Mostrar mensagens com a etiqueta João Ubaldo Ribeiro. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta João Ubaldo Ribeiro. Mostrar todas as mensagens

sexta-feira, 15 de maio de 2009

Hoje, no "Correio de Setúbal"

Diário da Auto-Estima – 100
Gomes Sanches I – Muitas vezes nos encontrámos. Invariavelmente, na Culsete, em Setúbal, à volta de livros e de conversa, motivados pelo seu quê de tertúlia com o Manuel Medeiros. Sempre com uma pasta ou com livros. De poesia. Entremeados com umas folhas manuscritas. De poemas. Por vezes, fez de mim primeiro leitor. E, braços abertos, declamava, que as palavras, quando ditas, podem ser mais próprias e mais intensas do que quando escritas. Gosta? Eram poemas da (sua) vida. Nas sessões culturais animadas pelo Medeiros, na mesma Culsete, ele estava sempre presente. E intervinha. Normalmente com poema. Nem sempre de sua lavra, que Pessoa era um dos seus favoritos. No dia 2 de Maio, soube da sua morte, ia eu a caminho de uns livros. Logo ali me atacou a saudade e me inundou a memória. E, ao chegar a casa, tive que espreitar alguns dos seus poemas.
Gomes Sanches II – José dos Reis Gomes Sanches nasceu em Aldeia Velha, no Sabugal, em Janeiro de 1936. Na juventude, estudou em Vila Nova de Gaia. Cursou Direito, tendo estudado em Coimbra mas concluindo a licenciatura em Lisboa. Vivia em Setúbal desde 1977. Deixou publicadas as obras Percurso de circunstâncias (Setúbal: 2002) e Espaço de memórias (Setúbal: 2006), ambas em edição de autor.
Censura – Continuo sem perceber o que pode levar uma cadeia de supermercados a recusar vender um livro de João Ubaldo Ribeiro, que foi Prémio Camões. Já não bastava a ditadura dos gostos no consumo, ainda faltava a censura literária! Deve o sapateiro…?
Setúbal – Não tenho compromisso para as eleições autárquicas com ninguém. Espero ver as propostas que os candidatos vão apresentar, mas já há coisas estranhas: o que pode trazer de útil uma candidatura que se anunciou com o objectivo de contestar a actual Presidente de Câmara, não tendo esse anúncio uma palavra que fosse para Setúbal, antes denotando uma guerra pessoal? Na verdade, o concelho de Setúbal não merecia tão pouco ou tão nada...
Cem – É isso. Esta é a centésima página do “Diário da Auto-Estima”, que aqui se vai escrevendo desde 15 de Outubro de 2004. Com as marcas da efemeridade, claro. E com os (des)gostos que tecem os dias. Vale a pena, leitor?

sábado, 9 de maio de 2009

O livro de Ubaldo Ribeiro, a censura de um supermercado e a opinião de Pedro Mexia

A bunda e a ameaça
«Que maçada, mais um artigo sobre a liberdade de expressão, como se a liberdade de expressão estivesse em causa, mais um texto sobre a censura, como se houvesse alguma censura. Isso não são assuntos reais, assuntos importantes, assuntos que interessem aos portugueses, é apenas entretenimento de intelectual, de desocupado, de burguês.
Gostava que o parágrafo anterior fosse uma caricatura, mas cada vez mais corresponde ao que ouço em conversas sempre que alguém defende à mesa a liberdade de expressão. Cada vez mais as opiniões restritivas das liberdades vão sendo mais aprovadas. Não se pode desenhar um Papa com um preservativo no nariz. Não se pode mostrar um Che de bigode hitleriano. Não se pode fazer piadas com as amantes de Salazar. Não se pode publicar cartoons de Maomé. Não se pode ter linguagem preconceituosa. Não se pode. Há nessa matéria uma grande aliança, uma das mais importantes do nosso tempo, entre os reaccionários conservadores e os reaccionários progressistas. Gente que "até concorda" com a circulação livre de palavras, imagens e ideias, "mas com limites". Os limites deles, bem entendido.
É por isso que tudo o que seja atentado à liberdade de expressão deve ser denunciado, criticado, satirizado. Há muito lixo, muita coisa duvidosa, questionável? É possível e provável, mas entrar nessa discussão é já entrar num jogo viciado. Quando a liberdade de expressão é atacada, não se discutem minudências. Há muitas coisas de que eu não gosto, mas não quero viver num mundo em que só exista aquilo de que gosto ou com que concordo. Somos todos crescidinhos, vivemos em sociedades conflituais e complicadas, há que aceitar o conflito e a complicação, encaixar os ataques, as opiniões ofensivas, fazer boa cara à indispensável selva que é viver com os outros.
Por isso, quando uma cadeia de supermercados recusa, pela segunda vez, pôr à venda um romance que considera "pornográfico", convém não encolher os ombros. A Casa dos Budas Ditosos (1999) é uma confissão sexual de uma sexagenária, culta e desabrida, e que cultiva um pansexualismo desenfreado. De "tomar nas coxas" até "comer os amigos", o texto é uma festa pagã de "puxa roupa, tira roupa, aperta pau, dá chupão, chupa peito, lambe xoxota". Daí não vem mal ao mundo. O autor, João Ubaldo Ribeiro, Prémio Camões e um dos grandes escritores brasileiros, é surpreendentemente generoso connosco, e a protagonista até diz: "Aliás, fode-se muito bem em Portugal, ao contrário do que eu suponho ser a opinião generalizada. (...) Vi muitas belas bundas em Portugal, que lá não são chamadas de bundas, mas de cu mesmo, que lá nem é palavrão, veja como são as coisas, grande país subestimado. Bundas de homens e mulheres. Toda mulher portuguesa dá a bunda, ou pelo menos dava, para manter a santa virgindade vaginal, como aqui. Hoje, com a entrada na Comunidade Europeia (...) não sei mais como estão as coisas." É destas passagens que vêm os inomináveis perigos de que nos querem de novo proteger, como antes se protegia a santa virgindade?
É uma infantilidade que gera infantilidades. A recusa da venda de um livro por ser considerado pornográfico tem três abordagens possíveis. Há quem se entretenha a discutir se a obra é realmente pornográfica, como se a literatura não estivesse cheia de sexo explícito, e como se a pornografia, de Sade a Houellebecq, não tivesse uma tradição estabelecida. Há quem se dedique a defender o direito dos supermercados em recusarem vender o que bem entendam, como se não houvesse nenhum problema em que um cavalheiro que lida com stocks de iogurte possa decidir os livros que devemos comprar. Escreveu João Ubaldo, quando soube da notícia: "Viva o Povo Brasileiro [outro dos seus romances] ainda está sendo examinado para ver se pode ser vendido na rigorosa rede. Pôde ser adotado duas vezes (o máximo que a lei permite) pelo Ministério da Educação da França como o livro-texto para o Exame de Agregação de língua portuguesa, mas tem que ser examinado por vendedores de supermercado, para ver se é leitura permissível aos portugueses." E ele que até tinha elogiado as nossas bundas.
Há um terceiro modo de ver esta questão, que me parece o mais adequado: discutir se é admissível que não se venda um livro por causa de pichotas e coninhas, coisas que todos mais ou menos vamos tendo, que inundam uma cidade, que caíram na banalidade. Uma loja tem margem de liberdade para escolher aquilo que vende, de acordo com juízos comerciais. Mas quando uma cadeia de estabelecimentos comerciais faz juízos morais sobre obras de ficção, aí já ultrapassámos uma fronteira perigosa, a fronteira que daria também carta branca a um administrador de condomínio ou a uma empresa de telecomunicações para fazerem escolhas sobre a nossa vida.
Se eu quiser comprar A Casa dos Budas Ditosos, não aceito que me respondam que não vendem o livro porque acham que a protagonista é uma badalhoca. Algumas pessoas cujo amor à liberdade é reconhecidamente diminuto enchem a boca com a liberdade de comércio nestas circunstâncias. Mas a liberdade dos comerciantes não se opõe à liberdade das pessoas. Se eu quiser ler um romance lúbrico, escrito por um grande escritor da língua portuguesa, ou pequeno que fosse, tenho todo o direito a isso, e não reconheço a ninguém o direito a fazer juízos morais que me impeçam o acesso a esse romance. Dirão que quem proíbe não causa grande dano, porque há sempre quem permita. Mas pensem: uma pessoa que proíbe deseja que toda a gente proíba. Essa é que é a grande ameaça.»
Pedro Mexia. "A bunda e a ameaça". Público ("P2"): 09.Maio.2009

domingo, 3 de maio de 2009

Já tínhamos percebido que havia gostos duvidosos na escolha de livros para venda em alguns locais

Ubaldo Ribeiro "chateado" com proibição de livro
«O Grupo Auchan (Jumbo) decidiu proibir, pela segunda vez em dez anos, a venda do romance A Casa dos Budas Ditosos, de João Ubaldo Ribeiro, nos seus hipermercados. O fundamento desta medida é o carácter pretensamente pornográfico da obra, repudiado pelo seu autor."Amigo Nelson, lá vamos nós outra vez", comenta o escritor brasileiro numa mensagem enviada ao seu editor português, Nelson de Matos.
"Não há razão nenhuma para essa censura", diz Ubaldo Ribeiro. "Imagino que eles também não vendam Henry Miller ou outros autores desse tipo". Pedindo ao editor que "não se incomode nem se aborreça", o escritor declara-se "chateado" com "este acto censório", que qualifica como "irónico" e quase "suspeito": "Parece uma jogada sua de marketing para poder aumentar as vendas do livro, coisa que sucedeu da primeira vez".
João Ubaldo Ribeiro lembra que a obra foi adoptada em exames de acesso por universidades brasileiras e francesas. Refere-se ao êxito da edição do livro na Alemanha, país onde é leitura recomendada aos diplomatas que são destacados para o Brasil.O escritor afirma ainda que "está a ficar velho de mais" para se "incomodar com estas coisas". E assegura, a concluir: "Por nada disto é afectado o meu amor por Portugal. Posso dizer a esses portugueses que, por mais que eles queiram o contrário, Portugal também é meu".
A primeira proibição de A Casa dos Budas Ditosos foi há dez anos, quando Nelson de Matos era editor das Publicações Dom Quixote. Uma nova edição, lançada agora pelas Edições Nelson de Matos, volta a ter a mesma sorte. "O Grupo Auchan não vende produtos do foro pornográfico. O referido livro enquadra-se neste conjunto de artigos", explicou na semana passada ao semanário Expresso a agência de comunicação que representa o grupo. Uma segunda obra do mesmo escritor, Viva o Povo Brasileiro, está também retida para apreciação.
"Tudo isto é lamentável", disse Nelson de Matos ao PÚBLICO. "Considerar o livro pornográfico é um acto de gaguez de espírito". O editor lembra que João Ubaldo Ribeiro foi galardoado em 2008 com o Prémio Camões, o mais importante em língua portuguesa, pelo conjunto da sua obra. E que, este ano, o Brasil é o país convidado da Feira do Livro de Lisboa. Por isso, não tem dúvidas em considerar "um acto inamistoso" a proibição de livre circulação da obra por parte do Grupo Auchan:"Indigno-me contra isso, mesmo que a empresa deixe de adquirir os meus livros.
"As manifestações de apoio e solidariedade continuam a chegar, tanto da parte de figuras públicas como de gente anónima, diz o editor. Muitas das reacções vêm do Brasil, onde o caso teve várias referências nos media.»
Carlos Pessoa. Público: 03.Maio.2009

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

João Ubaldo Ribeiro em 13 sublinhados de “A casa dos budas ditosos”

Americanos – “Americano consegue ser chato e cagar regra até em suruba, são muito piores do que os alemães, que, quando botam coisa no juízo, ficam completamente despirocados e não respeitam regra nenhuma. Nos Estados Unidos há um manual e um curso para tudo e sem dúvida lá muito se trepa de acordo com os manuais.”
Escrever – “Chega ao ponto de muitos débeis mentais se orgulharem de falar como se escreve, como se a grafia não fosse uma tentativa muito defeituosa de engessar as palavras em símbolos metidos a fonéticos, como se se pudesse pedir a um chinês para falar como se escreve, como se a escrita tivesse precedido a fala.”
Feminino – “Viver numa sociedade em que a honra feminina é portada entre as pernas, que coisa mais besta, meu Deus do céu. Mas, não é, não é? Às vezes me dá vontade de fazer um comício. Quantas vidas se perderam, quantos destinos se estragaram, quantas tragédias não houve, quantos conventos não foram abarrotados desumanamente, por causa da honra de tantas e tantas infelizes?”
França – “O que se fala e escreve de merda engalanada na França é inacreditável, eu mesma nunca engoli nada dessa empulhação que confunde ininteligibilidade e chatice com profundidade, nem Lacan, nem Godard, nem Robbe-Grillet, nada dessas merdas, tudo chute e chato, e quem gosta é porque foi chantageado a gostar e, no fundo, se sente burro.”
Ler – “As pessoas lêem romances, biografias, confissões e memórias porque querem saber se as outras pessoas são como elas. Não somente por isso, mas muito por isso. Querem saber se aquilo de vergonhoso que sentem é também sentido por outros, querem olhar mesmo pelo buraco da fechadura e, quanto mais olham, mais precisam olhar, nunca estarão saciadas. Faz bem, é reconfortante.”
Memória – “A gente pensa que lembra como eram as coisas, mas não lembra, há sempre filtros, filtros da memória, filtros das neuroses, filtros do voluntarismo, tudo quanto é tipo de filtro.”
Mistério – “É bom que haja mistérios insondáveis em nossas biografias.”
Palavrão – “É mais fácil dizer palavrão do que escrever palavrão, há exigência de passaporte para as palavras passarem do falado ao escrito, algumas não conseguem nunca, a humanidade é muito estranha.”
Pecado – “Quem peca é aquele que não faz o que foi criado para fazer.”
Religião – “Os católicos são politeístas, botaram os santos no lugar dos deuses especializados. Os gregos e os romanos tinham um deus menor para cada coisa, regras atrasadas, artistas falidos, transações impossíveis, dívidas alimentares, casamentos, músicos bêbedos, agricultores, criadores de cabra, tudo, tudo, tudo. Os católicos substituíram os deuses pelos santos. Os músicos? Santa Cecília. Os ruins da vista? Santa Luzia. As solteironas? Santo António. E por aí, como você sabe. Até lugares. São José de Não Sei Onde? Diana de Éfeso, a mesmíssima coisa. Os deuses não foram derrotados ou eliminados, continuam imortais como sempre foram e somente mudaram de nome, se adaptaram às mudanças.”
Terceira Idade – “Eu abomino a expressão terceira idade, hipocrisia de americano, entre as muitas que já importámos, americano é o rei do eufemismo.”
Verdade – “A verdade dói, a verdade machuca, a verdade contunde, a verdade fere, a verdade maltrata, a verdade mata.”
Vida – “A vida devia ser duas; uma para ensaiar, outra para viver a sério. Quando se aprende alguma coisa, está na hora de ir.”
João Ubaldo Ribeiro. A casa dos budas ditosos. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1999.

domingo, 27 de julho de 2008

João Ubaldo Ribeiro, o "Camões" de 2008

João Ubaldo Ribeiro (n. 1941) foi o vencedor do Prémio Camões. O que aprecio na sua escrita é o tom de ironia e de coerência, de frontalidade e de conhecimento do homem. E dizer que o seu livro A casa dos Budas ditosos teve venda interdita em Portugal em supermercados por causa da linguagem, corria o final do século XX! É justamente dessa obra, a cujo lançamento assisti no Estoril e em que Ubaldo Ribeiro me ensinou o significado da palavra “xará” ao escrever uma dedicatória, que transcrevo um excerto sobre deuses e religião:
Os católicos são politeístas, botaram os santos no lugar dos deuses especializados. Os gregos e os romanos tinham um deus menor para cada coisa, regras atrasadas, artistas falidos, transações impossíveis, dívidas falimentares, casamentos, músicos bêbedos, agricultores, criadores de cabra, tudo, tudo, tudo. Os católicos substituíram os deuses pelos santos. Os músicos? Santa Cecília. Os ruins da vista? Santa Luzia. As solteironas? Santo António. E por aí, como você sabe. Até lugares. São José de Não Sei Onde? Diana de Éfeso, a mesmíssima coisa. Os deuses não foram derrotados ou eliminados, continuam imortais como sempre foram e somente mudaram de nome, se adaptaram às mudanças.” (A casa dos Budas ditosos. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1999).
O Prémio Camões, criado ao abrigo do Acordo Cultural Luso-Brasileiro em 1988 por iniciativa de Mário Soares e José Sarney, teve como primeiro vencedor Miguel Torga (1989) e foi já atribuído a outros escritores brasileiros – João Cabral de Melo Neto (1990), Rachel Queirós (1993), Jorge Amado (1994), António Cândido (1998), Autran Dourado (2000), Rubem Fonseca (2003) e Lygia Fagundes Telles (2005).
[foto a partir de www.focojornalistico.com.br]