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terça-feira, 29 de agosto de 2017

Raul Reis - Fotografia, cartas e a memória de um universo



“Envia-me cartas” é a exposição de fotografia de Raul Reis que está em mostra na Casa da Cultura, em Setúbal, até 5 de Setembro. Poucos dias até ao final, pois. E, se o leitor ainda por lá não passou, aproveite os dias que restam. Vai confrontar-se com umas dezenas de fotografias de caixas de entrada de correio, centradas naquela pala bem conhecida que servia como gps dos carteiros, indicando “cartas”.
Sabemos que as caixas de correio de hoje são sobretudo virtuais e que aquelas que têm existência física nas portas das casas ou dos prédios jazem silenciosas e abandonadas por muito tempo (condizendo com o abandono de muitas edificações) ou servem para receber apenas as notas fiscais e as facturas de serviços... Já não são alimentadas de emoções e de histórias, já não adquirem marcas de aproximação entre humanos. Como escreve o setubalense Raul Reis na nota introdutória ao livro que acompanha a exposição (objecto belo e recomendado), essas caixas de correio com a palavra “cartas” empurram-nos “para as reminiscências de um tempo passado - aquele em que os sentimentos eram deixados no papel”. Quase como se de narrativas se tratasse...
Mas Raul Reis alargou o âmbito da sua exposição ao público, tendo criado sítio adequado na net, em que cada visitante podia escolher a fotografia de uma das caixas de correio e escrever-lhe uma carta. E assim surgem disponíveis para o público visitante 32 cartas com destinatários múltiplos - amigos, familiares (avó, pai, filhos), amores, locais, etc. E, no final da exposição, o visitante pode escolher entre 32 postais que numa face exibem a respectiva porta e caixa de correio e na outra a carta que lhe foi dirigida. Pode escolher e pode trazer. Uma, duas, três ou todas as portas e todas as cartas, que ali estão para oferta.
E, nos escritos que ali surgem reproduzidos, há para todos os gostos e tipologias, como se imagina. Desde o mais elaborado ao mais simples, do mais loquaz ao mais reservado, do mais metafórico ao mais imaginativo, do mais pessoal ao mais colado a um momento histórico. Refiro alguns exemplos, entre vários que poderia escolher: escreveu Filipe Lourenço que “as cartas são pessoas com selos na ponta da língua”, bela imagem que carrega todo um historial ligado ao gesto de escrever e enviar uma carta; Marco Dias aproveitou o momento histórico e enviou missiva a Donald Trump, em tom sarcástico e de medição de forças em nome da humanidade, contendo uma praga rogada; Susana Albuquerque escolheu Lisboa como destinatária, escrevendo desde Madrid e concluindo a sua mensagem com uma declaração de amor - “querida Lisboa, se eu pudesse, vivia em todas as boas cidades do mundo só para descobrir tudo o de que eu gosto mais em ti”; Tiago Gonçalves optou por uma carta aos filhos, que fecha a declarar-lhes que “devia poder mandar fazer uma gaiola para guardar os vossos sonhos”.
Há, contudo, uma carta que se me apresentou como preferida. Com autoria de NQ, estabelece uma relação entre Lino Nossa, 2º Sargento do CEP (Corpo Expedicionário Português) na Flandres em 9 de Abril de 1918, e Celeste, que ficara em Portugal, a quem o combatente promete casamento se regressar ao seu país. É uma carta apócrifa que bem poderia ser verdadeira e que dá a noção do sofrimento e da dor nas trincheiras na Grande Guerra - mesmo neste contexto o valor da metáfora é extraordinário ao referir que a guerra é “um purgatório em vida”.
Ao leitor caberá descobrir outras mensagens, outros segredos, outras sublimes frases em cartas que não entrarão em caixas de correio mas que estão ao dispor nesta exposição, que é quádrupla: a dimensão das fotografias de Raul Reis, a dimensão das cartas de 31 autores (há dois textos de uma autora), a associação das cartas às fotografias nos postais, o mundo das caixas de correio em livro (Envia-me Cartas / Send Me Letters. No Frame Publishing, 2017). Vale a pena!
Refira-se ainda que “Envia-me cartas” é a primeira fase de um projecto em trilogia designado “A Cidade está Deserta”. E como, em nota final, Raul Reis revela, “Envia-me Cartas” é a parte em que “se explora a nostalgia dos objectos que perderam o seu significado original”. Uma reflexão sobre a cidade, sobre a vida, sobre a actualidade. A ver!

Carta de autoria de NQ, emprestando o momento a um combatente do CEP em 1918

sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

A carta de Salvador Peres ao Menino Jesus



Partilho aqui uma muito interessante “Carta de Natal”, dirigida ao Menino Jesus, devida a Salvador Peres (n. 1954), setubalense, músico e animador cultural, além de escritor com os seguintes títulos publicados: A Vingança da Ferramenta (1991), O Armazém de Palavras (2000), A Travessa dos Bispos Escarlates (2012) e, em co-autoria com João Coelho, Está alguém desse lado? (2016). A carta foi publicada ontem no facebook. Vale mesmo a pena ler, porque vale muito a pena pensar.


menino.jesus@belem.com

Querido Menino Jesus,
Dirijo-me a ti neste especial momento em que estás prestes a nascer pela enésima vez (Natal oblige). A tua santa mãe, coitada, há dois mil anos que não faz outra coisa se não dar à luz. E o teu pai terreno, que santo homem e que infinita paciência tem, velando, debruçado sobre a manjedoura, esperando o Esperado: tu. E o burro e a vaca, pachorrentos e santarrões, bufando no esforço de produzir o calor que precisas para não sentir as agruras desse Inverno da Palestina. A Palestina, a Palestina … que lugar para nasceres, criatura divina! Um dia, nem as pedras nem o pó persistirão, tal não é o ardor do ódio. Há dois mil e tal anos, meus Deus e teu Pai, que a coisa se repete num cenário que resistiu ao tempo e não mudou. E a coisa está para durar, dois mil anos ou mais.
A esta hora, já vêm a caminho os Reis Magos e os pastores, estremunhados, quase que estão adivinhando na alvorada o Teu divino nascimento. Está tudo a postos. O Mundo já sabe quem és e o que representas, mas finge que não sabe de nada, à espera que nasças e que tudo se faça a preceito. Paz, amor, esperança, alegria, felicidade, eis o que todos esperam da quadra. Tanta gente na expectativa, todos debruçados sobre a manjedoura, como teu santo terreno pai, José, e o Outro, espreitando, quieto, lá em cima, deixando tudo como está, para não estragar a festa.
O Presépio está a postos, falta nasceres. A tua representação já lá está. Deitado nas palhinhas, ou nas palhinhas deitado, consoante e conforme dê jeito à rima. Falta nasceres, cumprires a tradição, formalizares o acto e descansares os espíritos de milhões de cristãos, novos e velhos, mais e menos crentes, menos ou mais tementes a Deus teu Pai. Gente que espera que nasças as mais das vezes porque sim, porque acreditam que em tu nascendo o sol não lhes faltará no raiar de todas as manhãs.
Salvador (não o de Belém) Peres

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Para a agenda - As cartas de Régio para o irmão Antonino



José Régio, romancista, poeta, pensador, epistológrafo, diarista, ensaísta, nome máximo da cultura portuguesa do século XX. Não valerá a pena substantivar ou adjectivar, claro. Mais um volume de correspondência, desta feita com seu irmão Antonino. A apresentar em Lisboa, em 20 de Novembro. A ler, com certeza. Para a agenda.

quinta-feira, 19 de julho de 2012

Maria Barroso: "Cartas a Mário Soares" e uma biografia



Aos 87 anos, Maria Barroso resolveu partilhar a narrativa da sua vida com os leitores através da publicação das suas memórias e da correspondência mantida com o marido, Mário Soares, entre 1961 e 1974, num projecto co-editado pelo semanário Sol e pela Fundação Pro-Dignitate. É um conjunto de 18 volumes, publicados a ritmo semanal, em que a epistolografia ocupará 8 deles (Cartas a Mário Soares 1961-1974) e a biografia os restantes (Álbum de memórias). O trabalho foi coordenado pelo jornalista Vladimiro Nunes, que anotou as cartas e redigiu os volumes de cunho biográfico. Até ao momento, foram publicados cinco volumes deste projecto [o próximo sai amanhã, com o jornal Sol], sendo quatro deles da correspondência.
O primeiro volume da biografia ocupa-se sobretudo da história da ascendência de Maria Barroso, incidindo bastante sobre a actividade do pai, militar e republicano, alvo de perseguições e de prisões graças aos compromissos assumidos. O final do volume encontra Maria Barroso na sua infância em Setúbal, aos dezasseis meses (em Setembro de 1927).
Preocupação de Vladimiro Nunes é de contextualizar a narrativa no Portugal da época, com referências adequadas à vida política, cultural e social do país, com indicações cronológicas sobre acontecimentos e sobre outras personalidades que viriam a ser referências para o século XX português e que viriam a cruzar-se também com o percurso de Maria Barroso e de Mário Soares em muitos casos. Para a elaboração deste trajecto biográfico, Vladimiro Nunes teve como fontes a própria Maria Barroso, um vasto leque de amigos e de familiares da biografada e o arquivo de família, assim se justificando o título, que alia a capacidade da memória e a característica antológica dos eventos, das histórias e das personagens que fazem uma vida.
Quanto aos quatro volumes de correspondência já publicados, o leitor entra nos tempos de ausência de Mário Soares relativamente à família, fosse por estadias longas no estrangeiro, fosse pelos tempos de cárcere ou de desterro. As cartas de Maria Barroso para o marido são um ritual diário nesses tempos de ausência, muito próximas da escrita diarística, relatando o acontecido naquele dia, com considerações a propósito, por onde passam os registos da vida do Colégio Moderno (sobre os professores, sobre a gestão e organização, sobre as inscrições, sobre as obras, sobre as colónias de férias), o acompanhamento dos filhos João e Isabel (nos estudos, nas relações sociais, na educação), o cuidado prestado a familiares (sobretudo ao sogro, João Soares, na vigilância da sua saúde, no acompanhamento, na gestão das relações familiares), a gestão do património familiar (acompanhamento das obras na casa de Nafarros, da actividade no escritório de advocacia de Mário Soares e manutenção da casa de Cortes), as relações sociais (manutenção das amizades e presenças em eventos, muitas vezes em representação do casal ou do marido), a preocupação em minimizar os efeitos do afastamento (fazendo chegar à prisão livros, refeições por si confeccionadas, marcando presença nos escassos tempos de visita), as emoções (provas de afecto, considerações sobre a vida do casal, incentivo contra a solidão e a humilhação do estatuto de preso), a vida cultural em que estava envolvida (leituras, filmagens, sessões de poesia e de teatro).
Percebe o leitor que a intenção de Maria Barroso era a de tornar o mundo familiar presente a Mário Soares, assim impedindo que as interrupções da vida em comum equivalessem a descontinuidades e possibilitando que os projectos em que estavam envolvidos pudessem continuar a ser gizados a dois.
As cartas de Maria Barroso assumem também essa perspectiva de luta contra a solidão, passeando pelos relatos do quotidiano, mas demonstrando ainda as angústias e as dúvidas de quem não quer vacilar, de quem quer ser presente e vencer a distância, muitas vezes confessando o exercício de aprendizagem que aqueles afastamentos lhe proporcionam à medida que cresce a admiração pela forma como o marido enfrenta a adversidade da perseguição política.
No fundo, estas cartas são o retrato, a fixação do tempo comum possível naquelas circunstâncias, uma prova de cumplicidade efectiva na forma de fazer a vida com sentido, sempre com horizontes de esperança, muitas vezes matizados com as cores das plantas do jardim ou com os tons do dia, a evocarem momentos passados ou recortados por alusões a versos e à memória. São cartas que apaziguam quem as escreve e que pretendem idêntico efeito no destinatário, que se alicerçam na partilha e na comunhão para que o sofrimento das lonjuras seja, pelo menos, esbatido. Um belo documento humano e cultural, um bom testemunho de sinceridade e do que pode ser a vida de pessoas que caminham na mesma direcção!

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Homem (e mulher) – “Chego a pensar se de facto os homens merecem tanta ternura, tanta dedicação como aquela que algumas mulheres sabem dar. Afinal de nada serve a amizade, a dedicação, a profunda ternura de anos e anos lado a lado. A mulher chega a certa altura e está velha, gasta e já não serve – há que substituí-la por outra mais jovem, mais válida. Esta confusão, esta inversão de valores ou nos conduzem a uma atitude cínica e egoísta ou nos levam ao desespero. Sinto-me verdadeiramente atordoada com tudo isto!” [Cartas a Mário Soares 1961-1974 (vol. 2) – a propósito do divórcio previsto de um casal amigo, em carta de 19-08-1966]
Esperança – “A esperança é a mais linda flor que eu conheço mas a terra dela é o coração dos homens.” [Cartas a Mário Soares 1961-1974 (vol. 3) – em carta de 29-02-1968]
Olhar em frente – “O voltarmo-nos excessivamente para dentro de nós próprios é que nos conduz muitas vezes a situações de angústia e de nervosismo. Se olharmos para a frente, para o que é jovem e espontâneo, por muito duro que seja o que nos rodeia, por muito violenta e injusta que seja a realidade que tenta esmagar-nos, há sempre maneira de encontrarmos dentro de nós a força e a coragem de seguirmos o nosso caminho, que é o caminho da dignidade e da compreensão humana.” [Cartas a Mário Soares 1961-1974 (vol. 4) – em carta de 11-06-1968]
Palavra – “Duas pequenas palavras, repassadas de ternura e saudade, bastam, por vezes, para animar um coração desolado, para reanimar uma pessoa fatigada.” [Cartas a Mário Soares 1961-1974 (vol. 4) – em carta de 08-07-1968]

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Carta a um professor (de todos os tempos)

De vez em quando, circula pelos emails a mensagem que segue, apresentada como “carta de Abraham Lincoln ao professor do seu filho”, supostamente datada de 1830. Afinal, parece que a carta é falsamente atribuída ao 16º presidente dos Estados Unidos (1809-1865), o primeiro da lista que foi assassinado…
O que vale nesta carta é o teor da sua mensagem; a autoria é de somenos. Quem quer que tenha sido o autor da missiva tinha a sensibilidade e conhecia os valores que deveriam formar o homem de todos os tempos, sobretudo o homem de hoje. A gente lê e fica com a sensação de que todos os princípios e desejos nela exarados não passam de um sonho. O mundo não pede o que solicitava o(a) subscritor(a) desta carta! Infelizmente! Por isso mesmo, deve a gente lê-la. E pensar no que se tem andado a fazer…
Mantenho o título com que a peça tem sido apresentada, ainda que sabendo da improvável autoria.
CARTA DE ABRAHAM LINCOLN AO PROFESSOR DO SEU FILHO
"Caro professor,
Ele terá de aprender que nem todos os homens são justos, nem todos são verdadeiros, mas por favor diga-lhe que para cada vilão há um herói, que para cada egoísta há também um líder dedicado; ensine-lhe por favor que para cada inimigo haverá também um amigo; ensine-lhe que mais vale uma moeda ganha que uma moeda encontrada; ensine-o a perder, mas também a saber gozar a vitória; afaste-o da inveja e dê-lhe a conhecer a alegria profunda do sorriso silencioso; faça-o maravilhar-se com os livros, mas deixe-o também perder-se com os pássaros no céu, as flores no campo, os montes e os vales.
Nas brincadeiras com os amigos, explique-lhe que a derrota honrosa vale mais que a vitória vergonhosa; ensine-o a acreditar em si, mesmo se sozinho contra todos.
Ensine-o a ser gentil com os gentis e duro com os duros, ensine-o a nunca entrar no comboio simplesmente porque os outros também entraram.
Ensine-o a ouvir todos, mas, na hora da verdade, a decidir sozinho; ensine-o a rir quando estiver triste e explique-lhe que por vezes os homens também choram.
Ensine-o a ignorar as multidões que reclamam sangue e a lutar só, contra todos, se ele achar que tem razão.
Trate-o bem, mas não o mime, pois só o teste do fogo faz o verdadeiro aço; deixe-o ter a coragem de ser impaciente e a paciência de ser corajoso.
Transmita-lhe uma fé sublime no Criador e fé também em si, pois só assim poderá ter fé nos homens.
Eu sei que estou pedindo muito, mas veja o que pode fazer, caro professor."