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domingo, 4 de março de 2012

Tahar Ben Jelloun - "L'homme rompu", o romance da corrupção

Quando, em 1994, o escritor marroquino Tahar Ben Jelloun publicou L’homme rompu (Paris: Éditions du Seuil), fê-lo anteceder de uma nota explicativa em que dizia dever este romance ao escritor indonésio Pramoedya Ananta Toer (1925-2006), que, na altura, vivia sob vigilância em Jacarta, proibido de publicar, sob o regime de Suharto. Ben Jelloun quis visitá-lo, mas desistiu da ideia por tal gesto poder significar mais um problema para o escritor oriental. Assim, decidiu homenagear o seu companheiro com este romance, abordando o tema da corrupção, tão caro a Toer que já tinha publicado em 1950 um romance a que dera justamente o título de Corrupção.
O espaço escolhido por Ben Jelloun foi Marrocos, numa geografia centrada em Casablanca, com reminiscências de Fez; a personagem construída foi Mourad, engenheiro a trabalhar num Ministério do Equipamento, cuja assinatura era decisiva para a aprovação de projectos de construção. A acção é determinada pela constante pressão a que Mourad está sujeito: poderia viver bem melhor se alinhasse na assinatura de determinados projectos a troco de dinheiro, tal como acontecia com vários dos seus colegas. Não só essa pressão era evidente por parte do seu director e do seu adjunto (a ganhar bem menos do que ele, mas com um nível de vida muitíssimo superior), como era feita pela mulher de Mourad, Hlima, que sempre o desconsiderara por ele não entrar nesse jogo da corrupção, que seria a forma de a família poder viver melhor, pressões que o culpabilizam com o eufemismo de não se ter adaptado à vida moderna...
A característica de resistente que Mourad tinha acabou-se-lhe quando decidiu aceitar o primeiro envelope com uma quantia em dirhams bem atraente. E, depois, veio a segunda oferta, em dólares. Se, antes, era a luta de Mourad contra um sistema, agora passa a ser a luta de Mourad consigo mesmo, percurso explorado numa escrita em que a personagem monologa sobre si, sobre as relações sociais e sobre o mundo. O romance é o resultado dessa luta, o percurso que Mourad faz para se justificar e para, definitivamente, aceitar enveredar pelo caminho do pagamento dos favores.
Paralelamente, existe uma história de mulheres. Se as imagens sociais do seu director e do seu adjunto são beliscadas por, sendo chefes de família, se envolverem com raparigas de liceu, já Mourad resiste a essa prática (ele mesmo tem uma filha dessa idade), mas o seu percurso oscila entre três mulheres: a esposa, a prima Najia (viúva, atraente) e Nadia, a rapariga que conheceu numa das suas deambulações pela cidade. O romance é também esse percurso de afastamento relativamente a Hlima e de aproximação a Najia, numa rede em que também há a cultura dos afectos com Nadia.
Mourad vai-se encontrando, definindo, num gesto de entrada num mundo diverso do que sempre conheceu, por vezes reagindo sob a lembrança dos ensinamentos do pai, outras vezes hesitando porque à sua volta a corrupção alastra e é prática quotidiana. A finalizar a nota de abertura, que é também uma dedicatória para Ananta Toer, Ben Jelloun escreve: “L’histoire se passe au Maroc aujourd’hui. C’est pour lui dire que sous des ciels différents, à des milliers de kilomètres de distance, l’âme humaine, quand elle est rongée para la même misère, cède parfois aux mêmes démons. Cette histoire semblable et différente, localle et universelle, est ce qui nous rapproche, nous, écrivains du Sud, meme si ce Sud est à l’Est extrême.”
O leitor vai seguindo os debates interiores de Mourad sempre na expectativa do que poderá ser o seu destino: recuo na decisão, prisão ou assumida entrada no mundo da corrupção? A resposta é dada por uma personagem que persegue Mourad desde a primeira página – o seu adjunto Haj Hamid (que, a partir de certa altura, ele tratará por H. H.), num momento em que estavam sós no escritório, depois de uns dias de ausência de Mourad, sorri-lhe e diz-lhe: “Bienvenue dans la tribu!” E o romance acaba. Assim, o engenheiro deixava de ser um “grão de areia” na engrenagem e passava a integrar-se no sistema…
Uma história densa em torno de uma personagem não menos densamente trabalhada, de uma riqueza psicológica extrema, é este L’homme rompu, em que o adjectivo do título tanto remete para a corrupção iniciada como para a verticalidade abandonada. E, porque a corrupção vai sendo fenómeno de que se fala todos os dias, este retrato de Mourad é um bom contributo da literatura para um outro retrato deste tempo…
Sublinhados (por ordem alfabética)
Corrupção – “Le propre de la corruption c’est qu’elle n’est pas visible directement. (…) La corruption est une forme déguisée d’impôt supplémentaire.”
Destruição (do homem) – “Si l’homme vend son âme, s’il achète la conscience des autres, il participe à un processus de destruction générale.”
Dinheiro – “La réligion de l’argent pourrit tout ce qu’elle touche. Elle méprise les gens modestes, les honnêtes gens incapables de magouilles.”
Explicar o mundo – “Lorsque des choses étranges arrivent, il faut les recevoir telles quelles, sans chercher à tout expliquer. L’intelligence est l’incompréhension du monde, c’est cette capacité de nous étonner et de découvrir que complexité n’explique pas obscurité. Quant à ceux qui réclament la clarté absolue, ils se trompent ou se font des illusions.”
Infância – “Nous avons tous besoin d’une petite place sur la terrasse de l’enfance, là où on est hors d’atteinte, un peu comme si on était mort.”
Liberdade – “Personne ne peut m’empêcher de penser ni de rêver. C’est ma seule liberté. (…) Mes rêves sont impénétrables. Je suis le seul qui possède la clé. Je n’ai même pas besoin de la cacher. Elle est dans ma tête. Il n’y a personne pour m’empêcher d’agir.”
Mentir – “Les gens honnêtes ne savent pas mentir; dès qu’ils sortent du droit chemin, tout le monde le sait. Ils se trahissent eux-mêmes. Pas besoin de les dénoncer.”
Noite – “Qui a dit que la nuit porte conseil? C’est faux. Non seulement elle ne porte pas conseil mais elle dramatise les faits, elle les grossit, les rend lourds. (…) La nuit est alarmiste.”
Outro – “On découvre vraiment les êtres dans des moments inattendus comme les silences, ou grâce à un petit détail, dans la manière dont ils réagissent à des faits sans importance.”
Pobreza – “On est puni d’être pauvre; et on est pauvre parce qu’on est honnête; honnête parce qu’on est éduqué de père en fils pour respecter la loi. (…) La pauvreté est parfois mauvaise conseillère. Elle pousse les gens à commettre des délits, à voler, à escroquer, à mentir.”
Simplicidade (do homem) – “Il faut aller dans les campagnes pour rencontrer des gens encore attachés aux choses simples de la vie. Ils sont accueillants et généreux meme s’ils sont pauvres. En ville, plus les gens sont riches plus ils sont calculateurs.”
Solidão – “La solitude choisie est une forme aiguë d’égoïsme, un refuge pour ceux qui ne se sentent pas concernés par cette agitation qu’on confond parfois avec la vie.”
Tédio – “L’ennui tranquille est un état de l’esprit et du corps qui ressemble à une sorte d’apaisement quand il n’y a rien à faire ni à prouver.”

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Intervalo (16)

Filosofia para a vida
Um professor, durante a sua aula de Filosofia, sem dizer uma palavra, pega num frasco de maionese, esvazia-o... e enche-o com bolas de golfe. A seguir, pergunta aos alunos se o frasco estava cheio. Os estudantes respondem que sim. Então, o professor pega numa caixa cheia de caricas e mete-as no frasco de maionese. As caricas enchem os espaços vazios entre as bolas de golfe. O professor volta a perguntar aos alunos se o frasco está cheio e eles voltam a dizer que sim. Então... o professor pega noutra caixa... cheia de areia e esvazia-a para dentro do frasco de maionese. Claro que a areia enche todos os espaços vazios e, uma vez mais, o professor volta a perguntar se o frasco está cheio. Nesta ocasião os estudantes respondem unanimemente um "Sim!". De seguida, o professor acrescenta duas taças de café ao frasco e claro que o café preenche todos os espaços vazios entre a areia. Os estudantes, nesta ocasião, começam a rir-se...mas reparam que o professor está sério e diz-lhes:
- Quero que se dêem conta de que este frasco representa a vida. As bolas de golfe são as coisas importantes como a família, os filhos, a saúde, os amigos, tudo o que os apaixona. São coisas que, mesmo que se perdêssemos todo o resto, manteriam cheias as nossas vidas. As caricas são as outras coisas que importam, como o trabalho, a casa, o carro, etc. A areia é tudo o demais, as pequenas coisas. Se puséssemos primeiro a areia no frasco, não haveria espaço para as caricas nem para as bolas de golfe. O mesmo acontece com a vida. Se gastássemos todo o nosso tempo e energia nas coisas pequenas, nunca teríamos lugar para as coisas realmente importantes. Prestem atenção às coisas que são cruciais para a vossa felicidade. Brinquem ensinando os vossos filhos; arranjem tempo para ir ao médico; namorem e vão com a vossa/vosso namorado/marido/mulher jantar fora; pratiquem o desporto ou hobby favorito. Haverá sempre tempo para limpar a casa e reparar as canalizações. Ocupem-se das bolas de golfe em primeiro lugar, das coisas que realmente importam. Estabeleçam as vossas prioridades, o resto é só areia...
Um dos estudantes levanta a mão e pergunta o que representava o café. O professor sorri e explica:
- O café é só para vos demonstrar que não importa o quanto a vossa vida esteja ocupada, porque sempre haverá espaço para um café com um amigo.

OBS: Texto cuja autoria desconheço, enviado por amigo. Num tempo como o nosso, esta história tem o seu quê de ensinamento...

sábado, 1 de agosto de 2009

Ler Ryszard Kapuscinski, em "O Outro"

O Outro (Porto: Campo das Letras, 2009), de Ryszard Kapuscinski (1932-2007), reúne um conjunto de seis conferências (cinco datadas de 2004 e uma de 1990) sobre isso mesmo: o Outro, nas imagens e relações que mantemos com ele e na forma como pelo Outro somos definidos ou nos ajudamos a identificar.
No saber que partilha com o leitor, Kapuscinski usa uma linguagem simples e acessível, transparente, forjada na prática da escrita jornalística, na reportagem. A primeira prova do respeito pelo Outro dá-a ele próprio quase no início do texto da primeira conferência (na ordem de publicação, que não na cronológica, uma vez que a ordem por que surgem os textos não segue a linha do tempo em que foram apresentados) ao escrever sobre a autoria do género jornalístico que lhe era mais caro: “Cada reportagem tem vários autores e só um costume mais generalizado determina que assinemos o texto com um só nome. Na realidade, é provavelmente o género literário de escrita mais colectivo, criado por dezenas de pessoas, nossas interlocutoras, encontradas pelos caminhos do mundo, que nos contam histórias da sua vida, da sua comunidade, de acontecimentos que presenciaram ou ouviram falar a outros. Esses Outros, muitas vezes pessoas desconhecidas, não só são para nós uma das fontes mais ricas de conhecimento do mundo, como também nos facilitam o trabalho de várias maneiras, viabilizando contactos, hospedando-nos nas suas casas, ou mesmo salvando-nos a vida.”
O princípio de que Kapuscinski parte para reflectir sobre o Outro é o de um olhar para uma pessoa que se define por duas marcas – o ser humano, “como qualquer um de nós”, e o ser influenciado por características culturais, raciais e de pensamento. Se este princípio é verdadeiro, também não é menos verdade que ele nem sempre foi praticado e a história da forma como os Europeus têm olhado o Outro ao longo dos tempos, por exemplo, prova isso, porque nem sempre esse olhar envolveu a tentativa de compreensão do Outro.
Os textos de Kapuscinski ajudam a reflectir sobre questões fortes de hoje, como as migrações, o “narcisismo das culturas”, a multiculturalidade, a hibridação, a identidade, os nacionalismos, as ideologias, a ética, o diálogo. Pelo caminho, vão sendo chamadas pistas da cultura clássica, da literatura, da antropologia, da filosofia (não esquecendo as contribuições de Lévinas e de Tischner) e da experiência do autor.
As reflexões apresentadas deixam-nos perante alguns dos paradoxos em que vivemos, qual seja o da “aldeia global” como sinal de afastamento e de indiferença ou da “globalização” como sintoma de superficialidade – “a essência de uma aldeia está na proximidade; todos se conhecem, convivem e partilham da mesma sorte. Contudo, isto não se aplica à sociedade do nosso planeta, que se assemelha mais a uma multidão anónima nalgum grande aeroporto – uma multidão de pessoas a correr, indiferentes e desconhecidas.”
Na última conferência que integra o livro, datada do início de Outubro de 2004 e proferida em Cracóvia, significativamente intitulada “O encontro com o Outro como desafio do século XXI”, há reflexões que podem apontar para uma solução: perante um mundo que, “potencialmente, dá muito” (mas onde “escolher um percurso com atalhos não leva a parte nenhuma”), é necessário que todos “dêem provas de que se tratam a si mesmos a sério”, situação que passa por aquela que foi uma das aprendizagens de Kapuscinski – “a experiência de viver durante anos entre longínquos Outros ensinou-me que só a afabilidade com a outra parte permite despertar nela o sentido da humanidade”. Afinal, a força do diálogo como motor para um olhar diferente sobre o Outro e sobre o Eu, sobre Nós. Uma utopia, talvez. Nada fácil, mas urgente.
Passos que ficam
1. "O mundo, para mim, sempre foi uma grande Torre de Babel. Mas uma torre onde Deus misturou não só línguas, mas também culturas, costumes, paixões e interesses, e onde criou, como habitante, um ser ambivalente que une em si um eu e um não-eu, ele próprio e o Outro, o seu Outro e o estranho.”
2. "A multidão é protagonista única do teatro do mundo, caracterizando-se pelo anonimato, a impersonalidade, a falta de identidade e a ausência de rosto.”
3. "O homem sempre usufruiu de três possibilidades (…) e, quando se encontrava com o Outro, podia: optar pela guerra, separar-se erguendo um muro, ou estimular o diálogo.”
4. "Faz-nos falta um elo importante; o elo que falta é o indivíduo, retirado da multidão, um homem concreto, um Eu concreto e um Outro concreto, porque, de acordo, com o pensamento dos filósofos do diálogo, o Eu só pode existir como um ser determinado em relação ao Outro, quando este surgir no horizonte da minha existência, atribuindo-me sentido e estabelecendo o meu papel.”