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quarta-feira, 16 de junho de 2021

António Torrado, em histórias cúmplices


 

“Era uma vez...” um comboio, um risco, uma parede, um cacto, uma sílaba, um passaporte, um peregrino, um móvel, um sonho, um fio de luz, um repórter, um pinheiro. E assim podíamos ir juntando elementos, cada um deles dando origem a uma diferente narrativa, até perfazermos as sessenta histórias que compõem o livro Almanaque lacónico (Edições O Jornal), de António Torrado (1939-2021), ilustrado por Espiga Pinto, publicado em 1991.

O título logo nos conduz para dois vectores importantes: por um lado, a questão dos princípios essenciais; por outro, a concisão. De facto, António Torrado, que conhecia bem a obra queirosiana (para jovens e para o teatro adaptou alguns dos seus títulos), bem concordaria com o escrito de Eça datado de 1896: “O Almanaque contém essas verdades iniciais que a Humanidade necessita saber, e constantemente rememorar, para que a sua existência, entre uma Natureza que lhe não é benévola, se mantenha, se prossiga toleravelmente.” A esta característica, Torrado associou a brevidade na extensão das histórias, despertando a curiosidade do leitor pelo desenvolvimento de uma ideia que acaba por ficar mais pela sugestão, pela economia discursiva, para que o leitor navegue no que não é dito, assim reforçando com ele uma certa cumplicidade.

As histórias não têm título e todas começam por esse perscrutar de mistério dado pelo indicador temporal “era uma vez”, sendo depois apresentadas personagens - elementos do mundo das coisas (a maioria) ou representações humanas, sendo que, nas primeiras, raramente a identificação vai além do nome (frasco, duna, baluarte, corda, romance), enquanto nas segundas há necessidade de acrescentar modificador identitário (“homem que estava a urinar”, “homem que valia pouco”, “homem que ouvia foguetes”, “mulher que teve cinco filhos”, “criança particularmente dotada”).

Tão curtas histórias favorecem a prática aforística, preenchendo o espaço das explicações e demonstrações, desafiando o leitor para o conteúdo das tais “verdades iniciais” a que se referia Eça - “um pequeno risco pode transformar-se num grande risco, se não for apagado a tempo”, “aqueles que hoje cercam podem ser amanhã os cercados”, “as soluções de recurso são sempre ilusórias”, “as peças soltas da nossa vida nunca nos abandonam”, “não ser tomado a sério é uma das rubricas terminais na escala dos suplícios”.

Por estas histórias passam as referências que vão alimentando a humana forma de ser - o sonho, a ambição, a vaidade, o ilusório, a dúvida, o desgaste, o mistério, o amor, os dogmas, a fragilidade. Os enredos tecem-se de uma ironia requintada, muitas vezes formatados pelas histórias tradicionais e dominados pelo insólito das situações. São marcas destas que não deixam o leitor indiferente perante histórias como aquelas em que um escândalo é protagonista (levando a um suicídio a partir do 25º andar), em que Deus e um homem embatem num cruzamento (por desrespeito pela prioridade e numa explicação do destino), em que um robot trocou as asas por uma hélice (tendo um desfecho próximo do que sucedeu a Ícaro) ou em que uma menina perguntava aos burros que via se não seriam príncipes encantados (acabando por se inverter a sorte da pequena quanto ao encontro com um milagre).

Assim, Almanaque lacónico é constituído por histórias divertidas, curtas, intensas, na sua capacidade de desconstruírem ideias feitas, contribuindo para a descoberta de verdades que fazem a Humanidade.

OBS.: Há 20 anos, em Junho de 2001, integrando a Associação de Pais da Escola das Amoreiras, convidei António Torrado para vir à Escola. Foi uma sessão memorável de cumplicidade que criou com os alunos. Homenageá-lo é lembrá-lo e também continuar a ler as suas obras.

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 643, 2021-06-16, p. 9


quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

As histórias de Caidé, o cão que António Torrado contou

Chama-se Caidé e relata as suas memórias. É o herói de Caidé – Aventuras de um cão de sala contadas pelo próprio, obra de António Torrado que teve segunda edição em 1998 (Porto: Livraria Civilização Editora), quando passavam 15 anos sobre a sua primeira apresentação, com ilustrações de Manuel Mouta Faria.
A história, contada na primeira pessoa, leva o leitor a assistir às aventuras que Caidé lembra com prazer – “o mistério da mala desaparecida”, “o naufrágio do veleiro”, “à beira da glória”, “rei dos animais” e “cão prodigioso e o menino prodígio”, todas desenvolvidas em torno da personagem que as recorda, ora com humor, ora jogando com palavras, ora mostrando o mundo segundo um ponto de vista distante do dos humanos. “O meu livro é um registo de confidências (aliás, cão fidências). Tenho de ser sincero até ao fim, nem que pelo meio me custe um bocado.” Tal é a intenção inicial do narrador, mantendo-se fiel a uma pretensa escrita memorialística…
É um cão que vive com os seus donos. Domesticado. Que sabe viver na cidade, mas, no campo, a correr à descoberta da toca de um coelho, fica a olhar o perseguido, deixando-o ir embora por ter pena da história que lhe é contada… Conhece os jardins da cidade, participa em concursos de canídeos, põe-se ao serviço das crianças enquanto resgata brinquedos e posa para um retrato. Percebe os homens, mas age com as regras e as medidas do mundo dos cães – “A quinta do Doutor Aldo era muito maior do que o jardim público, defronte da nossa casa. Para aí umas quinze mijas mais, calculo eu. Para quem não souber, esclareço que mija é uma medida de comprimento de exclusivo uso canino. Os homens usam metros, léguas, milhas. Nós, mijas. Compreende-se. Quando virem um canídeo em posição selecta, a alçar a perna para uma árvore, não julguem que ele está só a aliviar-se das águas. Está também em cálculos de medição. Não o interrompam. Não o distraiam.”
As histórias correm, contadas com prazer. “Pelo-me por aventuras”, diz. Pelas suas aventuras, coisas insignificantes aos olhos dos outros, mas coisas importantes aos olhos de um cão, deste cão, de Caidé. Do lado de cá, o ouvinte ou o leitor estão sempre presentes, numa interpelação contínua – “Espero, no fim, os vossos juízos”. E o leitor sente-se compelido a seguir atento para poder ajuizar. Pelo menos, foi esse o desafio. Mas, no final, a conclusão é apresentada pelo protagonista – “Se, depois destas narrativas, alguma conclusão querem tirar, fiquem-se com esta: nós, os cães, somos todos uns heróis ao lado dos homens, de quem aprendemos a língua, as vontades e até os caprichos. Já era altura de os homens começarem a perceber-nos mais um poucochinho. O que é que acham?” E Caidé acaba o seu discurso.
Afinal, o pequeno cocker, que, no início, “dava tudo para ser um desses cães felizardos que passam o tempo a correr e a ladrar, de uma ponta à outra do écran da televisão (…), sempre a saltarem às canelas dos bandidos, a combaterem com ursos, a escalarem montanhas, a avisarem de fogos, a salvarem gente”, tem uma história recheada de acção, assente nas aventuras do quotidiano, grandes para um cão de companhia.