quarta-feira, 27 de março de 2024

Motorizações nos barcos sesimbrenses lembradas por João Aldeia



“Para além da materialidade das embarcações, das velas, dos apetrechos de pesca, dos motores, das sondas e radiotelefones, o património cultural marítimo é constituído pelo modo como se utilizavam esses equipamentos: como se velejava, como se remava, como se pescava, e ainda pelos saberes, crenças, rituais, tragédias, humor, etc.” Esta afirmação, justifica-a João Augusto Aldeia com a necessidade da criação de um Museu Imaterial do Mar de Sesimbra, projecto para o qual o seu livro Primeiras motorizações de embarcações de pesca de Sesimbra (1926-1932) (ed. Autor), há dias apresentado, é um digno contributo, resultante de passeio aturado pelos arquivos sobre as embarcações e de testemunhos recolhidos na memória daqueles que, directa ou indirectamente, participaram na faina sesimbrense.

Sesimbra é uma das terras que integram um roteiro camoniano feito a partir d’ Os Lusíadas, obra que a menciona no momento em que, no canto III, Vasco da Gama conta a história de Portugal ao rei melindano, evocando as conquistas de Afonso Henriques e referindo-se à “piscosa Sesimbra”. Essa adjectivação, resultante da abundância de peixe, foi o marco de um percurso que, no século XX, encontrou o revés, levando o pescador local a reinventar a profissão até aos limites do possível, ao mesmo tempo que se gera a ideia de em Sesimbra existir um dos maiores portos de Portugal - criticamente, anota João Aldeia: “pode ser que o seja estatisticamente, mas não é com o peixe das suas águas nem com a qualidade que outrora lhe deu prestígio.”

Mesmo por estas contingências que o passar dos tempos trouxe, vale a pena organizar a memória, falando dos marítimos, dos carpinteiros navais e dos mecânicos que deram identidade ao local através da arte da pesca. Nessa tarefa, valoriza este livro apontamentos sobre essa arte, pugnando pela divulgação da sua história e avançando com possibilidades interpretativas para a construção dessa mesma identidade - curiosa é a aproximação semântica que o autor faz entre a expressão “vela de espicha” e a designação Espichel, que dá nome ao cabo, mostrando mesmo a sobreposição da vela com a carta orográfica local.

Assunto como a motorização das embarcações sesimbrenses, iniciada em 1926, leva-nos a um olhar sobre as adaptações feitas - passar dos remos para o motor, publicitar os equipamentos, alterar aspectos das embarcações (no cavername, por exemplo), novas técnicas a dominar, diferentes graus de especialização nas companhas, formas de resolver problemas resultantes da transformação (como o da interferência dos motores sobre a agulha das bússolas, por exemplo), novos desafios de segurança (não escapa à memória o incêndio a bordo da barca “Gemeniana”, em 1928, que usava um motor de automóvel adaptado, e consequente naufrágio da mesma), formas de abastecimento de combustível, entre muitas outras.

João Aldeia põe o leitor em contacto com mais de duas dezenas de protagonistas da história do tempo abrangido, actores neste processo de motorização, nascidos entre 1869 e 1905, extremos ocupados por dois membros da mesma família, pai e filho: Zózimo das Chagas e Zeferino das Chagas, respectivamente. Quanto às embarcações, na ordem da meia centena, são apresentadas no seu breve historial, com nomes ricos do ponto de vista simbólico - com predominância dos nomes femininos -, havendo uma delas, “Luz do Calvário”, que teve a sua companha imortalizada na literatura pela pena de Raul Brandão, em viagem de Fevereiro de 1923, relatada na obra Os Pescadores (publicada nesse mesmo ano e com nova edição no ano seguinte).

O livro de João Aldeia, que se percebe ser resultado de um empenho pessoal e emotivo (dedicado ao pai, que foi serralheiro mecânico e trabalhou para a frota pesqueira local), conta uma história que é longa e cheia de coisas a descobrir, numa linguagem acessível, que permite o (re)encontro com rostos que fizeram Sesimbra e chama a atenção para um sector importante nas dinâmicas locais que tem sido objecto de pouco estudo, não só em Sesimbra mas também na região. A motorização dos barcos é o pretexto deste estudo, mas é também uma chamada de atenção para a memória.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1268, 2024-03-27, pg. 2.

 

quinta-feira, 21 de março de 2024

Patrícia Reis e uma história em Sesimbra

 


“Agora já não posso perguntar” é uma frase que comporta diversos olhares: a dimensão do tempo entre um presente e o passado; uma certa nostalgia ou lamento pelo confronto com a impossibilidade permanente; a necessidade de se perguntar perante os mistérios que a vida e o mundo apresentam. Todas estas linhas se cruzam na narrativa a que a frase dá o título, alimentando o livro Sesimbra, de Patrícia Reis, o primeiro da colecção “Portugal” (Centro Atlântico, 2024), história povoada também com fotografias devidas a Libório Manuel Silva, numa combinação que respeita o propósito da série: “o mesmo horizonte para a ficção e a realidade, em que criatividade literária e riqueza fotográfica mergulham na nossa geografia.”

A história vive com as memórias de um narrador de 59 anos, que aproveita o que aprendeu para dar imagem da família, dos afectos, das crenças, das convicções, da terra, das vivências desde a infância, num percurso em que não faltam os familiares pescadores, a paixão futebolística pelo Clube Desportivo de Sesimbra (ainda que designado pelo seu anterior nome, Ases Futebol Clube, devido a uma ligação familiar), o caminhar pela vila, uma certa identidade da vida local e alguns momentos de humor (como o da justificação apresentada para a opção quanto à cor da viatura 4L dada por Nicolau, o pai do narrador).

As lembranças da personagem principal recuam aos seus 9 anos, tempo de 1974, marco cronológico importante para quem foi assistir à revolução em Lisboa, levado pelo pai e pelo tio, ambos numa euforia de vitória que ajuda à decisão de partirem de madrugada para serem testemunhas do momento histórico - a criança pouco entendia, mas ficou-lhe gravada a frase do pai para o tio, de incentivo e de pressa: “Foi hoje, está a acontecer agora mesmo, trouxe o carro, vamos.” Perplexo fica o jovem: “Naquele tempo não se ia a Lisboa por uma razão qualquer, só por algo importante, uma consulta médica, alguém de família que chegava de comboio, raramente de avião, só tínhamos uns primos que podiam vir de avião, viviam nos arredores de Paris, mas já não os víamos há uns anos.” O mistério para a viagem desvanecia-se lentamente, ainda que o pai explicasse: “Vamos a Lisboa ver a revolução. (...) Vamos deitar estes gajos abaixo de uma vez por todas.”

A revelação da importância deste momento vai, depois, sendo dada pela mãe, Delmina, mulher reservada, mas arguta e sensível para transmitir ensinamentos e valores - quando, em Maio de 1974, a televisão informava sobre o fim do processo das três Marias, a mãe comoveu-se e explicou ao jovem: “Quando uma mulher é julgada por algo que não fez é como se fôssemos todas julgadas, todas as mulheres.” Têm as mulheres papel importante nesta história - além da mãe, também a irmã mais nova do narrador, Rosa, construtora da sua autonomia, desvinculada da terra mas não da família, que optou pela vida na capital; e ainda Susana, professora, que, num percurso inverso, vem de Lisboa para Sesimbra, para construir uma história de paixão e para sentir a família, “o melhor porto de abrigo de todos”, como dizia Nicolau.

“Eu fui ver a revolução, é verdade, mas mantive o alívio de ter regressado a Sesimbra. E a vida correu como correm todas as vidas. Com as dificuldades de sempre, as guerras da malta da pesca, a Câmara Municipal que não sei o quê, as festas, o dia do santo no 4 de Maio... a lenda que me perseguiu na escola.” Personagem fiel à sua terra, o narrador faz passar algumas observações que dão relevo à identidade: a confiança entre as pessoas (“hoje vivo numa aldeia do concelho, com o mar à minha beira, vou comprar legumes ao meu vizinho, conheço as pessoas pelo nome. Se sair e não tiver dinheiro, por ter deixado a carteira esquecida num outro casaco, não é uma questão, vá-se lá embora, paga depois, num outro dia, quando der jeito.”); a proximidade e o sentido familiar (“Sesimbra também é isso, famílias que se prolongam, que se mantêm agarradas como correntes de ferro de uma âncora”); a epopeia da vida (“as histórias do mar e das gentes de Sesimbra passam de geração em geração”). Pelas memórias, passa também o sentido da aprendizagem dos afectos - “o meu pai olhava para a minha mãe com a devoção dos amorosos e isso deixou uma marca indelével em nós” -, valores que se reproduziram na personagem que conta.

Está o leitor perante uma história bonita, que se passeia pelos contornos entre a vila e o Espichel, alimentada de olhares e de dizeres, de proximidades, de espaços e de figuras com que nos podemos cruzar, valorizando as histórias locais e um olhar poético sobre a vida.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: nº 1263, 2024-03-20, pg. 10.

 

quinta-feira, 14 de março de 2024

Os versos de Miguel Caleiro (4)

 


A motivação principal das colectâneas de rimas de Miguel Caleiro eram as Festas da Arrábida, também ocasião para que fosse editado um opúsculo com os seus versos, cuja temática principal era a ida ao Convento da Arrábida para essa celebração, havendo também cantigas, que diferiam de ano para ano, motivadas por razões autobiográficas ou por questões sociais - por exemplo, na edição de 1916 dos Versos em honra das antigas Festas d’ Arrábida, Miguel Caleiro escolheu para a linha autobiográfica duas cantigas dedicadas aos pais e duas cantigas que tomam o poetar como tema, particularmente uma em que esboça o seu auto-retrato; já a imagem da época, questão importante pelas implicações sociais, políticas e históricas, foi ocupada com duas cantigas sob o título “Despedida para a Guerra”, relatando o momento da separação familiar dos que eram recrutados para ir “auxiliar o francês”.Retomando a edição do início da década de 1920 que nos tem servido de base, vale a pena olhar para umas loas à Senhora da Arrábida, vinte e oito quadras organizadas em quatro partes - “Saída de Azeitão”, “Chegada ao Convento”, “A despedida da Serra” e “Chegada a Azeitão”. Nelas, o leitor acompanha, no momento da saída, a ansiedade dos romeiros pela partida para a festa, o trajecto da berlinda que acompanha a Senhora, a despedida que o povo faz da imagem, o sinal de partida dado pelo sino da igreja; já no Convento, assiste-se aos momentos de devoção perante a “Rainha do Céu”, à contemplação da grandiosidade do cenário natural, à reza a pedir a bênção e protecção para os romeiros; o momento da despedida é feito sob o signo da oração, pesando também a emoção “de tão triste apartamento”, pois era chegada a hora de regressar à vila; no último quadro, da chegada a Azeitão, a comoção envolve os peregrinos, no meio dos repiques sineiros, com aqueles que ficaram a manifestarem o contentamento, pois era “chegada a santa Imagem / cheia de graça e louvor”, com um momento intenso de oração no final.

A ideia das loas para este momento festivo manteve-se pelos tempos. E, se algumas destas quadras se repetiram nas edições de vários anos, em 1946 (tinha Miguel Caleiro falecido há 11 anos), uma inovação surgia ao serem publicadas as Loas a Nossa Senhora da Arrábida, texto conjunto de Miguel Caleiro e de Sebastião da Gama (que tinha 22 anos à época e apenas um livro publicado). Das 28 quadras que constituem esta composição, organizadas nos mesmos quatro quadros, há oito que constam nos Versos de Caleiro do início da década de 1920. Não há a certeza de que todas as outras sejam de Sebastião da Gama, ainda que, em algumas, se consiga perceber a sua marca nas imagens que recorrem à Natureza, não se desconhecendo também o jeito que o jovem poeta tinha para a construção de quadras de gosto popular.

Esta junção dos dois poetas azeitonenses na publicação das Loas (que foram republicadas em 1966 e em 1996) alimenta também a admiração que Sebastião da Gama tinha por Miguel Caleiro - em Março de 1942, tinha Caleiro falecido há sete anos e estava Sebastião prestes a fazer 18 anos, o novel poeta azeitonense compôs um soneto em honra do antecessor, com a nota “para a sua campa”, assim retratando a memória: “Aqui repousam cinzas, pó e nada: / despojo humilde de quem foi alguém / e agora, com certeza, no Além, / maneja a Lira, a Lira bem-fadada. // Não vistes ‘inda a terra descuidada / que a torga, o alecrim, o lírio vêm, / a violeta, o malmequer também / tornar a mais formosa e delicada? // Teu estro foi, ó vate, o campo inculto / aonde foi nascer e tomou vulto / jardim tão perfumado, tão mimoso! // Teu corpo aqui, Miguel! Mas lá nos céus / eu bem te vejo a recitar a Deus / teus versos - flor’s de tom o mais vistoso!”

Que bom gesto de memória seria o de se conseguir uma compilação dos versos que Miguel Caleiro compôs, tendo como abertura este soneto de Sebastião da Gama, que constrói a feliz ideia de transformar o céu num espaço em que os poetas recitam versos para Deus!...

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1259, 2024-03-13, pg. 9.


quinta-feira, 7 de março de 2024

Os Versos de Miguel Caleiro (3)

 


Nos Versos de Miguel Caleiro, aparecidos cerca de 1920, passa também o sentimento da amizade, vivido numa festa feita em honra de Armando Barata, um seu amigo, sendo o poeta impressionado pela beleza do evento, tempo em que “nos passa a dor / entre as almas donairosas / que, fiéis e piedosas, / escutam a poesia” que lhes é oferecida pelo cantador. Os poemas são equiparados a “ramalhete de apreço”, constituído por dálias, verbenas e açucenas, imagem que serve também para elogiar a assistência - “são as flores que vejo / doçuras que amam poetas”. A cantiga (com uma quadra como mote e quatro décimas) conclui com a demonstração da alegria festiva e o agradecimento do poeta: “Ao ver tanta animação / nesta festa de amizade, / toda a alegria me invade / de raríssima confusão. / Perante a reunião / que escuta minhas glosas, / com palavras especiosas / são os mais gratos deveres, / elevando os vossos seres / como alfim mágicas rosas.”

Outra cantiga com o mesmo formato da anterior recorda uma assustadora tarde de inverno, em que é registado o ambiente sentido, oscilando entre planos gerais e planos de pormenor - a aflição dos camponeses que não podiam atravessar a ribeira para acudir à família, o tom assustador das trovoadas, os rebanhos assustados em fuga, as árvores partidas e arrancadas pelo vento, os telhados destruídos, o relampejar feroz, as águas a descerem pela montanha, a ponte e a azenha destruídas, a noite avassaladora, a morte do moleiro e do seu filho. A quadra que dá o mote anuncia bem a calamidade que se descreve: “Era uma noite de inverno; o céu parecia um inferno. / Estavam os astros em guerra. / A ribeira mal sustinha a grande cheia que vinha / pelas vertentes da serra”.

Duas cantigas assumem um pendor marcadamente autobiográfico, revelando alguns traços sobre o poeta destes Versos. A primeira, demonstrando a sua origem rural e modesta, o estatuto de poeta popular e de cantador que para si reclama e o reconhecimento do seu nível cultural, sujeita-se ao mote “Miguel Fernandes Caleiro, / um poeta camponês, / não pode cantar o fado / em correcto português”. A cantiga retrata o percurso do autor: nascido “numa aldeia de Azeitão”, em tempo de dificuldades sentidas por uma “humilde geração”, numa família sem posses financeiras para dar melhor formação ao filho. Na segunda décima, já o poeta valoriza o seu percurso, enaltecendo o trabalho, a honra e o autodidactismo - “Eu fui como uma pobre flor / pelo vento açoitada / e, herdeiro da enxada, / aprendi a cavador. / Nasci para trabalhador / no meio da honradez. / Em mim, não há altivez, / eu só canto irmãmente, / mas têm na vossa frente / um poeta camponês.” Prossegue a cantiga, manifestando a alegria por aquilo que faz, para terminar com uma evocação da figura da mãe e a afirmação do que entendia ser o poeta popular: “Minha mãe santo afecto / chorou ao ver-me crescer, / sem apenas aprender / as letras do alfabeto. / Assim, sou analfabeto, / mas não semeio a rudez. / E vós, povo que me vês, / queiram-me aqui desculpar, / porque eu não sei cantar / em correcto português.”

A segunda cantiga de marca autobiográfica começa por glorificar a poesia, associando-a à capacidade emotiva: “Os versos que ides ouvir / nesta singela canção / são flores que nascem d’alma, / que brotam do coração.” Assemelhando os poemas que compõe a um “raminho de flores”, confessa o tom pessoal ao considerá-los “rimas do meu sentir”, garantia que vai dando ao longo do poema, terminando com a assinatura que reafirma o seu estatuto e a sua simplicidade: “São canções de um camponês / que não sabe ler nem escrever, / por isso não podem ter / grande beleza talvez. / Foi o Caleiro que as fez / sem a metrificação. / P’ra lhe oferecer elas são / como desfolhadas rosas, / as minhas pobres glosas / que brotam do coração.”

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1254, 2024-03-06, pg. 10