quarta-feira, 23 de novembro de 2022

Manuel Mendes na rota do Douro



“A terra e os homens reduzi-os à fruste expressão da arte que é meu ofício. Apenas uma molhada de singelas páginas de ‘roteiro’, colhidas pelos montes, ao sabor do acaso, a que à falta de melhor chamei ‘sentimental’, decerto por me haver tocado o coração quanto vi no meu deambular por essas serranias e esse prodigioso rio.” Assim Manuel Mendes (1906-1969) apresenta o seu livro Roteiro Sentimental - Douro (1964), o primeiro de uma trilogia que manteve a expressão “roteiro sentimental” no título, conjugando viagem e afecto pela via da escrita.

São quinze crónicas produzidas entre 1961 e 1963, inspiradas pela paisagem duriense, fortemente dominadas pela figura humana, sofrida e olhada de uma perspectiva de que não está alheio o neo-realismo - em São Salvador do Mundo, perante a dificuldade de exercer o cultivo no alcantilado da paisagem, o viajante anota: “Com assombro e com angústia, fica-se a pensar no destino desta mísera gente, na sua existência de bichos abandonados e bravios”, numa serra que é “teatro das dores e infortúnios deste homem tão indigente como heróico, diante de cujo trabalho e sacrifício temos de nos respeitar com respeitosa admiração.”

Manuel Mendes não se deixa impressionar apenas a partir do longe e a sua curiosidade leva-o a demandar os aspectos da vida naquele cenário que escorre desde Barca de Alva até ao Porto, com pormenores do quotidiano humano. Exemplo perfeito é o registo “Douro abaixo”, a mais longa crónica, relato da descida do Douro desde Pinhão até ao Porto num barco rabelo, diálogo com a Natureza e com os homens, dando conta do vocabulário específico dos “marinheiros” do rio e da sua arte, aproximando o leitor das conversas do arrais, o mestre Colino, homem que vai explicando e se sente a entrar para a história, não querendo que o ouvinte perca pitada e advertindo o viajante: “Pegue no livrinho e assente!” À mistura, são tecidas considerações sobre o que viria a ser o amargo futuro destes homens e desta região por razões tão diversas como a preferência por outros meios de transporte do vinho ou o papel dos ingleses sobre a economia local.

Estas viagens são pretexto para evocações de figuras como Camilo Castelo Branco (que andou fugido por Sabrosa cerca de 1848), Barão de Forrester (o inglês que pugnou pela qualidade do vinho do Porto, desenhou um mapa do Douro e acabou afogado no rio num acidente de barco), Fanny Owen (a jovem protagonista de uma história de amor dramática), Aquilino Ribeiro (cuja obra “será por longo tempo recordada”), Guerra Junqueiro (na visita a Quinta da Batoca, nas imediações de Barca de Alva) e Raul Brandão (no derradeiro texto, em olhar sobre a Cantareira, onde o Douro tem a foz).

Em torno do rio, há também a oportunidade para a lembrança do que foi a praga da filoxera no século XIX (lembrada pelos “mortórios” na paisagem), da destruição das cheias (sem se saber se “é o rio que transborda” ou “as coisas que por si irremediavelmente se afundam”), do movimento da vindima (e do retrato social dos homens e mulheres que ali labutam), da arte dos pedreiros fixadores dos socalcos com a participação das mulheres, dos trabalhos durante o inverno. E há também a evocação do momento de festa que é consoada (e da “roupa velha”) ou dos sabores, como as histórias em torno da alheira.

A dado passo, classifica Manuel Mendes estes seus escritos como “páginas de estudo e evocação”, resultantes de “empenho do espírito, amor à cultura”. E o leitor não pode deixar de se impressionar por estas telas que eternizam momentos do passado da região duriense, talvez indispensáveis para a fixação da identidade.

* J. R. R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 966, 2022-11-23, pg. 9.


quarta-feira, 16 de novembro de 2022

Diário dos dias da pandemia (2)



Ao longo dos textos de Dias Entreabertos - Diário Breve dos Primeiros Meses da Pandemia, as recomendações encontram também espaço, haja em vista os apelos aos leitores para que “fiquem em casa”, eco dos avisos vindos das estruturas da saúde pública e do medo sentido no vazio das ruas. No entanto, as saídas estritamente necessárias (por exemplo, para ir passear os animais de companhia) foram hipótese que logo serviu para alegrar os caninos, em passeatas contínuas, como sucedeu com “Kiko”, o cão visto a ser passeado por uma senhora e, passados vinte minutos, a ser acompanhado por um jovem, sequência que causou estranheza a Maria do Carmo Branco: “O rapaz, a sorrir, explicou que, como só havia um cão no prédio onde morava, todos os condóminos vinham passear o cão com autorização da dona”..., história que merece nota irónica - “um negócio a ponderar!”

A imaginação tinha de encontrar alternativas para este “desembrulhar dos dias” (João Santiago), enquanto a televisão debitava o “boletim do dia da DGS” e a “evolução da curva” para demonstrar a progressão pandémica, numa invasão informativa, como Fátima Frazão Lopes enuncia em 28 de Março: “Em casa, acordamos com o Coronavírus, tomamos as refeições com o Coronavírus, somos bombardeados até à exaustão com as mortes provocadas pelo Coronavírus em Portugal, na Europa e no resto do mundo. (...) O Coronavírus ‘infectou’ as televisões, as rádios, os jornais, as revistas e as conferências de imprensa.” Desse mesmo dia é o registo de Fernanda Resende, marcada pelo retiro obrigatório e pela busca de uma nova forma de relação com o mundo - “aqui estou em prisão domiciliária, a cumprir a pena que me foi imposta ‘isolamento social’. (...) Procuro reinventar o tempo em conversas com o meu interior.” E conclui: “Hoje não se vive, aprende-se a viver.”

Esta reinvenção passa por cenários gizados por novas coordenadas: “a magia de um brinde com taças de champanhe erguidas do outro lado da cidade”, sobre um aniversário celebrado à distância, ou o reparar na roupa também “em quarentena de utilização” ou nos “sapatos que esqueceram o jeito de andar” (Malice Silva); o cumprir tarefas desde há muito adiadas, como “pensar, escrever, repousar com serenidade, meditar e conviver com a comunidade de familiares” e “aceder à prática do maravilhoso culto da imaginação” (João Santiago); a procura da proximidade para combater o frio do afastamento através daquele “engenho tecnológico que o homem criou para aproximar as pessoas”, permitindo o contacto com os familiares mais directos, sobretudo “aqueles ramos maravilhosos que de nós partiram”, vencendo-se a irrealidade daqueles dias (Sanchez Antunes, o mais assíduo frequentador desta antologia).

Alguns poemas perpassam também por estes Dias Entreabertos, com destaque para aqueles que surgem em nome de uma memória - Resendes Ventura (1936-2013) e Maria de Sousa (1939-2020), trazidos por Fátima Ribeiro de Medeiros, o primeiro a propósito da energia da palavra, partilhado no Dia Mundial da Língua Portuguesa (7 de Maio), a segunda, com um poema produzido quatro dias antes de saber que estava infectada pelo vírus que a vitimaria passados dez dias (13 de Abril), testemunho forte de humanidade: “Mas antes de morrer / Quero que saibam / O quanto gosto de vocês / O quanto me preocupo convosco / O quanto recordo os momentos / partilhados e / queridos / (...) / Porque posso morrer e vós tereis de viver / Na vossa vida a esperança da minha duração.”

A última intervenção é de Arlindo Mota, em mensagem para Ana Bela Aleluia, uma quase justificação para este conglomerado de textos, registando “a perplexidade, a angústia, a incompreensão pelo desconhecido que nos amputa tudo aquilo que faz com que a vida mereça ser vivida”. Momentos intensos de emotividade, surgidos na oportunidade de um diário partilhado, conferindo à literatura o testemunho das dores dos tempos.

* J. R. R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 961, 2022-11-16, p. 9.


quarta-feira, 2 de novembro de 2022

Diário dos dias da pandemia (1)


 

O estado de emergência, por razões de saúde pública ligadas à pandemia, foi decretado em Portugal em 18 de Março de 2020. Situação inusitada, abalou as formas de estar, de viver, de partilhar. No dia seguinte, Arlindo Mota trocava mensagem com os frequentadores da Universidade Sénior de Setúbal retransmitindo uma ideia de Maria Alice Silva: “Estes dias, em que temos de reinventar ocupações, para encher as horas que teimam em ficar presas no relógio do tempo, dão lugar a muita reflexão e descoberta... Estes textos poderiam depois ser lidos e reflectidos nas aulas futuras.”

O desafio foi aceite por duas dezenas de voluntários e começaram os registos diarísticos de pequenos acontecimentos, de quotidianos simples, de olhares através da janela, de medição do mundo e da vida numa escala que era desconhecida. Dessa produção nasceu o livro Dias Entreabertos - Diário Breve dos Primeiros Meses da Pandemia, editado pela UNISETI (2022), reunindo 24 autores, incluindo a poeta brasileira Vânia Lopez (que, do outro lado do Atlântico, quis colaborar no projecto) e a cientista Maria de Sousa (1939-2020), imunologista ceifada pela pandemia, de quem são transcritos três poemas, um deles escrito dez dias antes de falecer.

O tempo de escrita decorre entre 19 de Março e 27 de Julho (correspondendo ao tempo que faltava para finalizar o ano lectivo da UNISETI), sendo o mês de Abril o mais frequentado, com mais de quatro dezenas de participações.

Entrar por estes “dias entreabertos” possibilita uma série de lembranças das pequenas descobertas e aprendizagens, dos aspectos de um dia-a-dia a construir fora da normalidade, que enternecem pelo que avivam relativamente àquele tempo. Um exemplo: o açambarcamento de papel higiénico que sucedeu nos supermercados, tratado num texto repleto de ironia por Arlindo Mota, mais parecendo estar-se numa contemplação do fantástico.

Perante um viver fora do que era a normalidade, os diaristas vão reconstruindo os seus universos e partilhando essas novas combinações - Ana Maria B. entende, logo em 19 de Março, que “estes tempos difíceis são de facto uma prova a todos nós”, retirando uma conclusão: “Se não aproveitarmos isto para um ‘acordar’ e uma mudança de mentalidade e paradigma, se não aprendermos a perceber o que é realmente importante, então todo este esforço, sacrifício e vidas perdidas não servirá para nada.” Entretanto, o ciclo da Natureza não se alterava e, segmentada pela tristeza, Malice Silva dava, no dia seguinte, conta da chegada, “enrolada na chuva, escondida numa máscara que lhe cobria o rosto”, da Primavera. Com o afectar das relações de convivência diária graças ao isolamento, os canais de comunicação alteram-se também e uma volta pelo parque, bem cedinho, permite a Maria do Carmo Branco, num percurso quase solitário, aproximar-se da casa de algumas amigas, “falando elas da janela e eu da rua”.

A invenção de formas alternativas para as rotinas leva Malice Silva a duas descobertas repletas de simplicidade: a primeira, os passeios na varanda - “na minha varanda da frente, posso dar 40 passos, vinte em cada direcção, e outros tantos na varanda das traseiras, o que, somado, dá 80 passos em cada ‘caminhada’. Não é mau!”; a segunda, a atenção da vizinhança - “descobri, nas janelas dos prédios em redor, vizinhos que nunca tinha visto.” Nestas rotinas, emerge também o tempo para os pequenos prazeres, como sucede com José Manuel Fernandes, ao pensar sair para um passeio no jardim e uma passagem pelo café para comer um pastel de nata: “De repente, voltei à realidade: estamos em quarentena. Regressei a casa e aproveitei para ler um livro. Agora tenho tempo de sobra para ler...”

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 951, 2022-11-02, p. 10.