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quarta-feira, 24 de julho de 2024

Círculo Cultural de Setúbal e José Afonso contados por Albérico Costa (2)



A segunda parte da obra O Círculo Cultural de Setúbal - De Ninho Oposicionista a Quartel-General da Revolução - Um Redondo Vocábulo pela Mão de José Afonso incide sobre a ligação do poeta, cantor, professor e pensador José Afonso ao movimento cultural setubalense, sobretudo através da acção desenvolvida no Círculo Cultural, associação de que ele também foi co-fundador.

As ligações entre Setúbal e José Afonso não constituem absoluta novidade na bibliografia de Albérico Costa, porquanto existe desde 2019 a sua obra Lugares de José Afonso na Geografia de Setúbal (ed. Associação José Afonso), em que, entre os 42 sítios recenseados, surge a referência ao Círculo Cultural de Setúbal, espaço que o cantor, em entrevista, definira como possibilidade que, “antes e logo a seguir ao 25 de Abril, preencheu bem essa lacuna, de juntar toda a malta para fazer coisas”.

No capítulo que agora lhe dedica, Albérico Costa esclarece pretender analisar “a dimensão da interação entre a cidade de Setúbal e o cidadão José Afonso”, percurso lembrado desde 1967, ano em que foi colocado no então Liceu Nacional de Setúbal como professor de História, mas que teve também a incumbência de leccionar a disciplina de Organização Política e Administrativa da Nação, decisão que sua mulher, Zélia Afonso, assim explica, em entrevista ao autor: “Nada disso foi por acaso. Era tudo para o tramar.” Intencional ou não, o certo é que, em Dezembro desse ano, um despacho ministerial comunicava a expulsão de José Afonso do ensino...

É no contexto de participação e de intervenção local que o poeta será co-fundador do Círculo Cultural, onde agirá leccionando nos cursos nocturnos e participando nas sessões culturais, embora sob o olhar atento da polícia política, que, após as eleições de 1969 (em cujo processo José Afonso participou), o identifica como tendo tido “um papel preponderante” em “jornadas e sessões culturais, onde, através da balada e da poesia, se procura incutir no espírito das populações, especialmente na camada jovem, a rejeição pela obra do Governo e pela luta que nos é imposta no Ultramar”. O tal olhar atento da polícia esmerou-se nas práticas de perseguição, tendo mesmo levado a que tenha sido preso várias vezes.

A coerência de pensamento de José Afonso é visível no que deixou exarado no interrogatório na prisão de Caxias em Outubro de 1971 (“nunca desenvolveu quaisquer actividades contra a segurança do Estado”, mas é “adverso das instituições vigentes e colaborou na distribuição de votos ao domicílio a favor da Comissão Democrática Eleitoral do Distrito de Setúbal”) e nas tomadas de posição conhecidas no período pós-25 de Abril, lembrando Albérico Costa a participação intensa do cantor na militância política local: no célebre comício do Naval do primeiro 1.º de Maio — onde, pedagogicamente, disse: “É fundamental que nos voltemos a reunir para tratarmos de problemas. A partir de hoje, é necessário que se repitam estas reuniões. O perigo do fascismo ainda não acabou e temos como exemplo o Chile. (...) Temos de passar da fase do coração para a fase da cabeça e da acção.” —, em numerosas “lutas laborais, espectáculos de solidariedade, novos movimentos que então surgiam no calor da revolução em marcha”, acção de que não esteve afastada também a temática ecológica — será, por coincidência, numa realização promovida pelo Projecto Setúbal Verde, em 30 de Maio de 1982, que José Afonso terá o seu derradeiro concerto em Setúbal, acompanhado por Janita Salomé, Júlio Pereira e Sérgio Mestre.

Interessante é a recuperação que Albérico Costa faz da relação do cantor com a Arrábida, fosse por motivos de tomada de posição no desrespeito que havia pela Serra, por razões de saúde ou de recolhimento. Em capítulo sobre “o misticismo de José Afonso”, a Arrábida surge como espaço místico, tal como foi território de liberdade onde houve a possibilidade de “melhor ouvir as emissões do Rádio Portugal Livre e da Rádio Voz da Liberdade”. Por ali passam também os poemas de Frei Agostinho da Cruz, de Sebastião da Gama e de Bocage no que têm a ver com a espiritualidade e com a urgência de contemplar a Natureza, atitude que surpreende e que levou o próprio José Afonso a confessar ao seu amigo Francisco Fanhais, conforme lembra Albérico Costa: “Se os meus amigos marxistas soubessem que ando a ler o Frei Agostinho da Cruz...”

Nesta abordagem, repara o leitor que a intervenção política marcou toda a vida de José Afonso, particularmente em Setúbal (1967-1987), originando que mesmo o seu velório, ocorrido na Escola Secundária S. Julião (actual Escola Secundária Sebastião da Gama), ficasse rodeado de jogos políticos, tendo chegado a haver a proibição pelo Governo Civil de que essa última despedida se realizasse na escola...

O tratamento que Albérico Costa faz da ligação de José Afonso a Setúbal não está isento de um dever de memória: “Esta cidade deve-lhe a presença infinitamente solidária e amiga. E ele, o autor único, o músico superlativo, o cantor inigualável, deve à cidade duas décadas de permanente contrato de vida plena.” Um trabalho em prol da memória que o autor muito bem fez, associando o historial do que foi o Círculo Cultural de Setúbal...

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1348, 2024-07-24, pg. 5.

 

quarta-feira, 17 de julho de 2024

Círculo Cultural de Setúbal e José Afonso contados por Albérico Costa (1)



O livro pode dividir-se em duas partes: a primeira, levantando a história de uma instituição como foi o Círculo Cultural de Setúbal (que durou entre Maio de 1969 — é do dia 28 desse mês a escritura pública que o forma — e o último dia de 1998); a segunda, relembrando a ligação de José Afonso à cidade de Setúbal e o contributo militante que este lhe deu, particularmente na sua acção no Círculo Cultural. Fala-se de uma obra indispensável para o entendimento do que foi a intervenção cultural em prol da liberdade e da promoção e formação individual de muitos setubalenses, escrita por Albérico Afonso Costa, O Círculo Cultural de Setúbal - De Ninho Oposicionista a Quartel-General da Revolução - Um Redondo Vocábulo pela Mão de José Afonso, de edição recente (Câmara Municipal de Setúbal, 2024).

Os quase trinta anos da história do Círculo Cultural de Setúbal são relatados a partir de investigação nos arquivos da Associação José Afonso e da Torre do Tombo, da imprensa local e de entrevistas a 33 participantes na história da associação, fontes que permitem ao leitor sentir também o ambiente vivido em torno deste projecto, frequentemente pintado pela memória da intensidade da experiência levada a cabo por muitos intervenientes.

Desde a sua primeira iniciativa — uma visita de estudo à Estação Romana de Tróia, em 27 de Junho de 1969 —, o Círculo interveio na cultura setubalense a partir de múltiplas entradas: artes plásticas, cinema, teatro, fotografia, poesia, conferências, edição e uma secção escolar (que se revelou fundamental para a formação de muitos jovens e adultos interessados no seu enriquecimento académico, feito fora dos horários de trabalho). A explicação para a intensidade e importância da acção desenvolvida aparece relacionada com o contexto de vazio sentido, “de desvalorização de tudo o que pudesse ter um aroma mínimo de pensamento crítico, essa dimensão tão temida e odiada pelo regime”, o que permitirá “que o Círculo se vá configurar como um oásis naquele deserto cultural em que se vivia.”

Na origem desta instituição estiveram jovens ligados ao Centro de Estudos Humanísticos, criado no Clube de Campismo de Setúbal no início de 1967, bem como o grupo dinamizador da página cultural “Dom Quixote” (publicada n’ O Setubalense), objectivo que reuniu os nomes de Carlos Tavares da Silva, António Manuel Fráguas, António Quaresma Rosa, Tito Lívio Aguiar, António Júlio Garcia, Maria Antonieta Garcia, Alberto Almeida Garcia e Fernando Cardoso, nomes a que vieram juntar-se vários mais como “fundadores” (Maria Adelaide Rosado Pinto, Idalino Cabecinha, João Moniz Borba, José Afonso, Clementina Pereira, entre outros).

Desde que as actividades foram iniciadas, o Círculo esteve sempre sob observação da polícia política, que o classificará como “alfobre de oposicionistas ao regime vigente” e chegará a manter um “infiltrado” nas sessões para ir dando conta do acontecido. O que terá salvado a manutenção do Círculo foi o facto de, nos seus órgãos sociais, também constarem nomes considerados insuspeitos e pertencentes à elite local (Adelaide Rosado Pinto, Moniz Borba, Idalino Cabecinha, por exemplo) ou o próprio Secretário do Governo Civil (Fernando Cardoso); por outro lado, instituições como a Câmara Municipal de Setúbal e o Governo Civil apoiaram diversas iniciativas levadas a cabo pela instituição, o que dificultava excessos que a polícia política pudesse pretender... Não obstante isso, alguns dirigentes do Círculo conheceram a prisão, sob a alegação de “ligações orgânicas ao PCP ou a outras organizações clandestinas”.

Se, com o 25 de Abril, o Círculo funcionou, como refere Albérico Costa, como “o Quartel-General da Revolução”, pelo protagonismo que tiveram vários dos seus elementos na organização dos democratas, também se torna notório para o autor que um período de algumas divergências e tensões, o assumir de novas responsabilidades políticas por parte de alguns dos seus dirigentes, a multiplicidade de iniciativas culturais que muitas entidades passaram a promover e o facto de passar a existir ensino nocturno levarão a uma “progressiva perda de centralidade do CCS no espaço cultural e político da cidade”, que terá o seu termo na entrega das instalações da sede ao proprietário, depois de um tempo de dificuldade económica.

A investigação presente nesta obra faz justiça ao papel da instituição Círculo Cultural de Setúbal e a muitas das figuras que foram centrais na sua acção, num discurso que dá voz aos protagonistas e aos documentos que subsistem, contributo enriquecedor para a história da cultura em Setúbal.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1343, 2024-07-17, pg. 10.