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domingo, 29 de janeiro de 2012

Três olhares sobre Trindade Coelho


 No número de 7 de Novembro de 1897 da revista Branco e Negro, aparecia um artigo de Trindade Coelho expondo o seu pensamento sobre o que seria um conto. Reconhecido como contista a partir da obra Os meus amores (publicado em 1891), o escritor de Mogadouro confessava as razões que o levavam a considerar o conto como uma arte do seu tempo: “É uma forma literária encantadora (conquanto não mencionada ainda nos livros didácticos); e o maior assunto, ou o mais complexo, cabe no conto, pela mesma razão que nas proporções delicadas de uma miniatura pode caber, desafogado, um grande quadro. Tudo se reduz a uma questão de processo; e pelo que toca à emoção, o conto pode dá-la mais intensa, creio eu, do que o romance. Depois, os próprios jornais, com a sua insistência cronométrica de todas as horas, o seu carácter de enciclopédia, a sua variedade, ou absorvem, ou fazem aborrecido, o hábito de ler demorado – e livros, são às dúzias, e na grande maioria livros maus, o que também desanima. A vida, hoje, e cada vez mais há-de ir a pior, é pouco extensa e muito intensa. Nada, pois, de coisas demoradas: tudo se quer breve, curto, incisivo, como essa linguagem do telégrafo, que é bem a deste fim de século alucinado…”
Depois deste enquadramento circunstancial e marcado pelo tempo, Trindade Coelho tenta definir a estrutura e o modo de fazer um conto, partindo do seu percurso: “Mas como se faz um conto? O que é o conto? Não sei. Quem o sabe? Tenho dele, desse delicado género de poesia literária, a visão de uma coisa redonda, sem princípio, nem meio, nem fim, e todavia geométrico e perfeito, como uma bola de fino marfim. Isto é talvez grosseiro, este modo de exprimir – mas confesso que não tenho outro e peço desculpa…” O leitor passa por este parágrafo e reconhece o tom dos contos do seu autor, eivados das características aqui anunciadas e sentidas, justamente o modo literário que deu a Trindade Coelho o reconhecimento na literatura, embora tenha sido autor de outra obra vasta nos domínios do direito, da didáctica e da cidadania.
Em 1949, Júlio de Lemos dava à estampa o opúsculo intitulado Elogio do contista Trindade Coelho (Lisboa: revista Ocidente), com meia centena de páginas, num texto assumidamente comprometido com o título – a única parcela da obra de Trindade Coelho aflorada é a dos contos e o ensaio percorre o que foi a recepção da obra Os meus amores, vista por numerosos escritores, críticos, admiradores, portugueses e estrangeiros. Esta obra é ainda importante pelas duas listagens apresentadas no final: uma, de bibliografia constituída por títulos de escritores que homenagearam Trindade Coelho; outra, dos periódicos que, entre 1879 e 1905, em geografias diversas (Bairrada, Braga, Bragança, Coimbra, Elvas, Famalicão, Lamego, Lisboa, Paris, Ponte de Lima, Portalegre, Porto, Serpa, Viana do Castelo e Viseu) e alguns por si fundados, mereceram a colaboração de Trindade Coelho.
Júlio de Lemos conhecia bem Trindade Coelho e entre os dois existiu uma relação epistolar, tendo a revista Limiana, publicada em 1912 e dirigida por Júlio de Lemos, dado a conhecer, em vários números, um total de 34 cartas de Trindade Coelho, escritas entre 1897 e 1907. Daí que não nos surpreenda o início deste Elogio: “Pelo que observamos há cinquenta anos e pelo que desde então viemos lendo e reflectindo, estamos convencidos de que com o aparecimento do livro Os meus amores principiou uma transformação na vida literária portuguesa.” O que estava em causa era uma crítica ao Naturalismo e àquilo que era visto como os excessos dessa fase, sendo enaltecido em Trindade Coelho “a literatura casta, suave, iluminada e emotiva, que nos banha a alma numa torrente de espiritualidade, bondade e graça, a literatura que respira saúde moral e, portanto, doce, límpida, repousante e construtiva”. Júlio de Lemos alia-se, assim, ao colectivo que escolheu para apreciar o conjunto de contos de Trindade Coelho, definindo que “as constantes artísticas de Trindade foram a pureza dos seus temas e da sua linguagem, a simplicidade formal e o amor à nossa terra, que tanto louvou e exaltou”, para o que contribuem a “naturalidade, singeleza, claridade rebrilhante, cadência, musicalidade”, sentindo necessidade de sublinhar a existência de uma “simplicidade estética” na obra em apreço.
A ligação de Trindade Coelho à terra onde nasceu foi devidamente destacada por outro escritor, João de Araújo Correia, alto-duriense e também contista, quando, no último dia de Junho de 1961, para assinalar o centenário do nascimento de Trindade Coelho, discursou na Casa de Trás-os-Montes, em Lisboa, sobre o Perfil trasmontano de Trindade Coelho, conferência que verteu livro (Lisboa: Portugália Editora, 1961), dizendo, logo no início, que o escritor de Mogadouro, apesar de ter andado por várias terras (Coimbra, Sabugal, Portalegre, Ovar e Lisboa), “nunca saiu de Mogadouro”, justificando: “nunca saiu de lá, porque lá lhe ficou preso o coração à rama dos negrilhos”.
Este é o ponto de partida para considerar o “trasmontanismo” do autor de Os meus amores, apresentado por ter sido um escritor “independente”, que “não se enamorou de modas literárias” e manteve, “em cada linha escrita do seu punho, Trás-os-Montes pintado por uma pena”, com as cores da rusticidade e da delicadeza. A melhor tela, segundo Araújo Correia, está nesses contos, que revelam “o cenário do planalto, os animais rasteiros e os passarinhos, a leiva e a nuvem, a árvore e o homem, os tonilhos contados à lareira em linguagem imaculada”.
No mesmo ano em que se assinalava o centenário do nascimento de Trindade Coelho, era publicada a obra de Rogério Fernandes Ensaio sobre a obra de Trindade Coelho (Lisboa: Portugália Editora), que continua a ser uma excelente leitura da obra do escritor trasmontano.
Rogério Fernandes começa por analisar o livro mais conhecido que é essa colecção de contos intitulada Os meus amores, para introduzir a questão da arte de narrar, bem como a reflexão sobre a eventual proximidade de Trindade Coelho da estética realista.
Sem dissociar a intenção do autor de contar histórias no cenário rural da sua região, trazendo para a literatura a simplicidade e a emoção do homem do campo, considera Rogério Fernandes que as narrativas de Os meus amores são “perfeitos como realização literária” e “consistem sempre na narração de um caso, elegantemente desenvolvido nos seus lineamentos principais e encerrado com soberba mestria”, além de haver nelas, “para além dos seus episódios e da caracterização de tipos, um pensamento moral e social subjacente”. Quanto à questão do realismo, pensa Rogério Fernandes que “o realismo de Trindade Coelho é, de facto, um realismo amável, uma poetização da realidade”, já que, “no espectáculo horroroso que a sua província oferecia, o autor de Os meus amores seleccionava, unilateralmente, aqueles elementos mais susceptíveis de uma idealização lírica.”
Quase metade do estudo é dedicado a outra faceta do escritor de Mogadouro: o seu envolvimento enquanto cidadão e a sua actividade em prol da instrução, da escola e da formação cívica. Rogério Fernandes passa pelas obras que exibem o pensamento social de Trindade Coelho com uma adesão de simpatia, demonstrando a verticalidade e o compromisso do escritor, com amplo recurso a citações de obras suas e a opiniões de seus contemporâneos. Alheio a honrarias, preocupado com a necessidade de instrução popular, autor de uma proposta de forma de ser cidadão, de Trindade Coelho nos dá este ensaio um retrato vigoroso e coerente, onde cabem momentos difíceis e um percurso de vida que acaba sinuoso, com o suicídio. Só um homem “que se bateu ardorosamente pela elevação material e intelectual do seu povo e pelo ressurgimento do País” pode ter mantido a sua independência ou o caminho da sua sinceridade nos moldes em que se apresentou em carta a Luís Derouet: “A sinceridade é indisciplinada; não transige. E eu, como sincero, sou intransigente, e seria sempre, por isso, um mau partidário – fosse do que fosse e de quem fosse”.
Os contos de Os meus amores não têm, felizmente, andado esquecidos e com facilidade se encontram reedições (igualmente acessíveis quanto a custos). O facto de esta ser uma obra recomendada para leitura no ensino básico também sustenta essa presença nos escaparates. Mais difícil será encontrar a recolha que Viale Moutinho fez, em 1985, de diversos contos de Trindade Coelho que tinham ficado em jornais ou se mantinham inéditos, sob o título de Outros amores (Lisboa: Editorial Labirinto), narrativas construídas na esteira de Os meus amores. Ler Trindade Coelho continua a ser um encontro com a sensibilidade e com as histórias que têm feito a identidade de Portugal. Os três contributos aqui lembrados constituem outros tantos pretextos ou convites para ler Trindade Coelho ou para ajuizar do que foi a sua importância na literatura portuguesa.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Máximas em mínimas (75)

Sinceridade e política
«A sinceridade é indisciplinada; não transige. E eu, como sincero, sou intransigente, e seria sempre, por isso, um mau partidário - fosse do que fosse e de quem fosse.»
Trindade Coelho, em carta a Luís Derouet
(citado por Rogério Fernandes, em Ensaio sobre a obra de Trindade Coelho, 1961)

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Rogério Fernandes em Palmela

Hoje, Rogério Fernandes faria 78 anos. Coincidentemente, hoje, em Palmela, no cine-teatro S. João, foi inaugurada a exposição “Rogério Fernandes – Vida e Obra – 1933/2010”, integrada no programa da Recepção à Comunidade Educativa, promovido pela Câmara Municipal de Palmela.
A exposição, resultante de parceria entre a Universidade Lusófona e a Fundação Calouste Gulbenkian, perpassa pelas diversas áreas de intervenção em que Rogério Fernandes ficou conhecido: a literatura, o jornalismo, o ensaísmo, a educação, a intervenção cívica e política e a investigação. Além dos painéis concebidos por Henrique Cayatte, o visitante poderá ainda apreciar considerável número de espécimes bibliográficos da obra de Rogério Fernandes nas áreas da investigação, da literatura e da tradução. A abertura da exposição teve ainda a participação de Daniel Pires, do Centro de Estudos Bocageanos, que traçou o perfil do homenageado, abordando não apenas o percurso biográfico, mas também o seu legado, sobretudo na afirmação da Seara Nova.
Recordo o que se passou há pouco mais de 31 anos, quando, em 27 de Maio de 1980, com mais três colegas, entrei no gabinete de Rogério Fernandes, ali para os lados de Picoas. Andávamos às voltas com um trabalho sobre o conto “Idílio Rústico”, de Trindade Coelho, destinado a uma cadeira da Faculdade de Letras orientada pela professora Fátima Freitas Morna. Entre a bibliografia de que obtivemos informação, constava o Ensaio sobre a Obra de Trindade Coelho, de Rogério Fernandes (Lisboa: Portugália Editora, 1961). A rapariga que integrava o grupo obteve o contacto do local de trabalho de Rogério Fernandes e resolvemos telefonar-lhe a pedir um encontro para nos falar sobre o autor transmontano. Acedeu e marcou-se data. Quando lá chegámos, nesse dia 27, Rogério Fernandes recebeu-nos com a oferta de um exemplar da obrinha para cada um de nós, já previamente autografado e com dedicatória individualizada. Fiquei impressionado e comovido com o gesto, porque, estudante universitário que era, ainda no início da licenciatura, não esperava tão especial atenção de um autor, que conhecia já de nome… Mais entusiasmado fiquei depois com a conversa – durante quase duas horas, conversámos sobre Trindade Coelho, sobre a universidade, sobre participação. Rogério Fernandes desfez-se em bonomia, em atenção, em generosidade, em empenho e pediu que, depois, lhe fizéssemos chegar uma cópia do nosso trabalhito…
Cruzei-me mais duas vezes com Rogério Fernandes – uma vez, numa reunião em que se debateu o papel da Inspecção-Geral de Educação, promovida por Marçal Grilo, então Ministro da Educação; outra vez, em Setúbal, em 2005, quando Rogério Fernandes aqui veio palestrar no programa do segundo centenário da morte de Bocage. Em ambas as ocasiões lhe relembrei o fascínio que o seu gesto de 1980 tinha exercido sobre mim e a conversa era acompanhada de um sorriso de bonomia, não sei se por lembrança, se por contentamento de ver a memória do meu fascínio, se porque o relacionamento deve ser apenas assim.
Hoje, tive de lembrar estes fragmentos de vida que me deixaram saudade. E houve uma frase patente no catálogo da exposição que me revelou parte do quase mistério daquele sorriso – “educar é aceitar e respeitar a pessoa, ajudando-a a criar a sua felicidade e a participar na felicidade dos outros.” Na memória, agradeci, uma vez mais, a Rogério Fernandes o privilégio daqueles momentos.
Por tudo o que foi o percurso de Rogério Fernandes, esta exposição não pode passar em vão. Ela pode ser vista naquele espaço até 15 de Dezembro.