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quarta-feira, 6 de abril de 2022

Bocage pelo olhar de Calafate (4)



O terceiro folheto de temática bocagiana composto por António Maria Eusébio, o “Calafate”, intitula-se Cantigas para Guitarra dedicadas ao aniversário do grande poeta Elmano, o Bocage, publicação de quatro páginas, surgida em 1911, ligada ao primeiro aniversário bocagiano celebrado no regime republicano.

Em 9 de Agosto desse ano, a Câmara de Setúbal decidira instituir o dia 15 de Setembro, data de aniversário de Bocage, como feriado municipal, tendo a primeira celebração ocorrido durante três dias, entre 15 e 17 de Setembro.

As décimas do “Calafate” relatam o entusiasmo vivido na cidade - “Muita gente madrugou / P’ra ver nascer esse dia, / Até alguém cuidaria / Que não vinha, mas chegou. / N’Avenida se juntou / Nobre, rico e pobre artista, / Todos empregavam a vista / Para as bandas do Oriente, / P’ra ver, em aurora luzente, / O dia quinze setembrista.” A adesão popular, a quantidade de visitantes e o ambiente festivo merecem pinceladas fortes do poeta repórter - “Todo o Povo está contente, / Tem muita razão p’ra estar, / Muitos vivas há de dar / Aos autores desta festa, / Porque outra igual a esta / Só Setembro a pode dar.”

A apologia de Bocage, a sua fama, a necessidade de testemunhar e de dar continuidade à memória são acentuadas neste folheto, constando também algum espírito crítico e adesão à decisão republicana de celebração do nascimento de Bocage, pois os grandes eventos bocagianos anteriores tinham ocorrido sempre na data do falecimento - “Foi festa de luzimento / Que se fez pelo centenário, / Só o seu aniversário / Estava no esquecimento. / No dia do seu nascimento / ‘Stava a praça despovoada, / Estando a memória guardada / Por galegos andarilhos; / Setúbal, p’rós seus filhos, / Tinha uma dívida atrasada.” No meio de tal entusiasmo, António Maria Eusébio tem ainda uma palavra para um dos setubalenses que mais pugnaram pela memória bocagiana, Manuel Maria Portela, falecido em 1906 - “Que glória não teria / Portela, se fosse vivo, / Ele que era tão activo / Nos dotes da poesia.”

Se as outras celebrações bocagianas (inauguração da estátua em 1871 e festa do centenário do falecimento em 1905) tinham sido pontuais, ao ter sido feita a opção pela festa do aniversário estava garantida a continuidade da memória bocagiana e a sua celebração anual, aspectos que o “Calafate” antecipa - “Esta festa tão vistosa / Far-se-á para o futuro, / Para não ficar no escuro / Uma data gloriosa. / Bocage é que já não goza / Do seu alto monumento, / Nem vê o acompanhamento, / Melhor que o seu centenário. / Pobre, rico e operário / Festejam o seu nascimento.”

O folheto conclui com uma ideia que o “Calafate” já expusera nos versos de 1905 - a memória bocagiana ficará incompleta sem que se saiba dos restos mortais do poeta: “Tem aqui sua memória, / Seu corpo onde estará?”

Numa associação feliz, o nome de Bocage seria ainda usado em décimas de cunho publicitário que o “Calafate” redigiu para alguns dos seus patrocinadores, como o Mendes Chapeleiro - “Bocage é bom que apareça / (...) / No dia do seu aniversário, / com algum chapéu na cabeça. / (...) / Vão até ao chapeleiro Duarte, / Que tem lá para escolher.”

Não conhecendo a obra bocagiana pela leitura, António Maria Eusébio conseguiu ser um divulgador da memória bocagiana pela história que lhe foi contada, pelo respeito pela memória e pelo empenho nas coisas e nos acontecimentos da terra que o viu nascer.

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 822, 2022-04-06, p. 8.


quinta-feira, 31 de março de 2022

Bocage pelo olhar de Calafate (3)



O centenário bocagiano de 1905 foi intensamente vivido em Setúbal, com o jornal O Elmano a envolver a população. Houve hino a propósito; conferenciou-se, recebendo Setúbal palestrantes como Manuel de Arriaga (1840-1917) ou Teófilo Braga (1843-1924); foi cunhada moeda de prata; o artista João Vaz esculpiu a lira que passou a adornar o monumento a Bocage; o cortejo de 21 de Dezembro foi apoteótico, com carros alegóricos, iluminações e filarmónicas; os participantes setubalenses nesse dia de festa rondaram os quinze mil, além de seis mil “forasteiros”, vindos sobretudo da capital.
António Maria Eusébio, no folheto Cantigas para Guitarra, de quatro páginas, publicado ainda em 1905 ou em 1906, reportou o evento em quatro poemas, como anuncia logo na primeira quadra, mote para o primeiro conjunto de décimas - “Parabéns irmão Bocage / Para ti nada faltou / Do teu primeiro centenário / Segunda memória ficou.” -, evidenciando o sucesso das realizações e a comparação, na grandiosidade simbólica, com o que acontecera 34 anos antes, na inauguração do monumento a Bocage. A impressão que ficou no “Calafate” foi tão intensa que a primeira décima se inicia pela hiperbolização - “Não é no século actual / Nem outro que há de vir / Que algum povo há de assistir / A um centenário igual.” No seguimento da narração, depois de considerar que “foi festejo extraordinário” (com “quatro arraiais”, “três sociedades”, “duas bandas regimentais”, “quatro oradores”), aconselha o poeta: “Se no teu itinerário, / Encontrares Camões, / Conta-lhe as manifestações / Do teu primeiro centenário.”

O segundo poema toma como assunto a limpeza que foi feita à estátua por um “peneireiro” habilidoso, fala de alguma desolação pelo final da festa (“Agora tudo tornou / Ao seu primeiro estado / Está o festejo acabado / Sem haver perdas nem danos / Para daqui a cem anos / Ficou tudo preparado.”) e denuncia o facto de não ter sido permitido ao “velho cantador” aproximar-se do centro do evento - “Também quis acompanhar / Esse teu rico festejo, / Mataram-me o meu desejo, / Não me deixaram passar. / Antes eu queria levar / Um bofetão no meu rosto, / Mas sofrendo esse desgosto / tornei p’ra trás, vim-me embora.”

A adesão de António Maria Eusébio a Bocage decorria das informações que lhe chegaram através de uma conhecida figura setubalense, que teve o condão de divulgar a história, as ideias e a importância do poeta, como reconhece: “Quando eu ignorava / Quem Bocage tinha sido, / Tive um velho conhecido / Que dele muito falava. / Valia ninguém lha dava, / Seu saber estava oculto, / Depois que houve o tumulto / Da sua inauguração, / Muitos dizem, e com razão, / Bocage foi grande vulto.” Consegue-se inferir a referência a Manuel Maria Portela (1833-1906), um dos maiores promotores da figura de Bocage em Setúbal.

No último poema do folheto, o tom é algo mais brejeiro. Referindo a conservação da escultura bocagiana, anota: “Tu estavas tão mascarrado / Dos pés até ao pescoço, / Agora és um rapaz moço, / Barba feita e cu lavado.” E, quanto à lira deposta na base do monumento, ri o “Cantador” - “Tens uma lira afinada / Que custou tanto dinheiro, / Sendo tu tão bom gaiteiro / Já não dás uma gaitada.” A finalizar, o “Calafate” exagera, dizendo ao poeta maior: “Ainda hás de ser aclamado / Por D. Bocage primeiro” e “Também hás de ser c’roado.”

À sua maneira, António Maria Eusébio contribuía para a promoção de Bocage, prolongando o inebriamento da festa que honrara o poeta...

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 817, 2022-03-30, pg. 5.


quinta-feira, 24 de março de 2022

Bocage pelo olhar de Calafate (2)


Reconhecendo a distância cultural e social entre si e Bocage, o “Calafate” dialoga com a memória de Elmano Sadino, tendo-lhe dedicado três dos seus folhetos e algumas décimas avulsas.

O primeiro, Cantigas dedicadas ao Centenário do grande poeta Manuel Maria Barbosa du Bocage, de 1905, antecedeu a celebração do centenário do falecimento do poeta, ocorrido em 21 de Dezembro. Na primeira quadra, é assinalada a coincidência biográfica quanto a Dezembro (falecimento de Bocage, em 1805, e nascimento de António Maria Eusébio, em 1819) - “Bocage dá-me licença / Que eu quero falar de ti, / No mês do teu centenário / Tu morreste e eu nasci.” -, proximidade logo contrariada pela diferença cultural (“Bocage tinhas nascido / Para ser astro brilhante / E eu nasci para ignorante / E nada ter aprendido.”) e pela distância social (“Sou um velho sem valor, / Ao pé de ti sou um pobre; / Tu filho d’um homem nobre / E eu filho d’um pescador.”) O poema termina a lamentar a forma de se afirmar a memória - “Só uma falta conheço, / E talvez haja outras mais, / São os teus restos mortais / Não estarem ao pé de teu berço.”

Nas décimas seguintes, o elogio bocagiano sublinha a vida difícil que levou, oposta à glória de que se revestia passados cem anos - “Este é o senhor da festa, / O poeta setubalense, / Tudo isto lhe pertence, / Mas para ele já não presta. / (...) / Foram precisos cem anos / Para ser tão festejado”. Bocage é ainda comparado com Camões, pela miséria em que ambos acabaram - “Se mais tivesse vivido / Sofreria privações, / Seria o que foi Camões, / Que foi na vida esquecido.” Neste preâmbulo aos festejos do centenário, é relembrado que também “em Dezembro a sua imagem / Teve a inauguração” (referência à festa de 1871, aquando da inauguração da estátua) e regista-se o envolvimento social e as influências - “O lojista e o proprietário, / O poeta e o camarista, / todos estes fazem vista / Na festa do centenário. / Não lhes falta o numerário, / Nem falta a boa vontade; / Nenhum tem necessidade / De certos expedientes, / De homens tão influentes / Grande é a sociedade.”

Seguem décimas sobre diversos assuntos elmanistas: biografia bocagiana (valorização da sua arte, alistamento no Regimento de Infantaria de Setúbal, relação de Bocage com o dinheiro e com a vida nocturna, passagem pela prisão, morte em Lisboa); familiares de Bocage que o “Cantador” ainda conheceu - o padre Francisco Barbosa du Bocage (“Este padre espiritual / Chorava pela sua cela: / No convento de Palmela / Foi freire e conventual.”) e Maria Luísa du Bocage, casada com João Lima (“Pois dos Bocages viventes / Só um ramo está em cima, / É o ramo Bocage Lima, / Um dos últimos parentes.”); comparação da “obra rica” do homenageado com a “obra pobre” do “Cantador”; reconhecimento de Bocage em Portugal e no Brasil e necessidade de haver sempre um monumento em sua honra em Setúbal.

Quase no final do folheto, duas décimas reflectem sobre o talento e a fortuna, aproximando-se o “Calafate” de Bocage quanto à sorte, pois sente-se “ora farto, ora faminto, / como Bocage viveu.” A conclusão acontece em quatro décimas, diálogo entre Bocage e o autor, gesto de proximidade social, em que, após agradecimento ao patrono, o “Cantador” se despede - “Seja eu bom ou ruim, / Minhas cartas estão dadas; / Já tenho as contas fechadas / Brevemente darei Fim.”

* J. R. R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 812, 2022-03-23, pg. 9.


quarta-feira, 16 de março de 2022

Bocage pelo olhar de Calafate (1)


 

António Maria Eusébio (1819-1911), poeta popular setubalense, ficou conhecido por “Calafate”, devido à profissão por que optou (contrariando a ideia da mãe), e por “Cantador de Setúbal”, por cantar fado (acompanhado à viola por Josué Ferreira, seu compadre, e à guitarra por Francisco de Jesus, conhecido como “Carga d’Ossos”) e pela prodigiosa imaginação para versejar. Não sabendo escrever, as décimas que produzia eram memorizadas e, depois, ditadas a uma neta ou a amigos, que as transcreviam.

Os seus primeiros versos foram publicados no Jornal de Setúbal, em 9 e 16 de Fevereiro de 1868, por iniciativa de Henrique das Neves (1841-1915). No entanto, só em 1901 voltaria a haver publicação, ainda por ideia de Henrique das Neves, quando surgiu o livro Versos do Cantador de Setúbal. E, ainda nesse mesmo ano, sairia o folheto Tudo e Nada (Reflexões entre um sábio e duas caveiras), conjunto de três poemas construídos sobre décimas, em oito páginas. Provavelmente, foi este o primeiro folheto de Calafate, expediente encontrado para suportar as dificuldades económicas e ajudar na sua autonomia, sem estar dependente dos filhos.

Ignora-se a quantidade de folhetos publicados na última década de vida de António Maria Eusébio - mais de 70, maioritariamente intitulados Cantigas para Guitarra, variando entre as quatro e as oito páginas (vendidos a 10 e a 20 réis, respectivamente), com periodicidade indeterminada, além de mais sete, de cunho autobiográfico, intitulados Recordações da Minha Vida, publicados entre 1904 e 1910, retrospectiva que ficou incompleta, pois as 422 décimas que os compõem apenas relatam a vida do poeta até cerca de 1846. Em toda esta produção, a fórmula mais habitual é a do poema constituído por quatro décimas, que seguem o mote dado por uma quadra, repetindo-se cada verso da quadra no final de cada décima, indo a engenharia dos poemas ao pormenor de repetir o esquema rimático em todas as construções. Os textos destes folhetos foram reunidos por Rogério Peres Claro (1921-2015), seu bisneto, na obra Versos do Cantador de Setúbal (dois volumes em 1985 e terceiro volume em 2008), seguindo o critério da arrumação temática dos textos e desprestigiando o ritmo e o contexto da publicação em folhetos.

O encontro de António Maria Eusébio com a poesia deu-se pelos seus vinte anos, cerca de 1840, e manteve-se pela vida fora, conforme canta numa décima do quinto folheto das Recordações, publicado em 1907, quando tinha 88 anos: “Já ia tomando amor / À musa da poesia / Já cantava e quem ouvia / Já me dava algum valor. / Chamavam-me o Cantador / Foi nome que me ficou / E ainda não se acabou / O nome que vale tanto. / Agora que já não canto / Ainda o Cantador sou.”

Senhor de uma memória prodigiosa e de uma curiosidade incontrolável, ao “Calafate”, os poemas saíam dominados pelo ritmo do fado e povoados pela experiência acumulada numa vida de dificuldades, que tanto lhe servia como fonte para testemunhar e relatar acontecimentos como motivação para reflectir sobre a existência. As temáticas que perpassam pelas suas décimas são diversificadas, um pouco ao ritmo dos acontecimentos vividos e presenciados - factos da vida pessoal, comemorações e festas religiosas, notícias do mundo (sobretudo conflitos internacionais), histórias brejeiras, episódios da vida local (as tramas políticas, as querelas, os costumes, o património), o sentir de classe e o mundo do trabalho, a vida social, reflexões sobre a vida e os valores.

Conterrâneo de Bocage, António Maria Eusébio presenciou vários momentos de homenagem ao vate sadino, razão por que o poeta setecentista não poderia escapar aos versos do “Cantador”.

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 807, 2022-03-16, pg. 5.


domingo, 11 de outubro de 2020

Memória de António Maria Eusébio, o Calafate e Cantador de Setúbal

 


Em 1908, Henrique das Neves (1841-1915) publicava em Lisboa a obra O Cantador de Setúbal António Eusébio (Calafate) - Apreciações críticas da sua personalidade coligidas da imprensa e de cartas particulares, título indispensável para o conhecimento do poeta evocado, pela quantidade de testemunhos recolhidos, pela diversidade de abordagens, pelo facto de a maior parte dos contributos advirem de publicações periódicas, correspondência ou momentos circunstanciais, que correriam o risco de se perder se esta iniciativa não tivesse existido.

Henrique das Neves, que se reformou como general, esteve no exército em Setúbal, aqui tendo feito amizade com António Maria Eusébio (1819-1911), graças à qual o nome do poeta “Calafate” pôde ficar registado em adequada bibliografia. A mais antiga referência escrita ao “Cantador de Setúbal” é assinada por Henrique das Neves no periódico Jornal de Setúbal, em Fevereiro de 1868, aí se descrevendo as suas qualidades e reproduzindo um conjunto de sete décimas. Três décadas passariam e, em 1901, o mesmo signatário avançou com a publicação Versos do Cantador de Setúbal, que mereceu prefácio de Guerra Junqueiro. A partir daí, a obra do Calafate passou a ser publicada em folhetos para venda na rua e nas feiras, assim constituindo um contributo para a subsistência do poeta octogenário e de sua mulher até ao falecimento de ambos no mesmo ano.

Para assinalar o bicentenário do nascimento do poeta, Daniel Pires e Ana Margarida Chora organizaram a obra António Maria Eusébio, o Calafate - Uma evocação, recentemente dada à estampa pelo Centro de Estudos Bocageanos, trazendo para o leitor de hoje grande parte dos textos que Henrique das Neves coligiu em 1908 e acrescentando outros publicados após essa data, com passagem por diversos arquivos. A abrir esta recolha, Daniel Pires considera que a poesia do Calafate “reflecte valores éticos elevados, pugna pela justiça social, por direitos humanos inalienáveis, tantas vezes postergados, então, no país”, enquanto Ana Chora estabelece as diferenças entre a poesia tradicional e os poetas populares, sendo que a estes, na época de António Eusébio, “as elites prestaram particular atenção”, haja em vista “a espontaneidade, a filosofia popular e a ironia” ou, “na forma, uma musicalidade imperativa e um ritmo que se precipita em função da própria lógica do conteúdo” que os caracterizam.

Classificado como “herói do improviso” (Manuel Envia), um dos “Homeros da viola” (Afonso Lopes Vieira), próximo de Nicolau Tolentino (Henrique das Neves), o “último troveiro” (Augusto da Costa), o detentor da “beleza única, a beleza moral” (Guerra Junqueiro), um “repentista e improvisador extraordinário” (Fernando Cardoso), “um caso de inteligência poética” (Fialho de Almeida), o poeta António Maria Eusébio foi longe, com uma recepção transversal a toda a sociedade. Leite de Vasconcelos, que palmilhou o país na busca da cultura popular, leu-o e registou: “tem grande poder de observação - pinta tudo o que vê em volta de si, discute os assuntos que no momento preocupam a opinião pública, verbera, com mordaz ironia, o que na vida ou na sociedade lhe não agrada.” E estas são, de facto, algumas das marcas que a sua poesia revela notavelmente.

Esta obra organizada por Daniel Pires e Ana Margarida Chora colige cerca de oitenta contributos sobre o Calafate, da prosa à poesia, da memória à notícia, do ensaio à biografia, tornando-se (apesar de alguns descuidos nas referências bibliográficas apresentadas) um elemento indispensável para o conhecimento da importância do Cantador de Setúbal. Uma bela forma de o evocar, dando-o a conhecer!

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 481, 2020-10-08, pg. 10.

sexta-feira, 19 de julho de 2019

Calafate, o Cantador de Setúbal: Homenagem em poemas



Setúbal está a assinalar os 200 anos do nascimento do seu mais conhecido poeta popular e homem do fado: António Maria Eusébio, mas conhecido por "Calafate" ou por "Cantador de Setúbal".
O programa deste bicentenário tem sido vasto e, sobre o poeta, pode (deve) ser vista uma exposição patente no Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal (MAEDS), espaço onde, amanhã, sábado, 20 de Julho, ocorrerá também, pelas 18h00, a apresentação pública de um volume antológico com poemas de poetas setubalenses que homenageiam a memória de Calafate. Organização: Casa da Poesia de Setúbal e MAEDS.
Convidados.

sexta-feira, 7 de junho de 2019

Visitar o Calafate (António Maria Eusébio) em Setúbal


António Maria Eusébio (1819-1911) foi cidadão setubalense, teve muitas profissões (em que se destacou a de calafate) e foi poeta (que Guerra Junqueiro elogiou), área em que ao seu nome foi associada a profissão, sendo conhecido como António Maria Eusébio, o Calafate, além de também ter sido reconhecido como "Cantador de Setúbal".
No ano em que passa o 2º centenário do seu nascimento, do conjunto de iniciativas que Setúbal está a levar a cabo, destaca-se a exposição bio-bibliográfica que amanhã vai ser inaugurada no Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal (MAEDS, na Av. Luísa Todi), com inauguração anunciada para as 18h00.
Parceiros desta realização são o MAEDS, a Câmara Municipal de Setúbal, o Rotary Club de Setúbal e a LASA (Liga dos Amigos de Setúbal e Azeitão).
Estão convidados.


quarta-feira, 2 de janeiro de 2019

Efemérides de 2019



2019, designado como Ano Internacional da Tabela Periódica dos Elementos Químicos e como Ano Internacional das Línguas Indígenas,apresenta um calendário com efemérides bem importantes no plano histórico-cultural.
Quinhentos anos são passados sobre o falecimento de Leonardo da Vinci (1519-05-02) e sobre o início da Viagem de Circum-Navegação encetada por Fernão de Magalhães (1519-09-20). Quatro séculos decorrem sobre o nascimento de Cyrano de Bergerac (1619-03-06) e sobre o falecimento de Frei Agostinho da Cruz (1619-05-14). Duzentos anos se completam sobre os nascimentos de Walt Whitman (1819-05-31), Herman Melville (1819-08-01) e George Eliot (1819-11-22) e sobre o falecimento de Filinto Elísio (1819-02-25).
Referência especial merece neste ano o 150º aniversário do nascimento de Calouste Sarkis Gulbenkian (1869-03-23), o arménio que se apaixonou por Portugal e nos legou o seu património numa organização interventora como é a Fundação que tem o seu nome.
2019 é também o ano do primeiro centenário dos nascimentos de Fernando Namora (1919-04-15), de Jorge de Sena (1919-11-02) e de Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-11-06), no respeitante a vultos da cultura portuguesa. Mas passa também o primeiro centenário dos nascimentos de J. D. Salinger (1919-01-01), de Primo Levi (1919-07-31) e de Doris Lessing (1919-10-22).
Quanto a acontecimentos históricos, são de referir os 100 anos sobre a assinatura do Tratado de Versalhes (1919-06-28), que assinalou o fim da Primeira Grande Guerra e que inauguraria, pensava-se, o tempo de abolição da guerra. Engano absoluto, pois, duas décadas mais tarde - passam neste 2019 os 80 anos -, a Europa começaria a Segunda Guerra Mundial (1939-09-01). É ainda de assinalar, no plano dos acontecimentos históricos, o 50º aniversário da chegada do Homem à Lua (1969-07-20), feito cometido pelos astronautas Aldrin, Armstrong e Collins, e, em Portugal, o 50º aniversário da Crise Académica de 1969 (com início em 1969-04-17).
O ano de 1969, sobre que passam 50 anos, foi também o do falecimento de António Sérgio (1969-02-12).
Em 2019, perfazem-se 70 anos sobre o primeiro registo diarístico que Sebastião da Gama fez no seu Diário (1949-01-11), obra apenas publicada em 1958.
Quanto a Setúbal, além das referências já feitas a Frei Agostinho da Cruz e a Sebastião da Gama, são de assinalar efemérides como os 200 anos sobre o nascimento Aníbal Álvares da Silva (1819-05-29), madeirense que foi vereador e presidente da Câmara sadina e que foi também deputado, função em que interveio e influenciou no sentido de a Setúbal ser atribuído o título de cidade, e de António Maria Eusébio, mais conhecido por “Cantador de Setúbal” ou “Calafate” (1819-12-15), poeta popular com valor reconhecido por nomes como Guerra Junqueiro ou Leite de Vasconcelos.
Há cem anos, Setúbal viu nascer o Orfanato Municipal (1919-05-18), instituição que mais tarde se chamou Orfanato Setubalense e, depois, Orfanato Municipal Presidente Sidónio Pais, e assistiu à inauguração do ramal da Linha do Sado (1919-12-13).

segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

Fado com histórias de Setúbal (3): Nomes que são argumentos



A terceira obra fac-similada que integra a colecção de bibliografia sobre o fado, em distribuição com o jornal Público (editada por A Bela e o Monstro), deve-se a Avelino de Sousa (1880-1946) e detém um título acusatório - O Fado e os seus Censores (Lisboa: ed. Autor, 1912). Com efeito, o livro reúne as crónicas que o autor publicou no jornal A Voz do Operário, comentando as opiniões de Samuel Maia (1874-1951), médico que usou o pseudónimo de Dr. Félix, e de Albino Forjaz de Sampaio (1884-1949), sendo dirigido aos dois o subtítulo “Crítica aos detractores da canção nacional”, bem como a designação de “censores” usada no título.
Tendo aqueles autores publicado opinião nos jornais O Século e a A Luta, respectivamente, contrariando a ideia do fado como canção nacional, Avelino de Sousa usa curtas crónicas para lhes responder, mantendo um tom irónico, sarcástico e cáustico na apreciação de qualquer um deles, chegando frequentemente a ridicularizá-los.
O texto de Avelino de Sousa é de contra-argumentação relativamente aos dos dois cronistas e, no seu jogo de argumentos, utiliza figuras ligadas a Setúbal, como sejam Bocage, Olga Morais Sarmento e António Maria Eusébio (o “Calafate”).
Uma das frases de Samuel Maia terá sido no sentido de associar o fado e o vinho, com o objectivo de dar um tom desprestigiante à canção. A resposta de Avelino de Sousa quanto a este paralelismo é contundente: «Mas - diz V. Exª - o Fado é a canção do vinho! Como se, para a gente se embebedar, fosse preciso sobraçar uma guitarra! Admitamos, porém, que é assim. E, nesse caso, queira V. Exª tomar nota desta plêiade de “bêbedos” ilustres, que têm contribuído com o seu altíssimo talento para que o Fado mais e mais se alastre e enraíze na alma popular: Bocage, João de Deus, Bulhão Pato, Guerra Junqueiro, António Nobre, João Penha, Gomes Leal, D. João da Câmara, António Correia de Oliveira, Hilário, Augusto Gil, Fausto Guedes Teixeira, Afonso Lopes Vieira, Júlio Dantas e tantos outros novos e velhos! Que “súcia de alcoólicos”, hein, doutor?»
Avelino de Sousa, ele próprio autor e cantador de fado (vocação que seguiu em simultâneo com a sua função de caixeiro na livraria Guimarães e de tipógrafo), arregimentava assim o grupo dos literatos cujos versos circulavam já pelas partituras do fado, com o poeta de Setúbal à cabeça, para responder de forma a deixar o seu interlocutor sem hipótese, haja em vista que os nomes mencionados constituíam na verdade uma plêiade. E a pergunta final, num misto de exclamação, assente sobre a ironia e a metáfora, não pretendia ser retórica, antes um desafio ou provocação ao criticado.
Quando dirige a resposta a Forjaz de Sampaio, a primeira observação é para sugerir o ridículo, apoiando-se em conversa havida com a setubalense Olga Morais Sarmento (1881-1948): «Eu conheço o sr. Albino Forjaz de Sampaio há longos anos, ainda do tempo em que S. Exª usava uma grande cabeleira, que é, na nossa terra pelo menos, um autêntico sinal de talento e, muitas vezes... de piolhos. Já uma vez a ilustre escritora D. Olga Morais Sarmento da Silveira me perguntou, referindo-se à capilaridade sebácea de muita gente boa, “se seria preciso possuir-se uma grande trunfa abastecida de muita caspa e oleoso cosmético para se provar à humanidade que somos inteligentes”! Não sei se será assim.» Umas linhas depois, vem o ridículo de facto, sendo denunciado que, num soneto que publicou, Forjaz de Sampaio se enganara e errara na construção do poema. Também para argumentar contra este crítico Avelino de Sousa vai buscar Bocage - Sampaio escrevera ser o fado “absolutamente incompatível com as virilidades de uma raça forte” e Sousa responde: «Eis outra bárbara mentira do desconexo artigo de V. Exª! Basta recordar esta quadra “Defender os pátrios lares, / dar a vida pelo Rei, / é dos lusos valerosos / carácter, costume e lei.” que se deve à pena do imortal poeta Manuel Maria Barbosa du Bocage. E não vale a pena transcrever também as glosas do sublime Elmano, porque a quadra chega para desmentir a néscia afirmativa de V. Exª.»  A quadra, no entanto, não era de Bocage mas da Condessa de Oyenhausen (Marquesa de Alorna), conforme correcção que, em crónica publicada quase no final do livro, um leitor faz e que Sousa aceita, explicando a origem do lapso (tinha-a visto associada às glosas numa edição em que não estavam identificados em separado os autores do mote e das glosas) e mantendo a argumentação - «a quadra, embora não seja de Bocage, fica de pé do mesmo modo».
O terceiro nome que funciona como caução para as razões de Avelino de Sousa é o do poeta Calafate, sobre o qual Forjaz de Sampaio tinha ironizado: «Está-se a ver pedir um lugar no panteão para o Calafate.» E comenta Sousa, ao mesmo tempo que enaltece a figura de António Maria Eusébio: «Assim diz, desdenhosamente, o sr. Forjaz. E acrescenta: “Esta apoteose não admira num país de correcionais.” Não está certo. O velho respeitável que se chamou Calafate foi toda a vida um famélico, um operário honesto, um fautor da riqueza pública, um escravo preso à gleba, como eu. Nunca aspirou a ter um panteão que lhe guardasse os ossos, aliás, tão veneráveis como os de qualquer outro mortal que fosse, pelo menos, trabalhador honrado como ele. Sem embargo, se não teve um panteão, gozou a felicidade suprema de ouvir da boca de Guerra Junqueiro palavras de infinita doçura, elogios de requintada sinceridade, à sua obra, à sua inteligência de analfabeto, que, num esforço supremo de cerebrização inculta, soube arrancar da lira d’alma - a mais honesta e rica de todas - maviosíssimos sons a que a prosa vil de V. Exª não chegará nunca! Guerra Junqueiro ouviu o pobre Calafate com aquele recolhimento próprio do seu altíssimo espírito. Mas creio que se conserva surdo ante os guinchos guturais de críticos paranóicos e cego para as cabriolices e cambalhotas obscenas de certos palhaços da literatura indígena! Assim é que está certo.»
O ataque a Forjaz de Sampaio era certeiro e acutilador: se trazia em defesa do cantador de Setúbal a autoridade do poeta freixenista Guerra Junqueiro - que, em 1901, prefaciara um volume de poesias do Calafate, texto a que o leitor pode aceder na obra junqueiriana Prosas Dispersas (Porto: Lello & Irmãos, 1964) -, por outro lado, parodiava com o título de uma das obras do próprio Forjaz de Sampaio, Prosa Vil, volume de crónicas datado de 1911, ano anterior às crónicas de Avelino de Sousa.