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quarta-feira, 3 de novembro de 2021

Histórias dos avós na memória



Em 7 de Dezembro de 1998, perante a Academia Sueca, José Saramago iniciava o seu discurso por uma evocação: “O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever. Às quatro da madrugada, quando a promessa de um novo dia ainda vinha em terras de França, levantava-se da enxerga e saía para o campo, levando ao pasto a meia dúzia de porcas de cuja fertilidade se alimentavam ele e a mulher. Viviam desta escassez os meus avós maternos. (...) Chamavam-se Jerónimo Melrinho e Josefa Caixinha esses avós, e eram analfabetos um e outro.”

A intenção de Saramago era falar sobre as personagens da sua ficção, inspiradas em pessoas que conheceu e que trabalhou literariamente. Nessa intervenção, que pode ser lida em Último caderno de Lanzarote (2018), Jerónimo e Josefa são apresentados: “bom carácter”, muito pragmáticos, sábios e... sonhadores - a avó, já viúva, confessou ao neto: “O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer”; o avô, pressentindo a chegada da morte, “foi despedir-se das árvores do seu quintal, uma por uma, abraçando-se a elas e chorando porque sabia que não as tornaria a ver.” Pelos tempos, ficou ainda a sabedoria do avô, superior contador de histórias, alimento da imaginação do neto: “Naquela idade minha e naquele tempo de nós todos, nem será preciso dizer que eu imaginava que o meu avô Jerónimo era senhor de toda a ciência do mundo.”

Igual fascínio pelos avós traz José Tolentino Mendonça no seu mais recente livro de poesia, Introdução à pintura rupestre (2021), peregrinação à infância por onde passam os avós e uma poderosa lembrança da avó num texto final, retomado de outro publicado em 2014: “A minha avó analfabeta (...) foi o meu bosque, a minha viagem, o meu livro. E também um primordial amor.” Já noutra obra, O que é amar um país - O poder da esperança (2020), o poeta madeirense reconhecia: “Quando tomei posse como arquivista e bibliotecário da Santa Sé, uma das referências que quis evocar foi a da minha avó materna, que era uma mulher analfabeta, mas que foi para mim a primeira biblioteca. Em criança, eu pensava que as histórias que contava, ou as cantilenas com que entretinha os netos, eram coisas de circunstância, inventadas por ela. Depois descobri que faziam parte do romanceiro oral da tradição portuguesa. E que afinal aquela avó analfabeta estava, sem que nós o soubéssemos, e provavelmente sem que ela própria o soubesse, a mediar o nosso primeiro encontro com os tesouros da cultura.”

As imagens que dos avós se conservam são habitualmente felizes e nem sempre fáceis de fazer passar. Rita Ferro sentiu-o quando pensou escrever a biografia do avô, António Ferro, figura pública. Depois de várias tentativas e de confrontos com opiniões sobre o seu avô, decidiu adiar o projecto, como refere no diário Veneza pode esperar (2014): “Penoso, pois, um trabalho sobre o meu avô de uma perspectiva consanguínea, particular e desalinhada. (...) Tenho uma ideia íntima de António Ferro, precisa como um retrato e pessoal como uma moldura. É essa e não outra que um dia gostaria de escrever.”

A imagem dos avós é algo de grandioso, alimentada graças às histórias transmitidas, ao saber, ao carácter e a uma visão positiva da vida.  Daí que a personagem de António Canteiro, no romance Vamos então falar de árvores (2020), diga: “Nós, os netos, somos feitos a partir da massa de tender dos avós, a partir das histórias que nos contam e ficam na memória para sempre.”

* J.R.R. O Setubalense: nº 726, 2021-11-03, p. 9.


sábado, 4 de setembro de 2010

Seis revisitações da escola (e outras tantas dicas)

A revista “Única”, que integra o Expresso, teve como tema da edição de hoje “Voltar”, entrando também na área da educação, em que seis personalidades portuguesas foram convidadas a um regresso à escola onde estudaram para falarem desse tempo, o que as levou a, inevitavelmente, considerações sobre o presente. Aqui deixo alguns excertos, que tocam em algumas das questões que estão (ou deviam estar) em discussão no presente.
Rita Ferro, escritora, estudante no Colégio das Escravas do Sagrado Coração de Jesus: “Considero os programas actuais autistas relativamente ao perfil do aluno do terceiro milénio, mais sensorial e imediatista, mais áudio-visual do que leitor, menos estimulado em casa. Exauridos e falidos, os pais só querem que os filhos passem de ano. (…) Tolerância zero à indisciplina, com penalizações inflexíveis a incidir sobre as notas, as propinas, a própria frequência. Tolerância zero à interferência histérica e abusiva dos pais na sobreprotecção dos meninos. E maior crivo na contratação dos professores. Um povo deseducado e culturalmente desfavorecido sem segurança para interferir na política, é uma crucifixão cartológica.”
Medina Carreira, advogado e ex-ministro, estudante nos Pupilos do Exército: “Não há melhor avaliação do que quando um estudante está pressionado como se estivesse na vida. Negar estas exigências da vida é de gente tola.”
Nuno Crato, professor universitário, estudante no Liceu Pedro Nunes: “Havia os maus e os bons [professores]. Mas em todos transparecia respeito pelo conhecimento e pela cultura. Talvez o que mais me tenha marcado foi esse espírito geral de gosto pelo conhecimento e gosto pela racionalidade. (…) É necessário instituir seriedade na avaliação dos estudantes (…) e é preciso maior seriedade na formação científica dos futuros professores.”
António Câmara, professor universitário, estudante no Liceu Pedro Nunes: “Tanto no secundário como na universidade, ainda não se percebeu a importância da criatividade. O ensino em Portugal é convergente e raramente divergente. (…) A internet mudou e baralhou tudo. E começa a ter consequências no ensino. A linguagem vídeo, por exemplo, é absolutamente crucial e ainda não chegou devidamente ao sistema de ensino. Os professores precisam de adaptar-se. Tem de haver disciplinas e cadeiras muito mais abertas. A nossa taxa de insucesso escolar é em primeiro lugar o insucesso do sistema de ensino.”
Eduardo Marçal Grilo, administrador e ex-ministro, estudante no Liceu Nun’Álvares: “As escolas precisam de lideranças fortes. Não impondo modelos, mas no sentido organizativo e de objectivos de cada escola. Faz sentido que haja um condutor da escola. (…) Importante é saber quem são os alunos, de cada escola, de cada região. Só desta forma se combate o insucesso escolar: aluno a aluno. (…) Têm de ser definidas metas, patamares de conhecimento. Esses patamares têm de integrar a escola e a família, que hoje em dia se demite da educação dos filhos.”
Irene Fulsner Pimentel, historiadora, estudante no Charles LePierre: “O problema não está na reprovação, está no insucesso escolar. E a discussão deve centrar-se aqui. (…) Eu sou de esquerda, toda a gente sabe. Mas a esquerda teve algumas culpas no nosso sistema educativo. Houve uma altura em que se passou a achar que a educação devia ser uma coisa lúdica. Sou muito a favor da avaliação. Dos professores e dos alunos. A escolha criteriosa dos professores seria um bom começo.”