quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Grandes entrevistas da História, com o "Expresso" (6)



Dois falantes de língua portuguesa, uma de Portugal e outro do Brasil, entram no último lote de dez entrevistados que constituem o derradeiro volume de Grandes Entrevistas da História, abrangendo o período de 2007 a 2014 – Paula Rego (Eunice Goes, Expresso, 15-09-2007) e Chico Buarque (Ana Cristina Leonardo, Expresso, 08-08-2009). Os restantes entrevistados são: Stephen Hawking (Xavi Ayén, La Vanguardia, 25-09-2008), Ferran Adrià (Cristina Jolonch, Magazine, 21-02-2010), Bernard Madoff (Steve Fishman, New York Magazine, 27-02-2011), Mikhail Gorbatchov (Jonathan Steele, The Guardian, 16-08-2011), Barack Obama (Susan Page, USA Today, 03-09-2012), Salman Rushdie (Clara Ferreira Alves, Expresso, 22-09-2012), Tim Berners-Lee (Paul Sagan, projecto Riptide da Nieman Foundation for Journalism, da Universidade de Harvard, Abril de 2003) e Mark Zuckerberg (Farhad Manjoo, The New York Times, 16-04-2014).
A conversa com Paula Rego mostra o apego da artista a marcas de um Portugal rural – “gosto da estética das feiras, das festas, do bobo da festa, e das pessoas que lá trabalhavam” –, justificando a sua preferência pela figura feminina “por causa dos fatos, das cinturas” e porque “há mais cumplicidade”, e assumindo a situação de compromisso cívico que os seus quadros têm, através de evidentes marcas contra a injustiça e retratando as relações de poder. A entrevista com Chico Buarque debruça-se também sobre a arte, a literatura, e surge a propósito da edição do seu livro Leite derramado (2007). Mesmo dizendo que não é escritor, Chico Buarque consegue entender a literatura como uma construção, aspecto muito mais interessante do que a história que é contada – “eu, na verdade, o que menos me atrai na escrita de um romance é a história. Me interessa mais trabalhar com a forma, a forma de contar aquela história. A história em si não é nada, muitas vezes não é nada.” No entanto, a sua vertente de leitor e de construtor de histórias leva-o a que se apaixone por uma das suas personagens, o velho Eulálio, porque a conversa de velhos tem sempre uma “memória selectiva, as fugas, as tergiversações, mesmo aquelas mentirinhas ou lapsos de memória, coisas que voltam não exactamente como eram..”
De outras três áreas da cultura são os entrevistados Stephen Hawking, Ferran Adrià e Salman Rushdie. O físico que fala através do computador (“à razão de uma palavra por minuto”) paira numa entrevista, para nós curta, mas longa para ele, atendendo às suas condições físicas. Aí, glorifica a ciência e conjuga-a com Deus (“Se quisermos podemos chamar Deus às leis científicas, mas estas não são um Deus pessoal que podemos interpelar”), ao mesmo tempo que não se põe de lado em relação à política e que relança o seu permanente desafio à descoberta. Ferran Adrià, o cozinheiro catalão, que “está para a culinária como Steve Jobs está para a tecnologia” (no dizer do organizador do volume), surge-nos através de uma peça que mais se aproxima do género reportagem, com o objectivo de ser traçado o retrato do homem que esteve à frente do restaurante madrileno “El Bulli”. O texto é baseado em conversas com o próprio retratado e com amigos e familiares, o que o distancia do género entrevista, que originou esta obra. Fica, porém, a partilha de aprendizagens importantes, como aquela que o levou a descobrir que, “no âmbito profissional, mesmo que nos esforcemos, não somos o que pensamos ser, mas sim o que os outros pensam que somos.” Salman Rushdie, o escritor que teve um longo período de vida clandestina por razões de sobrevivência e por causa da obra Versículos satânicos (1988), é entrevistado a propósito de uma obra autobiográfica em que relata esse tempo de clandestinidade a que foi obrigado pelo fundamentalismo. Ressaltam as convicções, o papel da escrita, o valor das amizades, a tristeza pelos que viram costas, mas salva-se o escritor – “Sou o mesmo escritor. Uma vitória.”
O domínio da política encontra dois nomes representativos do que foi a alteração das relações políticas no mundo no início do século que vivemos – Mikhail Gorbatchov e Barack Obama. O político russo estará para sempre associado à “perestroika” e apresenta-se numa entrevista que está entre o balanço, alguma paz de espírito e relativa amargura. Reconhece erros cometidos (não se ter demitido do Partido Comunista e ter criado um partido reformista democrático, não ter começado mais cedo a reforma da URSS e não ter dado mais poderes às quinze repúblicas, não ter afastado através da diplomacia Ieltsin da cena política). Na sua visão, surge a crença na reforma da China, bem como a rejeição dos métodos de Putin, designadamente a mudança no sistema eleitoral. Gorbatchov mantém o espírito de família e as marcas de proximidade, não escondendo o seu afecto por Raisa, a mulher (já falecida na altura da entrevista), que gostava de o ouvir cantar. Uma entrevista que é também um pouco das memórias de um homem que contribuiu para que o mundo fosse diferente… Do ocidente chega a entrevista com Barack Obama, conhecido como o primeiro negro que chegou à presidência dos Estados Unidos, feita na altura em que ele era candidato à reeleição. Obama, já não com a força do “yes, we can”, demonstra as dificuldades, entre um mundo em convulsão, o apego à família (as filhas “são um grande antídoto para evitar que me leve demasiado a sério”), e respeito pelo adversário e as aprendizagens da política, ainda que aparentemente simples, como perceber “a necessidade de se preocupar mais em convencer as pessoas do país inteiro sobre as medidas que quer tomar, do que os membros do Congresso na outra ponta da Pennsylvania Avenue”.
O mundo das tecnologias ligadas ao poder da informática aparece representado pelos nomes Tim Berners-Lee e Mark Zuckerberg, criadores da web e do facebook, respectivamente. Berners-Lee relembra a motivação que o levou a pensar na necessidade de criar um “hiperespaço aberto” e conclui com uma mensagem forte: as tecnologias deverão permitir resolver problemas “sem cortar tantas árvores para obter madeira e fabricar papel”, uma lição para os tempos de burocracia em que, além de os documentos existirem virtualmente (o que parecia que iria acontecer na sequência do uso generalizado dos computadores), vai havendo orientações em muitos serviços no sentido de os mesmos serem impressos… numa duplicação absolutamente acrónica. Zuckerberg, o criador da “maior nação digital da internet”, é entrevistado com o objectivo de ser questionada a capacidade de a empresa criar novos produtos, sabendo-se que alguns deles não têm tido o sucesso esperado. A conversa liga-se também à discussão do privado e do anonimato em termos de comunicação, acreditando o entrevistado que, de uma forma ou de outra… se visa criar laços. Boas intenções!...
Bernard Madoff, o nome que surge fortemente associado aos tempos de crise que vivemos, um género de “dona Branca” gigante, é entrevistado a partir da prisão, numa peça que é reconstituída sobre conversas telefónicas várias de Madoff para o jornalista, ainda que todas elas pagas no destino. Há ainda os testemunhos de familiares do preso e, por vezes, os desabafos veiculados por amigos, que confidenciaram os sentimentos dos filhos de Madoff. A entrevista é o retrato de um “arrependido”, que, explicando-se, tem dúvidas em aceitar-se, como se vê logo pela abertura da peça jornalística, que reproduz o entrevistado em discurso directo: “Como é que fui capaz de fazer o que fiz? Estava a ganhar muito dinheiro. Não precisava de o ter feito.”
Grandes Entrevistas da História, obra editada pelo semanário Expresso, conclui com este volume o lote de setenta conversas com outros tantos entrevistados, havidas num período entre 1865 e 2014. Todos os nomes que por estas páginas passaram tiveram (têm) o seu papel no mundo que conhecemos, uns associados ao bem, outros nem por isso, dependendo esta categorização da nossa margem de simpatias. São estes setenta como poderiam ser outros, mas as nossas curiosidades alimentam-se disto: a vontade de percebermos como os protagonistas do nosso tempo chegaram aos limites que chegaram e em nome de quê. Se nem tudo é dito nas entrevistas, ficam-nos, pelo menos, os retratos dos heróis sobre os momentos em que foram considerados determinantes, porque a História é feita desses mesmos momentos. E a História, podemos antologiá-la ou contá-la, mas não a podemos prever…

Sublinhados

Existência – “Não existe maior emoção do que a da descoberta, a de procurar incessantemente as respostas às nossas perguntas mais importantes: quem somos? De onde viemos?” [Stephen Hawking. Entrevista a Xavi Ayén, em La Vanguardia (25-09-2008). Grandes Entrevistas da História 2007-2014. Lisboa: “Expresso”, 2014, pg. 21]
Perguntas – “As perguntas hipotéticas não servem de muito.” [Mikhail Gorbatchov. Entrevista a Jonathan Steele, em The Guardian (16-08-2011). Grandes Entrevistas da História 2007-2014. Lisboa: “Expresso”, 2014, pg. 79]
Medo – “O medo faz as pessoas fazer coisas más.” [Salman Rushdie. Entrevista a Clara Ferreira Alves, em Expresso (22-09-2012). Grandes Entrevistas da História 2007-2014. Lisboa: “Expresso”, 2014, pg. 104]

segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Nos 150 anos do "Diário de Notícias": um suplemento a ler (e a guardar)



Há 150 anos, no dia de hoje, saía em Lisboa o primeiro número do Diário de Notícias, assinalando como proprietários os nomes de Tomás Quintino Antunes e de Eduardo Coelho, também redactor. Tinha quatro páginas, textos curtos e sem título e um editorial que ainda hoje tem todo o sentido no que à coerência a imprensa deve – pretendia “interessar a todas as classes, ser acessível a todas as bolsas e compreensível a todas as inteligências”, queria afirmar-se por uma “compilação cuidadosa de todas as notícias do dia, de todos os países e de todas as especificidades, um noticiário universal” e prometia um “estilo fácil e com a maior concisão”, visando informar “o leitor de todas as ocorrências interessantes”. Na sua estrutura da primeira página, não fugia à tradicional supremacia da família real e da religião, os dois pólos que garantiam os primeiros textos – o primeiro, dizendo que “Suas Majestades e Altezas passam sem novidade em suas importantes saúdes”, uma não notícia que sossegava as preocupações; os seguintes, informações de teor religioso, fossem informações ou registos de efemérides; depois, informação sobre as férias natalícias dos tribunais. A seguir, um pouco de tudo, com destaque para algo que constituía marca do tempo, como a aprovação de orçamento para apoio a construção de via férrea em França.
Olhando para a edição do Diário de Notícias de hoje, dirigido por André Macedo, as quatro páginas passaram a quarenta, isto é, dez vezes mais, e se repararmos no suplemento, com 144 páginas, a proporção vai para 36 vezes mais.
O suplemento que hoje é publicado é um documento histórico para guardar, não sendo por acaso que lhe é dado o título de capa de “150 anos de Portugal”. Com efeito, um diário com a idade de século e meio será um bom repositório do correspondente tempo da história do país, tal como, no final do editorial desta edição de aniversário, escreve André Macedo: o jornal, bem como o seu director, servem “para defender um património que pertence aos leitores e ao país, sem esquecer os accionistas, sem os quais nada disto pode acontecer”.
Um suplemento para guardar… porquê? É verdadeiramente um suplemento festivo, por onde passa a história, a criação, o retrato, assente sobre três vectores: o assinalar de 50 efemérides, com curto registo a propósito; os dias da História de quinze escritores portugueses contemporâneos; ensaios, reportagens e entrevistas de 15 áreas temáticas.
Relativamente às efemérides, registam-se: nascimento do Diário de Notícias (29-12-1864), carta de Vítor Hugo ao jornal a propósito da abolição da pena de morte para crimes civis em Portugal (10-07-1867), Comuna de Paris (27-05-1871), Ultimato inglês (13-01-1890), morte da rainha Vitória (22-01-1901), regicídio em Portugal (01-02-1908), exposição pública dos Painéis de S. Vicente depois de descobertos na igreja de S. Vicente de Fora (06-05-1910), implantação da República (05-10-1910), fim da Grande Guerra (11-11-1918), assassínio de Sidónio Pais (14-12-1918), chegada de Gago Coutinho e de Sacadura Cabral aos rochedos de São Pedro e São Paulo (19-04-1922), golpe do 28 de Maio (28-05-1926), chegada de Oliveira Salazar a chefe de Governo (05-07-1932), revolta na Marinha Grande (18-01-1934), início da Segunda Grande Guerra (01-09-1939), inauguração da nova sede do Diário de Notícias na Avenida da Liberdade (24-04-1940), exposição do Mundo Português (23-06-1940), rendição da Alemanha (07-05-1945), bomba atómica (06-08-1945), entrada de Portugal na ONU (14-12-1955), ataque de nacionalistas angolanos à Casa de Reclusão e ao quartel da PSP em Luanda (04-02-1961), conquista da Taça dos Campeões Europeus pelo Benfica (31-05-1961), queda da Índia portuguesa depois da operação Vijay lançada por Nehru (18-12-1961), assassinato de Kennedy (22-11-1963), incêndio do Teatro D. Maria em Lisboa (02-12-1964), centenário do Diário de Notícias (29-12-1964), eliminação de Portugal do Mundial de 1966 e lágrimas de Eusébio (26-07-1966), inauguração da ponte sobre o Tejo em Lisboa (06-08-1966), presença de Paulo VI em Fátima no que foi a primeira visita papal ao santuário (13-05-1967), chegada de Marcelo Caetano a presidente do Conselho na sequência de avc sofrido por Salazar (26-09-1968), chegada do homem à Lua (20-07-1969), morte de Salazar (27-07-1970), revolução “dos Cravos” (25-04-1974), “fim” do processo revolucionário em Portugal (25-11-1975), morte do Primeiro Ministro Francisco Sá Carneiro em desastre aéreo (04-12-1980), Carlos Lopes com medalha de ouro em Los Angeles (12-08-1984), entrada de Portugal na CEE (12-06-1985), eleição de Mário Soares como Presidente da República (16-02-1986), primeira maioria absoluta em eleições obtida pelo PSD com Cavaco Silva (19-07-1987), incêndio no Chiado (25-08-1988), derrube do Muro de Berlim (09-11-1989), libertação de Nelson Mandela (11-02-1990), início da Expo 98 com publicação do “Diário da Expo” a cargo do Diário do Notícias (22-05-1998), atribuição do Nobel da Literatura a José Saramago (08-10-1998), morte de Amália Rodrigues (06-10-1999), ataque às Torres Gémeas nova-iorquinas (11-09-2001), independência de Timor-Leste (20-05-2002), derrota de Portugal na final do Euro 2004 (04-07-2004), eleição de Barack Obama (04-11-2008) e morte de Eusébio (05-01-2014).
Os quinze escritores portugueses convidados a participar no dossiê intitulado “A que dia é que eu queria regressar?”, coordenado por João Céu e Silva, foram: António Lobo Antunes (n. 1942), sobre o dia em que soube do nascimento da sua primeira filha (22-06-1971); Afonso Cruz (n. 1971), sobre “hoje”; António Mega Ferreira (n. 1949), sobre o 5 de Outubro de 1910; Gonçalo M. Tavares (n. 1970), sobre o dia do assassinato do arquiduque austro-húngaro por Gavrilo Princip, que deu início à Grande Guerra; Hélia Correia (n. 1949), sobre a estreia de “Ballets Russes”; J. Rentes de Carvalho (n. 1930), sobre o dia do fim da Segunda Guerra Mundial (08-05-1945); Lídai Jorge (n.1946), sobre uma memória da infância, em 1954, 3m dia de nevão; Luísa Costa Gomes (n. 1954), sobre a inauguração do monumento a Cristo Rei (17-05-1959); Manuel Alegre (n. 1936), sobre a campanha de Humberto Delgado (31-05-1958); Maria Teresa Horta (n. 1937), sobre várias datas relacionadas com o feminismo; Mário de Carvalho (n. 1944), sobre a campanha de Humberto Delgado em Lisboa (16-05-1958); Mário Cláudio (n. 1941), sobre a sua data de nascimento (06-11-1941); Miguel de Sousa Tavares (n. 1952), sobre o desembarque dos Aliados na Normandia, em texto epistolar usando a assinatura de Salazar (07-06-1944); Nuno Júdice (n. 1949), sobre o dia da morte de Fernando Pessoa (02-12-1935); Valter Hugo Mãe (n. 1971), sobre o dia que constou como sendo o do fim do mundo (12-08-1978).
Relativamente à terceira área, em que se destacam alguns ensaios relacionados com a história e com o espólio do Diário de Notícias, é preenchida com os textos: “Um país de emigração maciça e baixa literacia”, de Manuel Villaverde Cabral; “Do censo dos 5 réis a um futuro com chips no bolso”, de Patrícia Jesus; “Antigos, porcos e maus: retrato passado menos que perfeito”, de Fernanda Câncio; “Quando o submarino Hunley afundou um navio da União e acabou a inspirar Júlio Verne”, de Leonídio Paulo Ferreira; “Eduardo Coelho, a vida dele dava um jornal”, de Ferreira Fernandes; “A caixa-forte dos seis milhões de mistérios”, de Artur Cassiano; “Títulos diários mais do que centenários”, de Abel Coelho de Morais; “A língua portuguesa como princípio e fim, numa universidade aberta ao mundo”, de Rui Marques Simões, incluindo entrevista com João Gabriel Silva, reitor da Universidade de Coimbra; “’Do prémio que lhe sair por sorte na extracção da loteria’ à crise que atinge a classe média”, de Miguel Marujo, com entrevista a Manuel de Lemos, presidente da União das Misericórdias Portuguesas; “Torre do Tombo: Quase cem quilómetros para contar a nossa história”, de Maria João Caetano, com entrevista a Silvestre Lacerda, director do Arquivo Nacional da Torre do Tombo; “Um ‘excesso de natureza’ talhado pelo homem com vista para o mundo”, de David Mandim, com entrevista a Manuel Cabral, presidente do Instituto dos Vinhos Douro e Porto; “A associação para funcionários, famílias e ‘credores de gratidão’ que se tornou o sexto maior banco”, de Céu Neves, com entrevista a Paula Guimarães, directora do Gabinete de Responsabilidade Social do Montepio Geral; “Eça de Queirós – De Port Said a Suez”, com reprodução das quatro crónicas ecianas de  1870 a propósito da viagem para assistir à inauguração do canal de Suez; “Caça à entrevista de Hitler pelas cervejarias de Munique”, de Ferreira Fernandes, com reprodução da entrevista de António Ferro a Hitler; desenhos de André Carrilho sobre o que será o mundo em 2164.
O suplemento finda com a reprodução do número inaugural do Diário de Notícias, que acrescenta mais uma razão às oitenta anteriormente indicadas para um assinalar interessante de uma efeméride que, mais do que marcar a longevidade, destaca o a função do jornalismo e da informação.

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

João Magueijo: um olhar sobre Inglaterra



“Estou no cimo de uma serra, estou no céu, ou se calhar voo pelos ares de asas abertas numa nuvem sem borbotos, e vai-se a ver estou a nadar no mar alto sem ter fundo, que ao fim e ao cabo isto vai dar tudo ao mesmo: uma grandessíssima arrelia. Não se enxergava uma polegada britânica à frente do nariz, com os cristais de gelo sobre as pálpebras parecia que nem o próprio nariz se via. E é isto vir de férias nesta ilhota do mar do Norte.” Assim começa Bifes mal passados (Lisboa: Gradiva, 2014), a obra de João Magueijo (n. 1967) que, entre Junho e Novembro, atingiu onze edições e que tem por subtítulo o explicativo dizer: “Passeios e outras catástrofes por terras de Sua Majestade”.
Não vá o leitor enganar-se e pensar que está perante um livro de viagens, o subtítulo desengana logo e o primeiro capítulo não lhe fica atrás. Sugestivamente intitulado “weekend”, esse texto de abertura relata uma ida a Helvellyn, em Lake District, caminhada cheia de peripécias demasiado catastróficas para se recordar um bom passeio. Essa abertura serve ainda para o autor mostrar a sua ligação a Inglaterra e para se justificar do tom a utilizar: “Tendo vivido vinte e tal anos em Inglaterra, depois de acumular duras experiências, munido da sagacidade que a rude prática nos traz, hoje em dia, quando quero ir de férias, espairecer um bocado, desaparecer um fim-de-semana, a primeira coisa que faço é comprar um bilhete de avião. E fugir deste ilhéu a sete pés!” Não é, pois, feliz o retrato que vai ser feito do país de acolhimento do autor…
Ao longo das quase duas centenas de páginas, o leitor vai conquistando a surpresa do mal-estar que invade a memória do narrador. Com efeito, o livro, extensa crónica de vivências diversas, com opiniões que partem de histórias do acaso, é também um repositório memorialístico, já que as experiências aconteceram na primeira pessoa e contêm a marca autobiográfica. Por lá passam apreciações da paisagem, dos hábitos, das pessoas, em suma, de uma identidade do outro, perscrutada por um estrangeiro que acaba por se habituar e por se inserir na sociedade de que tanto se ri e sobre outro tanto ironiza.
À medida que os comentários sobre Inglaterra vão correndo, vai o leitor percebendo que a vida do narrador se alicerça sobre o conjunto de experiências que vai vivendo e sobre as memórias que vai tendo do seu país, de Portugal, ora pela evocação de tempos da sua infância e juventude em Sesimbra ou no Alentejo, ora pelo conhecimento que detém de uma certa forma de ser português, mais prático, mais imediato, mais popular, a tentar compreender um mundo novo, que não tem semelhanças com o de origem.
O tom de riso ou de humor é logo marcado pelas epígrafes que abrem a obra, de Petrónio e de Jerome K. Jerome, e, ao longo do escrito, há ainda referências a Orwell, a Bergerac, a Baudelaire, a Eça, a Rentes de Carvalho, todos eles suficientemente críticos e praticantes de humor e de dizeres sobre outros povos. Apesar disso, vai-se o leitor interrogando sobre o ponto a que chegará esta obra, tão intenso é o tom crítico, atingindo por vezes um certo mal-estar no que se lê, seja por algum aparente exagero, seja por não se saber muito bem a partir de que ponto uma experiência pessoal pode passar a marca generalizada…
O capítulo designado “Epílogo” faz as pazes ou estabelece a harmonia entre o narrador, o leitor e o mundo que foi (re)criado. O título que lhe é dado contém também uma chave para a leitura – “Agridoce”. E é num desabafo que essa chave se inicia: “agradeço a quem me leu até aqui por ter aturado as graçolas de mau gosto, mas espero que tenha ficado claro que não são gratuitas – se as disse é porque esta é a única forma de lidar com este país sem recorrer ao suicídio.” Daqui para a frente, o autor revê-se na sorte que teve em ter passado esse tempo em Inglaterra – “Foi esta a pátria  adoptiva que me permitiu fazer o que gosto: a minha vida como físico e cosmólogo tem sido uma longa história de amor com as tradições científicas britânicas, que não são perfeitas, longe disso, mas também não é isto amor platónico, é uma relação carnal que aprecia a sua verrugazita. Pelo contrário, se tivesse ficado em Portugal teria sido a asfixia.” A justificação para o tom de gozo e de ironia utilizado expõe-na João Magueijo numa observação sobre o auto-retrato que os ingleses de si mesmos produzem: “Uma das particularidades do humor britânico é que frequentemente é self-deprecating, auto-depreciativo: consiste em fazer pouco de si próprio, levado a um extremo que deixa os estrangeiros constrangidos.” Com esta reflexão, o autor assume já o seu quê de britânico, melhor, de inserido no espírito do país que o recebeu e de que ele se ri, porque, afinal, o riso e a gargalhada surgem sobre as suas experiências, não as que lhe passaram ao lado mas as de que ele foi protagonista.
Por isso, a crónica encerra com algo que pode ser um princípio salutar: “As pessoas às vezes levam-se demasiadamente a sério. Não há nada mais saudável do que rir às gargalhadas de si próprio.” E é isso que ressalta neste Bifes mal passados: as aventuras de um português que assume um percurso de descoberta e de inserção em terras de Sua Majestade… nem sempre agradável, é claro, mas que serve para se inserir e para a afirmação da sua identidade também.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Para a agenda - Evocar Fran Paxeco



Fran Paxeco (1874-1952) vai ser evocado em Setúbal, sua terra, numa organização conjunta entre a respectiva Câmara Municipal e a LASA (Liga dos Amigos de Setúbal e Azeitão).
A iniciativa conta com uma exposição, em que serão mostrados documentos do espólio do homenageado, e com uma conferência a cargo de António Cunha Bento, o setubalense que mais tem investigado a história e a obra de Fran Paxeco. Uma excelente oportunidade para se conhecer um nome que talvez seja mais conhecido no Brasil do que em Portugal... Em 20 de Dezembro, na Escola de Hotelaria e Turismo de Setúbal. Para a agenda!

Para a agenda - José Ruy em Setúbal



José Ruy é nome incontornável na cultura portuguesa, especialmente na banda desenhada. Autor de extensa obra, por ela têm passado as biografias de personalidades importantes como João de Deus, Fernão Mendes Pinto, Aristides Sousa Mendes, a adaptação de obras literárias devidas a Camões, Gil Vicente ou Alexandre Herculano, ou histórias da cultura portuguesa como a da língua mirandesa.
Os setubalenses vão ter mais uma vez a oportunidade de se encontrar com José Ruy, numa iniciativa em que estão envolvidos o programa cultural "Muito cá de casa" e a livraria Culsete. Na Casa da Cultura, em conversa com Cristina Gouveia, na noite de 19 de Dezembro. Para a agenda!

Para a agenda - Lápide bocagiana regressa ao antigo Quartel do 11, em Setúbal



As antigas instalações do designado “Quartel do 11”, onde esteve alojado o respectivo Regimento de Infantaria e que albergam hoje a Escola de Hotelaria e Turismo de Setúbal, vão voltar a exibir na fachada principal a lápide alusiva ao ingresso de Bocage no então Regimento de Infantaria de Setúbal, ocorrido em 1781.

A lápide, ali colocada inicialmente em 1980 por iniciativa do capitão José Rebelo, foi retirada durante as obras de remodelação do edifício. A LASA (Liga dos Amigos de Setúbal e Azeitão) tomou a iniciativa da sua recolocação, ainda que numa réplica, acto que vai ocorrer pelas 11h00 de 21 de Dezembro, dia em que se assinala a morte de Bocage (em 1805).

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Para a agenda - Uma visita a alguns pergaminhos do vinho



Um contributo para os pergaminhos da história do vinho na região de Setúbal, Palmela e Arrábida ou os 180 anos da marca José Maria da Fonseca em exposição no Museu Sebastião da Gama, em Azeitão, a inaugurar amanhã, 12 de Dezembro, e a visitar até 25 de Janeiro. Para a agenda.

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Para a agenda - Do vinho, dos poetas, da solidariedade



Numa realização do movimento Casa da Poesia de Setúbal, vão os vinhos servir para evocar poetas. Um gesto de solidariedade com a Cáritas de Setúbal e o apoio da Casa Ermelinda Freitas, em que serão vivas as palavras de Maria Adelaide Rosado Pinto, Cabral Adão, Bocage, Calafate e Sebastião da Gama. Em 14 de Dezembro, à tarde, na Casa da Baía. Para a agenda!

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Grandes entrevistas da História, com o "Expresso" (5)



Entrevistas realizadas na última década do século XX e no primeiro lustro do século XXI constituem o sexto volume de Grandes Entrevistas da História, que o semanário Expresso está a publicar, sendo protagonistas desta série: José Saramago (Clara Ferreira Alves, Expresso, 02-11-1991), João Havelange (Andrés Mercé Varela, La Vanguardia, 17-04-1994), António de Spínola (José Pedro Castanheira, Expresso, 30-04-1994), Osama Bin Laden (Robert Fisk, The Independent, 22-03-1997), Michael Jackson (Edna Gundersen, USA Today, 14-12-2001), Gilberto Gil (Joaquim Ibarz, La Vanguardia, 05-01-2003), Hugh Hefner (Lluís Amiguet, Magazine, 13-04-2003), Bansky (Simon Hattnestone, The Guardian, 17-07-2003), Dalai Lama (Luke Harding, The Guardian, 05-09-2003) e Tony Blair (Jeremy Webb, New Scientist, 01-11-2006).
A entrevista de José Saramago tem como pretexto a publicação do seu romance (que gerou polémica) O Evangelho segundo Jesus Cristo e serve para o autor falar de cristianismo, de comunismo, de ideologia e da história do mundo. Na conversa, Saramago explica-se: “A tese escondida é a de que eu digo, em primeiro lugar, que o cristianismo não valeu a pena; e em segundo, que se não tivesse havido cristianismo, se tivéssemos continuado com os velhos deuses, não seríamos muito diferentes daquilo que somos”. Se se justifica quanto ao livro e quanto às ideias feitas sobre a religião, também se afirma relativamente ao Partido Comunista e à ideologia – “a União Soviética não é nem nunca foi, para mim, uma referência política ou ideológica”, chegando a afirmar que sairá do partido “se um dia se sentir mal”. A questão da sua escrita no que se relaciona com a dimensão histórica, do tempo, também lhe merece aprofundamento: “Agrada-me pensar que o tempo não é essa diacronia, essa sucessão de momentos, agrada-me pensar no tempo como uma espécie de imensa tela onde se projectam e se fixam os acontecimentos.”
O outro português sentado nesta mesa das entrevistas é António Spínola, o homem que povoou as primeiras páginas dos jornais durante muito tempo, sobretudo a propósito dos acontecimentos decorrentes  do 25 de Abril de 1974. É uma entrevista de memórias quanto ao que se passara anos antes, oscilando entre a dedicação ao 25 de Abril e um certo ajuste de contas com políticos e sectores, como o MFA (Movimento das Forças Armadas) e o PCP. Nem tudo é pormenorizado ao ponto de o leitor poder avaliar as posições. Certo é que o militar se sobrepõe ao político. Não escondendo a razão de ser do monóculo (algo que usava por tradição recebida dos oficiais de cavalaria), explica-se quanto ao que viveu na Guiné e quanto à emergência que era a independência daquele território. Personalidades como Costa Gomes, Rosa Coutinho ou Vasco Gonçalves não são poupadas e, na história política que viveu, não esqueceu a parte do MDLP (Movimento Democrático de Libertação de Portugal). Ao seleccionar o seu maior sucesso político, optou: “ter colaborado abertamente nos objectivos previstos no 25 de Abril, que, em última análise, se resumiram à restituição da liberdade e da democracia ao povo português”. E quanto ao sucesso militar, destaca, a fechar a entrevista: “ter participado como voluntário na Guerra do Ultramar, onde tive o privilégio de correr riscos ao lado dos nossos extraordinários soldados, lídimos representantes do ancestral patriotismo do povo português”.
Do Brasil, foram convocados também dois nomes: primeiro, o de João Havelange, fluminense que presidiu à FIFA (Federação Internacional de Futebol Associado) entre 1974 e 1998, numa conversa que passa pelo vasto mundo do futebol a nível mundial, com ideias sobre inovações, com responsabilidades, tocando, entre outros, os problemas da massificação e da arbitragem. A fechar o encontro, Havelange refere: “penso no futebol, que é a grande paixão do mundo actual, e tento dar o equilíbrio para que esta paixão seja um elemento civilizador da nossa sociedade”. O outro entrevistado é Gilberto Gil, músico e político do governo de Lula da Silva (em que interveio como Ministro da Cultura), em conversa tida com o jornalista no dia em que tomou posse no cargo. A conversa ficará marcada por esse momento, uma vez que o tema foi a política cultural a implementar, com destaque para o fomento da criatividade, uma vez que “a política cultural não pode deixar todos os seus trunfos à mercê de ventos, sabores e caprichos do deus Mercado”.
Da área da política aparecem mais três nomes: Dalai Lama, Tony Blair e Osama Bin Laden. Quanto ao primeiro, o décimo-quarto Dalai Lama do Tibete, um monarca que perdeu o reino por imposição do governo chinês, deixa uma entrevista pincelada pela amargura do exílio forçado e pela dúvida quanto ao futuro no que toca ao sucessor. Apesar destes traços, o discurso é apaziguador – “a melhor solução para um problema consegue-se através do diálogo”. No caso de Tony Blair, a conversa, atendendo à publicação que a reproduziu, toca um tema candente como seja a ligação da política com a ciência, defendendo Blair a necessidade de a política britânica ter de considerar “a ciência tão importante como a estabilidade económica”, assim como a urgência de académicos e empresários irem à escola com o objectivo de despertarem “entusiasmo nos alunos, não só pelas descobertas científicas, mas também pela infinidade de oportunidades laborais” existentes na área. O tema vinha a propósito de acontecimentos ocorridos no tempo da governação de Blair – a clonagem, as culturas transgénicas e as recusas por parte da população na administração de algumas vacinas. O terceiro entrevistado, Bin Laden, faz girar a conversa em torno da guerra santa contra os Estados Unidos, quase único inimigo, bem como a dose de ameaças relativamente à América, que o entrevistador não sublinhou convenientemente, só a tendo valorizado após o 11 de Setembro. A peça jornalística, cujo autor chegou três vezes à fala com Bin Laden, oscila entre os géneros entrevista e reportagem, já que também narra, com algum pormenor, a viagem ao encontro do dirigente fundamentalista.
Do mundo do espectáculo e da arte são os outros três entrevistados: Michael Jackson, Hugh Hefner e Bansky. O encontro com Jackson resulta numa entrevista fortemente condicionada, já que a conversa teve a presença de assessores do artista, que impediram que algumas perguntas fossem feitas ou desviaram a atenção das respostas, sobretudo quando relacionadas com a vida privada do artista ou com os escândalos que o acompanharam. Jackson aceitou apenas falar de música, de “show”, ainda que se deslumbre a falar dos filhos e que tenha confessado ter tido uma infância perdida. A razão de entrevista tão condicionada é exposta por Jackson: “se aceitasse entrar na esfera pessoal, seria o único assunto de que as pessoas falariam”. Assim, forte é a paixão pela música e pelo reviver de alguns momentos em palco e com os seus fãs. Hugh Hefner surge entrevistado sem ser para a publicação que fundou e com que alcançou fama e sucesso, apesar de o pretexto da entrevista serem os 50 anos sobre a fundação dessa revista, a Playboy. Assim, o diálogo versa sobre as vitórias e dificuldades do projecto, visando uma nova ideia do homem moderno, em muito criado e vivido na própria personalidade do fundador Hefner. Com o ar mais solene, o entrevistado comenta: “Sempre disse que a Playboy não é uma revista de sexo, mas sim uma publicação sobre estilos de vida que dedica especial atenção ao sexo, porque o sexo é uma parte importante da vida”. E uma curiosidade: a revelação de que o primeiro número da publicação não teve data registada porque, por razões económicas, não havia a certeza de vir a ser feito um segundo número…
O último entrevistado deste lote é Banksy, o artista de paredes que ninguém identifica. Sem fotografia, Banksy ajuda a construir o seu próprio anonimato, tomando posições contra marcas e códigos, comprazendo-se com o viver no fio da navalha para não ser descoberto. Com orgulho, afirma: “a lista dos trabalhos que recusei é muito mais extensa do que a dos trabalhos que fiz. É como um currículo ao contrário, é estranho.” Depois, é o desenrolar de histórias sobre os desenhos em paredes, seguindo o princípio do graffiti quanto à efemeridade, mas com a eficácia da crítica e do fazer pensar, porque “a graça está em dedicar menos tempo a fazer o desenho do que as pessoas a observá-lo”.
Tempos de crise, de mudanças, de reflexão sobre o tempo e a forma de se estar constituem esta dezena de entrevistas, que acentua a quantidade de questões que o século XXI tem ainda para resolver, se é que essa vai ser uma preocupação…

Sublinhados
Música – “A música é um mantra que alivia a alma. É terapêutica. É algo necessário para o corpo, como o alimento. É muito importante compreender o poder da música. Seja onde for, num elevador ou numa loja, a música influencia a forma de comprar ou a forma como tratamos a pessoa que temos a nosso lado.” [Michael Jackson. Entrevista a Edna Gundersen, em USA Today (14.Dezembro.2001). Grandes Entrevistas da História 1991-2006. Lisboa: “Expresso”, 2014, pg. 70]

Religião – “As religiões tanto servem para sobreviver às perseguições como para fazer perseguições, e os perseguidos vão por seu turno refugiar-se noutra religião que fará outros perseguidos.” [José Saramago. Entrevista a Clara Ferreira Alves, em Expresso (02.Novembro.1991). Grandes Entrevistas da História 1991-2006. Lisboa: “Expresso”, 2014, pg. 17]

[Com a próxima edição do Expresso, o último volume da série, o nº 7]


domingo, 7 de dezembro de 2014

O Natal de 1914 e a confraternização dos dois lados da "terra de ninguém"


Recordação de um Natal... em 1914, na fúria das trincheiras. Ou de como o homem pode construir a paz! Na "Revista" do Expresso de ontem (nº 2197, pg. 114), a memória assinada por Luís Pedro Nunes sobre o Natal em que soldados dos dois lados da trincheira confraternizaram, umas tréguas decididas por eles mesmos, sem a concordância ou a autorização das chefias. Já era sabido, como o autor lembra, que "a humanização do inimigo é o pior que um general pode desejar às suas tropas"...


sábado, 6 de dezembro de 2014

Grandes entrevistas da História, com o "Expresso" (4)



As dez personagens reveladas no quinto volume de Grandes Entrevistas da História (em publicação a cargo do semanário Expresso), que abrange o espaço temporal entre 1971 e 1990, são: Margaret Thatcher (Terry Coleman, The Guardian, 02-11-1971), Stanley Kubrick (Gene Siskel, Chicago Tribune, 13-02-1972), Yasser Arafat (Oriana Fallaci, Intervista con la Storia, 1974), Álvaro Cunhal (Oriana Fallaci, L’Europeo, 06-06-1975), Amália Rodrigues (Miguel Esteves Cardoso, Se7e, 24-11-1982), Pablo Escobar (Yolanda Ruiz, RCN Radio, 1988), Steve Jobs (Bob Burlingham e George Gendron, Inc., 04-1989), Jack Nicholson (Gene Siskel, Chicago Tribune, 12-08-1990), Luciano Pavarotti (Màrius Carol, Magazine, 02-09-1990) e Ayrton Senna (Gerald Donaldson, McLaren, 09-1990).
Na entrevista com Amália, além de surpreender o tom de abertura e de rapidez com que a conversa se desenrola, é ainda de enaltecer o formato de texto devido a Miguel Esteves Cardoso, perguntas e respostas segmentadas em dez partes, cada uma delas tendo como título um mandamento, resultante do conteúdo e da dose de revelação que surge nas respectivas respostas. Uma estratégia coerente, pois que o jornalista se metaforiza em profeta, logo no início do texto: “A partir de hoje, podem chamar-me Moisés. Subi à montanha de São Bento e a Deusa falou-me e transmitiu-me os seus Mandamentos. Agora esculpo-os numa pedra. Numa pedrada de divindade e de Fado.” A entrevistada surge em diálogo com as marcas que já lhe eram habituais, sem certezas, mas num tom pessoal expressivo. Cantora ou fadista? “Nem uma coisa nem outra. Não sei se sou fadista, se não sou. Era pequenina e cantava. Um dia disseram-me que aquilo era fado. Disseram-me que era fado… mas eu não faço questão.” Falará das músicas, de trivialidades, de histórias, da simbologia que lhe foi atribuída, de poemas e do que de si ficará para a memória: “Sim, vai em mim essa pieguice, de querer continuar nas pessoas. A coisa mais bonita que podem dizer de mim, depois de morta, seria ‘Coitadinha da Amália, já morreu…’! ‘Tadinho’ é uma das palavras mais portuguesas, gosto muito dela. Tenho essa pieguice porque sei que, depois de morrer, o universo acaba comigo.” E, no final, um humor brilhante: Esteves Cardoso quer inverter os papéis e, em vez de lhe pedir uma mensagem final: “A senhora quer fazer a última pergunta?” Resposta imediata, certeira: “Obrigada, mas não pergunto nada, com medo das respostas.”
O outro português entrevistado nesta obra, Álvaro Cunhal, deve a sua entrada ao trabalho da jornalista italiana Oriana Fallaci. É uma entrevista dura porque Fallaci assume contestar muitas afirmações de Cunhal, que profere afirmações polémicas do ponto de vista político (que, aliás, mereceram muitas reservas em várias latitudes, depois de conhecida a publicação) e mantém um secretismo assumido quanto à sua vida pessoal. A entrevista tem uma longa introdução, que a autora preparou para a integrar no seu livro Intervista com la Storia, em que o político português é retratado e biografado, numa tentativa de explicação da personagem, chegando Fallaci a interpretar o silêncio sobre o privado como o “gosto pelo mistério [que] surgiu em consequência do seu passado como conspirador e, também, da tal renúncia que é tão típica de alguns comunistas”. Cunhal mostrou convicções que, lidas hoje, acentuam as marcas epocais no vocabulário usado – “nós, comunistas, não aceitamos o jogo das eleições”, já que elas “pouco ou nada têm a ver com a dinâmica revolucionária”; “garanto-lhe que em Portugal não haverá um Parlamento”; “Portugal já não tem qualquer hipótese de estabelecer uma democracia ao estilo das que vocês têm na Europa ocidental”; “o 25 de Abril não foi um golpe (…) foi um movimento de forças democráticas no seio do Exército”; “Portugal não será um país com as liberdades democráticas e os monopólios, não será companheiro de viagem das vossas democracias burguesas”. Assumiu a sua concordância com a intervenção soviética na Checoslováquia, a frontalidade com que respondeu ao embaixador americano sobre a permanência de Portugal na NATO, dizendo-lhe: “por agora, não queremos discutir esse problema”. Em vários momentos, a conversa mais parece um jogo de fuga: Fallaci quer saber de onde veio Cunhal quando chegou a Portugal em 1974 e a resposta mostra-se evasiva  –  “Não lhe digo onde estava. Vocês, os jornalistas, gostam tanto do  mistério como nós, os comunistas”; noutro passo, a jornalista insiste com a ideia do “imperialismo soviético” e a refutação surge sob a forma de alteração das regras – “Um dia hei-de entrevistá-la a si acerca do imperialismo soviético”.
De Oriana Fallaci é ainda a entrevista com Arafat, outro encontro em que as respostas constituem um enigma sobre a personagem. Uma parte significativa do texto, no início é a reconstituição possível da história do líder palestiniano nascido egípcio, que, na conversa, rejeitas várias vezes responder a perguntas sobre a sua vida pessoal e centra o discurso num jogo em que foge, frequentemente, ao que lhe é perguntado, mais interessado na luta contra Israel – “só agora começámos a preparar-nos para o que será uma longa, longuíssima guerra, uma guerra destinada a prolongar-se por gerações”; “deve perguntar até onde poderão resistir os israelitas, porque não pararemos até ao dia em que possamos regressar a casa e tenhamos destruído Israel”. A própria jornalista é vista como uma representante dos adversários e é desafiada – “Se têm assim tanto interesse em dar uma pátria aos judeus, dêem-lhes a vossa. Há muita terra na Europa, na América.” E termina o diálogo com uma quase confissão: “Nunca encontrei a mulher certa. E agora não é o momento. Casei-me com uma mulher chamada Palestina.”
O universo da política tem ainda encontro com Margaret Thatcher, numa entrevista dominada pelos acontecimentos do momento, a do leite nas escolas, apoio cortado pelo governo, e pela imagem que da governante se faria. Ressalta uma figura enérgica, contrapondo às marcas negativas do seu retrato as decisões tomadas em prol das melhorias, às questões mais problemáticas uma explicação que finda com a pergunta “não é?”, ao mundo das dificuldades o seu próprio percurso, aos comentários dos adversários uma certeza – “os insultos dizem mais sobre quem os profere do que sobre quem é alvo deles, não é?”
Pretendendo ter intervenção política, sobretudo pelo condicionamento que fez nessa área, surge Pablo Escobar, o colombiano que associou o seu país ao narcotráfico, com um discurso que, conjugado com o que se sabia e se veio a saber sobre o entrevistado, configura situações de vitimização, de paradoxo, de representação, de discurso para tratar a imagem perante o seu país e o estrangeiro – “sou uma pessoa que respeita muito as ideias alheias”; “sempre estivemos abertos ao diálogo e pessoalmente considero que a falta de diálogo é a causa principal da violência no país”; “existe uma preocupação com o consumo de drogas”; “as drogas vieram para ficar”; “todas as pessoas acusadas publicamente de pertencer ao narcotráfico são, na verdade, as únicas pessoas que investem no país, isto é, as únicas que dão trabalho ao povo da Colômbia”.
Do mundo do cinema, o encontro é com um realizador, Kubrick, numa entrevista curta que toma como referência o filme Laranja Mecânica e a opinião sobre política e ambiente social, sempre na perspectiva de que a autoridade pode levar à repressão. O outro entrevistado é Nicholson, o actor que demonstra uma forma sadia de lidar com a fama e com o sofrimento (real, por razões familiares), bem como com a felicidade (na ternura com que fala da filha bebé que lhe nascera aos 53 anos, por altura da entrevista) ou com a opção de viver sozinho. Ainda do mundo do espectáculo é Pavarotti, o tenor que trouxe a música clássica para os estádios, falando dos seus prazeres, da sua música e da sua pintura, revelando-se sempre um imperfeito, um trabalhador incansável a lidar com os seus dotes, um “superperfeccionista” – “acho sempre que tudo aquilo que faço, por muito bem que esteja, pode sempre ser melhorado”.
A entrevista com Ayrton Senna é um encontro com um homem do risco e das manobras arriscadas. Senna é apresentado como um tímido muito por responsabilidade do próprio autor da entrevista, que reproduz toda a conversa em discurso indirecto, só dando a palavra ao entrevistado no final, numa mensagem. Apresentado com grande dose de humanismo e de carinho pelos seus fãs, Senna mostra-se em reflexão, oscilando entre o risco e uma maneira própria de lidar com a fama. No final do encontro, comove-se e fala dos artistas enquanto símbolo: “Em muitos aspectos, não somos uma realidade para as pessoas, mas um sonho. É uma coisa que nos fica gravada no pensamento. Mostra-nos até que ponto podemos ter impacto na vida das pessoas. E, por mais que tentemos dar qualquer coisa a essas pessoas, nunca será nada, comparado com o que elas sentem por nós dentro delas e nos seus sonhos. E isso é muito especial… é muito, muito especial para mim.” Como se sabe, Senna morreria em prova cerca de quatro anos depois, em 1 de Maio de 1994, no circuito de Imola.
Steve Jobs não pertence a nenhum dos mundos das outras personagens deste volume. Ligado às tecnologias, a marcas extraordinárias no universo da informática, Jobs apresenta-se na luta pela democratização das tecnologias numa perspectiva de que o público exigirá sempre mais, de inovação nas empresas, de aposta na criatividade dos colaboradores de abertura para a surpresa da vida. Não é da entrevista (gerada em 1989), mas o organizador do volume, em nota final, retoma um pensamento de Jobs, produzido em Junho de 2005, proferido na Universidade de Stanford, quando ele já sabia estar doente, sem hipótese de recuperar: “Lembrar-me de que em breve estarei morto é a ferramenta mais importante que encontrei para me ajudar a tomar as grandes decisões da minha vida. (…) Lembrarmo-nos de que vamos morrer é a melhor forma que conheço de evitarmos o engano de acharmos que temos algo a perder.”
Vinte anos de esperanças, de crenças, de contradições. Um tempo que oscilou entre os grandes avanços no domínio da tecnologia e as instabilidades oriundas da política a céu aberto…

Sublinhados
Computador – “Os seres humanos são basicamente fabricantes de ferramentas, e o computador é a ferramenta mais extraordinária que construímos até hoje.” [Steve Jobs. Entrevista a Bob Burlingham e George Gendron em Inc. (Abril de 1989). Grandes Entrevistas da História 1971-1990. Lisboa: “Expresso”, 2014, pg. 108]
Experiência – “Se não adquirirmos um pouco de bom gosto e de experiência enquanto jovens, nunca mais o faremos. A experiência faz aumentar o prazer…” [Jack Nicholson. Entrevista a Gene Siskel em Chicago Tribune (12-08-1990). Grandes Entrevistas da História 1971-1990. Lisboa: “Expresso”, 2014, pg. 125]
Melhor – “As pessoas ficam mais motivadas a fazer coisas o melhor possível do que a fazê-las de forma simplesmente correcta.” [Steve Jobs. Entrevista a Bob Burlingham e George Gendron em Inc. (Abril de 1989). Grandes Entrevistas da História 1971-1990. Lisboa: “Expresso”, 2014, pg. 112]
Passado – “Quando um homem tem um passado extraordinário, este vem ao de cima mesmo que ele o esconda, pois o passado está gravado no rosto, nos olhos.” [Oriana Fallaci. Introdução à entrevista de Yasser Arafat, em Intervista com la Storia (1974). Grandes Entrevistas da História 1971-1990. Lisboa: “Expresso”, 2014, pg. 36]

Com o Expresso de hoje, o 6º volume

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Para a agenda - João de Melo na Culsete com o seu mais recente livro



João de Melo, dono de vasta e reconhecida obra literária, açoriano, estará na Culsete, em Setúbal, para apresentar o seu mais recente romance, Lugar caído no Crepúsculo. No dia 6 de Dezembro. Para a agenda.

Para a agenda - "A Restauração", jornal monárquico-integralista sadino, em conferência



Se quer saber sobre o jornal A Restauração, quinzenário que se assumia como "monárquico-integralista", em Setúbal na I República, dirigido por Augusto da Costa, o investigador e mestrando em História Contemporânea Diogo Ferreira vai conferenciar sobre o tema no Club Setubalense, na tarde de 6 de Dezembro. Para a agenda.

Para a agenda - TAS em "Estórias contadas pelo vento"


O TAS (Teatro Animação Setúbal) com teatro para crianças em Estórias contadas pelo vento, numa interpretação de Célia David. Durante uma semana, a partir de 6 de Dezembro. Para a agenda.

Para a agenda - Pintura de António Galrinho



António Galrinho, nome de diversidades criativas e artísticas, expõe "Quadros Quadrados Quadriculados" na Casa da Cultura, em Setúbal. A partir de 6 de Dezembro. Para a agenda.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Fernando Pessoa: 80 anos de "Mensagem"



Em 1 de Dezembro de 1934, há 80 anos, era posto à venda o título Mensagem, único livro que Fernando Pessoa publicou em português. Para lá da simbologia que poderia haver na escolha da data para a entrada do título no circuito comercial por parte da editora Parceria António Maria Pereira, também é verdade que o livro esteve para ter o título de Portugal.
Se não o teve foi por influência de um amigo do autor e por uma decisão de rejeição. Com efeito, o nome do país andava a ser usado comercialmente em campanha promotora do nome “Portugal”. E Pessoa confessa num dos seus escritos: “O meu livro Mensagem chamava-se primitivamente Portugal. Alterei o título porque o meu velho amigo Da Cunha Dias me fez notar – a observação era por igual patriótica e publicitária – que o nome da nossa Pátria estava hoje prostituído a sapatos, como a hotéis a sua maior Dinastia.”
Onésimo Teotónio de Almeida cita texto de José Blanco a propósito do prémio atribuído a Mensagem em 1934: “A Mensagem não chegava às 100 páginas regulamentares, ao contrário do livro do padre Vasco Reis, pelo que concorreu à categoria B (poema ou poesia solta). Foi, como se sabe, por intervenção directa de António Ferro que o montante do respectivo prémio, para o qual a Mensagem tinha sido passada apenas por uma simples questão de número de páginas, foi elevado para 5000$00, exactamente o mesmo atribuído pelo regulamento à obra premiada na categoria A.” (in Pessoa, Portugal e o Futuro. Lisboa: Gradiva, 2014)
Vasco Reis, sacerdote flaviense, ganhou o prémio com A Romaria, também publicado em 1934. Mais tarde, passaria a assinar as suas obras, romances de teor colonial (entre outros: Cafuso, 1956; Filha de Branco, 1960; Caminhos, 1961; Queimados do sol, 1966), com o nome de Reis Ventura, pseudónimo de Manuel Joaquim Reis Barroso (1910-1992). Em vários momentos, o autor de A Romaria confessou que o verdadeiro vencedor do Prémio Antero de Quental de 1934 deveria ter sido Mensagem.

1º de Dezembro, a Restauração


Pela segunda vez, o feriado comemorativo da Restauração da Independência não é assinalado. Por muitos discursos que se façam sobre a data - podendo mesmo virem do poder político - não foi um acto de coragem ter suspendido este feriado. Por ser fundacional, por ser evocativo de algo que cada vez vai estando mais ausente - o sentido de independência, de afirmação de um povo, de uma nacionalidade, de um país. Uma tristeza!...