). O ponto alto chegou com o Primeiro-Ministro a ir a reboque dos comentadores, considerando na televisão que esta opinião de Alegre faz parte do figurino, dizendo: “É um clássico. Alegre escreve de três em três anos um artigo a dizer que há medo. O PS é um partido de liberdade.”
Manuel Alegre IV – O que nenhum destes comentários conseguiu esconder foi uma certa dose de altivez, porque uma boa forma de levar ao esquecimento é ignorar ou fingir que se ignora o que se passa. Alegre foi mais bem-educado no seu texto. E conseguiu criticar, coisa que muitas opiniões geradas a partir dele não foram capazes de fazer, nem sequer de assumir como uma auto-crítica ou como um aviso. Não, em Portugal, tudo vai bem e a liberdade está garantida! Será mesmo assim?