domingo, 29 de janeiro de 2017

Fado com histórias de Setúbal (4): Nomes que o fado teve ao pé do Sado


Uma das obras fac-similadas que integra a colecção de bibliografia sobre o fado, em distribuição com o jornal Público (editada por A Bela e o Monstro), deve-se a Alberto Victor Machado (1892-1939) e pretende coligir nomes e percursos relacionados com o género musical - Ídolos do Fado (Lisboa: Tipografia Gonçalves, 1937) -, nela se notando também a presença do filão da defesa do fado, sobretudo num tempo em que várias vozes se tornaram críticas quanto à importância do género, pormenor logo assinalado no prefácio assinado por Artur Inês - o livro revestia-se de oportunidade por surgir «no momento em que uma nova campanha de descrédito pretende acabar com o fado».
O primeiro capítulo é, assim, uma justificação para o gosto, um quase manifesto em nome da tolerância, levando o autor a afirmar: «Não gostamos de ópera e por isso a não frequentamos, nem mesmo por snobismo como alguns; mas longe de nós a ideia de combatê-la. Seria ridículo, absurdo e até pouco cortês para aqueles que sabem apreciá-la.» Apoia-se, depois, no testemunho favorável de diversos autores (Rocha Martins, Artur Inês, Júlio Dantas, Norberto de Araújo, Palmira Bastos, Chianca de Garcia, Estêvão Amarante, Amélia Rey Colaço, entre outros), para concluir: «O amarelo não teria gasto se todos o detestassem; e, como os gostos não se discutem, que os de má boca se convençam de que, não obstante o negregado polvo da carestia da vida oprimir entre os seus tentáculos a humanidade, cada qual come do que mais gosta... e a caravana passa.» Em favor do fado, o autor lista nomes importantes na área (na composição, na interpretação ou na execução musical), não esquecendo que também «na poesia tem ele encontrado os seus mais fervorosos cultivadores, os seus mais desvelados adeptos», logo mencionando João de Deus, Júlio de Castilho, António Nobre, Guerra Junqueiro, Cesário Verde, Gomes Leal, Bulhão Pato, Augusto Gil, Bernardo de Passos, nomes de muito vasto grupo que integra autores de letras e apreciadores. Impressionante ainda é a listagem de títulos da imprensa especializada no fado de que o autor dá conta, que chega a atingir as duas dúzias.
É no quarto capítulo que se inicia a série de biografias, por ordem alfabética, rol que abrange também o capítulo seguinte, registos que foram conseguidos através de entrevista aos próprios, repto lançado na revista Guitarra de Portugal, em Janeiro de 1937, em que se pretendeu «ouvir de viva voz todos os biografados e recolher os seus depoimentos, dando-lhes fiel reprodução». E, a terminar as considerações, Victor Machado incide de novo sobre os depreciadores do fado: «a compensar-nos dessa labuta em que voluntariamente nos embrenhámos, temos o regozijo de poder demonstrar que os cantadores do Fado, os seus poetas, guitarristas e violistas, não são essa horda de vadios e vencidos como alguns fadistófobos injusta e agressivamente têm ousado julgar em arrazoados e escritos de verrina».
Pelas biografias passam alguns nomes naturais de Setúbal. O primeiro é Carolina Redondo, conhecida como “Cantadeira de Setúbal”, que iniciou a carreira em 1931, tendo recebido o cartão profissional no Teatro Recreio do Povo e chegando a ser homenageada em festa promovida no Teatro Incrível Almadense, dela dizendo o autor que «pronuncia acentuadamente os rr, o que lhe dá uma certa graça», motivo suficiente para ser reproduzida a letra do fado “A Minha Pronúncia”, em sextilhas, da autoria de Clemente José Pereira, interpretado pela própria Carolina Redondo: «Tenho visto muito bem, / Quando canto, alguém sorrir, / Duma forma que, afinal, / Mostra não saber, porém, / Que a pronúncia é o sentir / Da nossa terra natal. // Sem R não se escrevia / A palavra coração, / Onde vibra, tantas vezes, / A tristeza ou alegria, / Ternas virtudes que são / Bens próprios de portugueses. // Sem R nem a guitarra / Teria o nome que tem, / Nem se escrevia o valor / De Portugal, nossa amarra, / Onde se sente tão bem / A terna palavra amor. // Há muita gente que ri, / E há no seu riso a denúncia / Da sua grande ‘fraqueza’; / Pode crer, ri-se de si, / quem ri da minha pronúncia, / Porque ela é bem portuguesa.»
Também sadina é Dolita Lisboa, com carreira em Portugal iniciada no teatro, depois seguindo para o Brasil, onde viveu 16 anos a cantar fado, sambas e tangos e como bailarina. De regresso a Portugal, dedicou-se ao fado, tendo percorrido todo o país. Foi casada com o cantador Manuel Cascais, soldador, homem que se ligou ao fado através de alguém relacionado com Setúbal - «foi em 1916 que ele mais se dedicou a cantar, quando naquela vila (Cascais) apareceu um soldado do batalhão dos Caminhos de Ferro, que ainda hoje vive em Setúbal e então cantava o Fado, dando-lhe algumas letras do seu repertório que ele decorou».
Não sendo natural de Setúbal, mas da Fuzeta, Maria do Carmo Torres foi fadista que teve parte da sua vida ligada à cidade do Sado, onde passou a infância e, mais tarde, trabalhou na indústria conserveira, em que «exerceu o cargo de encarregada de uma das secções e onde, nas poucas horas que o serviço lhe deixava disponíveis, começou a cantar o Fado, sentindo por ele uma verdadeira paixão. Conhecedor desta vocação, o empresário Piteira convidou-a a tomar parte numa revista de Manuel Envia, que então se ensaiava no Salão Recreio do Povo, convite a que acedeu, interpretando um garoto. Maria do Carmo contava nesse tempo apenas 19 anos e foi aquele o seu primeiro êxito. Quando acabou de cantar, o empresário abraçou-a publicamente, felicitando-a com verdadeiro entusiasmo. Era a primeira vez que ela cantava o fado em público e a sua estreia não podia ser mais auspiciosa. Depois, tomou parte no desempenho de uma outra revista no Casino de Setúbal, em que fez a imitação do conhecido marítimo António Gouga, sendo obrigada a cantar sete vezes seguidas, sempre aplaudida com vibrante entusiasmo.»
O nome de José Rocha também não é de Setúbal, mas a esta cidade esteve ligado. Lisboeta e empregado de comércio, «começou a sua vida artística na Companhia Infantil de Manuel Envia, em Setúbal. Foi nesta cidade que cantou o fado pela primeira vez no Casino Setubalense e, depois, em Sesimbra e no Montijo. Também na cidade do Sado tomou parte em muitas festas de beneficência, promovidas pelo Grupo Setubalense Cultivadores do Fado Solidariedade Humana, (...) do qual foi sócio fundador, bem como da Sociedade Promotora de Educação Popular Setubalense, que, em 22 de Novembro de 1936, o elegeu seu sócio honorário. Em Setúbal, José Rocha cantou algumas vezes ao lado dos seus colegas da velha guarda Alfredo Correeiro, João Estica, António Pedro Machado Machadinho, Armando Barata, António Lado, Carlos Ribeiro, José Ribeiro, José Pires e José Alves Barata, estes dois últimos de Setúbal.»
Ainda da região de Setúbal, são mencionados os nomes de Domingos Silva (natural do Barreiro), Ercília Costa (nascida na Costa da Caparica) e Francisco Viana (natural da Moita, conhecido pelo apelido “Vianinha”). 
Nos percursos de vida traçados, há lugar para o registo de localidades onde os biografados intervieram, constando a passagem por Setúbal de nomes como António Lado, Artur Fininho, Augusto Carlos (que cantou também na Incrível Almadense e «em casa do velho cantador Miguel Caleiro, em Vila Nogueira de Azeitão»), Carmen Santos (que cantou em Sesimbra e Barreiro), Ermelinda Vitória (que ingressou no profissionalismo em 1928, mas que «contava apenas 9 anos quando, com o velho Calafate de Setúbal, começou a cantar o Fado naquela cidade»), Estanislau Cardoso, Guilherme Simões (que também cantou no Barreiro), Ilda Silva (que também interpretou em Alhos Vedros, Almada e Montijo), José Júlio (espectáculo no Luísa Todi e também em Almada), José Ribeiro (com actuações também em Almada, Pinhal Novo e Montijo), Júlio Duarte (irmão de Alfredo Marceneiro, que cantou também em Quinta do Anjo, Moita, Barreiro, Seixal e Montijo), Lucília do Carmo, Manuel Calixto (também cantou em Almada), Manuel Portugal (com exibições também em Almada, Grândola, Barreiro, Montijo e Sesimbra), Maximino Costa, Raquel de Sousa, Renato Varela (que também actuou em Almada) e Ressurreição do Nascimento (que também cantou em Montijo e Vendas de Azeitão).
Ainda relacionados com a região de Setúbal surgem os nomes de Arminda Vidal (com espectáculos no Barreiro e Montijo), Frutuoso França (que cantou em Almada, no Teatro Incrível Almadense, em espectáculo de homenagem à setubalense Carolina Redondo), Jesuína de Melo (com várias intervenções no Montijo, aquando das festas da Senhora da Atalaia), João Alberto (com espectáculos em Sesimbra e Almada), Judite Pinto (que cantou no Barreiro), Leonor Duarte (que cantou na Moita), Maria Albertina (que «entrou no filme ‘Bocage’, cantando e dançando o ‘Bailarico Saloio’»), Ricardo Porfírio (que cantou «nas herdades do Dr. Paula Borba em Alcácer do Sal») e Rosa Costa (que surgiu como «cantadeira profissional em 1927, numa festa de beneficência a favor dos náufragos da Costa da Caparica, no Teatro de S. Luís»).

Pode assim o leitor de Ídolos do Fado ver que a ligação ao fado que hoje existe em Setúbal tem longo historial, quase tão extenso quanto a história do fado em Portugal, algo que inevitavelmente passará pela identidade cultural sadia.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

Para a agenda: Concerto Solidário pela Igreja da Azeda, em Setúbal



Pela construção da Igreja da Azeda vai haver concerto solidário, com entrada livre, em 28 de Janeiro, pelas 21h30, na Igreja de S. Paulo, em Setúbal, na zona de Vanicelos. Participam o Coro Setúbal Voz (dirigido pela maestrina Gisela Sequeira) e o Coro e Orquestra de Cordas do Conservatório Regional de Setúbal, sob a direcção de Raul Avelãs. Um programa de solidariedade, de música clássica e de disponibilidade! Para a agenda!

sábado, 21 de janeiro de 2017

Para a história religiosa de Setúbal: A visita da imagem peregrina à diocese em 2015



A bibliografia sobre a história religiosa em Setúbal foi enriquecida, no final do ano passado, com a obra A Grande Visita da Imagem Peregrina à Diocese de Setúbal, organizada por Sezinando Alberto (Almada: Santuário de Cristo Rei, 2016), contendo textos de Anabela Sousa, Bruno Máximo Leite, D. José Ornelas Carvalho (bispo de Setúbal) e do próprio organizador, e fotografias de Anabela Sousa, Bruno Máximo Leite, Rui Fernandes e Fotos Milai.
Como Sezinando Alberto refere na “Nota Prévia”, esta obra “pretende fazer memória futura da passagem da imagem de Nossa Senhora de Fátima pela nossa Diocese por ocasião da preparação dos 100 anos da sua aparição na Cova da Iria, que, sem dúvida, foi uma grande visita”. Assim, ao longo das quase trezentas páginas, surge o relato, em jeito de escrita de reportagem, incluindo cerca de 450 fotografias, do que foi a manifestação religiosa em torno da imagem peregrina de Fátima na diocese sadina entre 25 de Outubro e 8 de Novembro de 2015, abrangendo registos das vivências nas diversas vigararias (Montijo, Palmela / Sesimbra, Seixal, Almada, Caparica, Barreiro / Moita e Setúbal).
A visita teve marcas festivas (a par da oração e das cerimónias religiosas, houve artistas - Rão Kyao, por exemplo -, poesia, descerramento de lápides evocativas do acontecimento) e foi abrangente no roteiro, tendo passado por uma grande variedade de pontos de reunião, como escolas (privadas e públicas, do ensino obrigatório e do ensino superior), centros de recuperação, lares ou instituições de solidariedade social, tendo igualmente sido vasta na participação.
A obra regista o percurso vigararia a vigararia e paróquia a paróquia, incidindo nas notas de reportagem sobre as cerimónias (sobretudo da recepção e partida da imagem), sobre o tempo (parte significativa da visita foi feita sob chuva) e sobre as reacções dos paroquianos e do clero, muitas vezes não escondendo as dificuldades de organização, como foi o caso de algumas situações em que a movimentação da imagem se revestiu de considerável grau de dificuldade.
Se esta iniciativa teve a participação dos dois bispos eméritos de Setúbal (D. Manuel Martins e D. Gilberto Reis) e do actual prelado (D. José Ornelas Carvalho), ela foi também importante porque a chegada da imagem a Setúbal, vinda da diocese de Portalegre / Castelo Branco, coincidiu justamente com a ordenação episcopal de D. José Ornelas em Setúbal. Em várias intervenções ao longo desse itinerário, o novo bispo referiu a oportunidade que esta visita constituiu para, também ele, começar a conhecer a diocese.
Importante é, de resto, o texto que fecha o livro, assinado por D. José Ornelas, fazendo uma reflexão sobre a importância do “passar de uma imagem” e da sua simbologia e sobre a missão que estava sobre este evento: “Passou nas nossas estradas onde corremos para o trabalho, estudo ou lazer e por onde regressamos cansados, desiludidos ou reconfortados e esperançados. Passou pelas nossas cidades e pelas ruas dos nossos bairros, diante dos supermercados onde fazemos as compras, dos restaurantes onde celebramos festas, dos cafés onde encontramos os amigos, dos centros médicos e instituições onde somos assistidos, das sedes da autoridade local onde se procuram caminhos de convivência e de progresso, dos serviços de ordem e defesa do bem comum, das nossas casas onde encontramos amor e carinho, mas também, tantas vezes, divisão e dramas de incompreensão, incompatibilidade e opressão...” Umas linhas adiante, testemunhará: “Acompanhando diariamente algumas etapas desta peregrinação de Maria pela nossa terra, fui por ela conduzido a olhar para as dificuldades que tantos de nós enfrentam, de pobreza, de exclusões e solidão, de dependências, exclusões e frustração. Mas vi também brilhar em tantos olhares, em tantos comentários e atitudes, a chama da esperança, a criatividade da solidariedade, a decisão do compromisso e do serviço generoso para transformação das nossas cidades e do nosso mundo.”
Particularmente impressionante para o bispo sadino terá sido o momento da visita da imagem peregrina ao Estabelecimento Prisional de Setúbal, instante que recupera para esse texto de conclusão e de esperança: “Certamente que a Virgem peregrina sorriu de modo muito especial, ontem, ao descer de guindaste no pátio da prisão de Setúbal, numa visita particularmente materna àqueles que ali vivem. Ela veio afirmar quanto os preza, para além de todos os percursos sinuosos de qualquer vida humana, de quanto aprecia os esforços dos que colocam a própria competência profissional ou oferecem voluntariamente o seu tempo para alimentar esperança, com dignidade e justiça e colaborar na integração social. Certamente que ela não deixou de olhar também com preocupação para as condições degradadas desta estrutura e de encorajar os projectos e esforços para a sua renovação e dignificação, que ajudem a uma séria recuperação das pessoas.”

O livro contém um dvd com reportagem de cerca de 90 minutos dos vários momentos desta iniciativa ocorrida na diocese de Setúbal, realizada pela agência Ecclesia, terminando com a cerimónia do adeus e a partida da imagem para a próxima diocese, a de Évora, assim ficando para o leitor uma obra de registo de um momento religioso intenso e um contributo assinalável para a história religiosa local.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

Fado com histórias de Setúbal (3): Nomes que são argumentos



A terceira obra fac-similada que integra a colecção de bibliografia sobre o fado, em distribuição com o jornal Público (editada por A Bela e o Monstro), deve-se a Avelino de Sousa (1880-1946) e detém um título acusatório - O Fado e os seus Censores (Lisboa: ed. Autor, 1912). Com efeito, o livro reúne as crónicas que o autor publicou no jornal A Voz do Operário, comentando as opiniões de Samuel Maia (1874-1951), médico que usou o pseudónimo de Dr. Félix, e de Albino Forjaz de Sampaio (1884-1949), sendo dirigido aos dois o subtítulo “Crítica aos detractores da canção nacional”, bem como a designação de “censores” usada no título.
Tendo aqueles autores publicado opinião nos jornais O Século e a A Luta, respectivamente, contrariando a ideia do fado como canção nacional, Avelino de Sousa usa curtas crónicas para lhes responder, mantendo um tom irónico, sarcástico e cáustico na apreciação de qualquer um deles, chegando frequentemente a ridicularizá-los.
O texto de Avelino de Sousa é de contra-argumentação relativamente aos dos dois cronistas e, no seu jogo de argumentos, utiliza figuras ligadas a Setúbal, como sejam Bocage, Olga Morais Sarmento e António Maria Eusébio (o “Calafate”).
Uma das frases de Samuel Maia terá sido no sentido de associar o fado e o vinho, com o objectivo de dar um tom desprestigiante à canção. A resposta de Avelino de Sousa quanto a este paralelismo é contundente: «Mas - diz V. Exª - o Fado é a canção do vinho! Como se, para a gente se embebedar, fosse preciso sobraçar uma guitarra! Admitamos, porém, que é assim. E, nesse caso, queira V. Exª tomar nota desta plêiade de “bêbedos” ilustres, que têm contribuído com o seu altíssimo talento para que o Fado mais e mais se alastre e enraíze na alma popular: Bocage, João de Deus, Bulhão Pato, Guerra Junqueiro, António Nobre, João Penha, Gomes Leal, D. João da Câmara, António Correia de Oliveira, Hilário, Augusto Gil, Fausto Guedes Teixeira, Afonso Lopes Vieira, Júlio Dantas e tantos outros novos e velhos! Que “súcia de alcoólicos”, hein, doutor?»
Avelino de Sousa, ele próprio autor e cantador de fado (vocação que seguiu em simultâneo com a sua função de caixeiro na livraria Guimarães e de tipógrafo), arregimentava assim o grupo dos literatos cujos versos circulavam já pelas partituras do fado, com o poeta de Setúbal à cabeça, para responder de forma a deixar o seu interlocutor sem hipótese, haja em vista que os nomes mencionados constituíam na verdade uma plêiade. E a pergunta final, num misto de exclamação, assente sobre a ironia e a metáfora, não pretendia ser retórica, antes um desafio ou provocação ao criticado.
Quando dirige a resposta a Forjaz de Sampaio, a primeira observação é para sugerir o ridículo, apoiando-se em conversa havida com a setubalense Olga Morais Sarmento (1881-1948): «Eu conheço o sr. Albino Forjaz de Sampaio há longos anos, ainda do tempo em que S. Exª usava uma grande cabeleira, que é, na nossa terra pelo menos, um autêntico sinal de talento e, muitas vezes... de piolhos. Já uma vez a ilustre escritora D. Olga Morais Sarmento da Silveira me perguntou, referindo-se à capilaridade sebácea de muita gente boa, “se seria preciso possuir-se uma grande trunfa abastecida de muita caspa e oleoso cosmético para se provar à humanidade que somos inteligentes”! Não sei se será assim.» Umas linhas depois, vem o ridículo de facto, sendo denunciado que, num soneto que publicou, Forjaz de Sampaio se enganara e errara na construção do poema. Também para argumentar contra este crítico Avelino de Sousa vai buscar Bocage - Sampaio escrevera ser o fado “absolutamente incompatível com as virilidades de uma raça forte” e Sousa responde: «Eis outra bárbara mentira do desconexo artigo de V. Exª! Basta recordar esta quadra “Defender os pátrios lares, / dar a vida pelo Rei, / é dos lusos valerosos / carácter, costume e lei.” que se deve à pena do imortal poeta Manuel Maria Barbosa du Bocage. E não vale a pena transcrever também as glosas do sublime Elmano, porque a quadra chega para desmentir a néscia afirmativa de V. Exª.»  A quadra, no entanto, não era de Bocage mas da Condessa de Oyenhausen (Marquesa de Alorna), conforme correcção que, em crónica publicada quase no final do livro, um leitor faz e que Sousa aceita, explicando a origem do lapso (tinha-a visto associada às glosas numa edição em que não estavam identificados em separado os autores do mote e das glosas) e mantendo a argumentação - «a quadra, embora não seja de Bocage, fica de pé do mesmo modo».
O terceiro nome que funciona como caução para as razões de Avelino de Sousa é o do poeta Calafate, sobre o qual Forjaz de Sampaio tinha ironizado: «Está-se a ver pedir um lugar no panteão para o Calafate.» E comenta Sousa, ao mesmo tempo que enaltece a figura de António Maria Eusébio: «Assim diz, desdenhosamente, o sr. Forjaz. E acrescenta: “Esta apoteose não admira num país de correcionais.” Não está certo. O velho respeitável que se chamou Calafate foi toda a vida um famélico, um operário honesto, um fautor da riqueza pública, um escravo preso à gleba, como eu. Nunca aspirou a ter um panteão que lhe guardasse os ossos, aliás, tão veneráveis como os de qualquer outro mortal que fosse, pelo menos, trabalhador honrado como ele. Sem embargo, se não teve um panteão, gozou a felicidade suprema de ouvir da boca de Guerra Junqueiro palavras de infinita doçura, elogios de requintada sinceridade, à sua obra, à sua inteligência de analfabeto, que, num esforço supremo de cerebrização inculta, soube arrancar da lira d’alma - a mais honesta e rica de todas - maviosíssimos sons a que a prosa vil de V. Exª não chegará nunca! Guerra Junqueiro ouviu o pobre Calafate com aquele recolhimento próprio do seu altíssimo espírito. Mas creio que se conserva surdo ante os guinchos guturais de críticos paranóicos e cego para as cabriolices e cambalhotas obscenas de certos palhaços da literatura indígena! Assim é que está certo.»
O ataque a Forjaz de Sampaio era certeiro e acutilador: se trazia em defesa do cantador de Setúbal a autoridade do poeta freixenista Guerra Junqueiro - que, em 1901, prefaciara um volume de poesias do Calafate, texto a que o leitor pode aceder na obra junqueiriana Prosas Dispersas (Porto: Lello & Irmãos, 1964) -, por outro lado, parodiava com o título de uma das obras do próprio Forjaz de Sampaio, Prosa Vil, volume de crónicas datado de 1911, ano anterior às crónicas de Avelino de Sousa.