segunda-feira, 30 de abril de 2012

Sobre "Cântico primaveril", de Ilídio Gomes


Cântico primaveril é o quarto livro de Ilídio Gomes a viver de poesia (Setúbal: ed. Autor, 2012). Com esta obra, o autor pretende, nas suas próprias palavras, “fechar um círculo”, mesmo correndo o risco “de uma qualquer deficiente verbalização”, com humildade mas com satisfação, liricamente sentido.
Ressalta desta nota inicial do autor a ideia de missão, de compromisso com a palavra e consigo mesmo, numa atitude de veneração pela poesia, construção que lhe preenche espaços, muitos espaços, da vida.
Ao quarto livro, que Ilídio Gomes sugere ser o último, o título remete-nos para o período da criação, a Primavera, curiosamente numa ordem que apenas a poesia pode permitir. Se olharmos a sequência de títulos publicados, vemos que o Outono antecedeu esta Primavera, já que, em 2005, tinha saído Cântico outonal e, sete anos passados, surge Cântico primaveril.  A habitual ordem das estações do ano, que nos habituámos a decalcar das idades da vida e do pulsar do calendário, foi aqui subvertida, numa lógica de que a palavra é instrumento de criação e de que a poesia não se deixa limitar por barreiras de outra ordem que não os momentos do sujeito poético. Fechar o ciclo com a Primavera é acreditar na criação!
Apresenta-se este livro como um conjunto de “crónicas e poesia”, uma e outra partes com contornos imprecisos, mas ambas sujeitas a fortes epígrafes.
Comecemos pela primeira, pedida emprestada a Sebastião da Gama: “Que importa, meus versos, que vos tomem / (e eu vos tome também) por chaves falsas / se vós me abris as portas verdadeiras?” O que se afirma é a vontade do poeta, a capacidade que a palavra tem de ser uma chave que resolve os mistérios apresentados pelo mundo – chave, no sentido da decifração; chave, enquanto abertura possível para seguir a rota do desvendar dos máximos segredos e revelações.
A segunda epígrafe é de Miguel Torga e diz: “Não há espelho mais transparente que uma página escrita.” E temos a mensagem poética na sua função especular, a revelar o poeta ao mundo, a devolver ao leitor o descobridor de segredos.
Ambas as citações, que Ilídio Gomes colocou a abrir as duas partes do livro, contribuem para justificar esta voz que se ouve em Cântico primaveril. Por cerca de uma centena de textos passam procuras, verdades, descobertas, crenças. Intervalam-se quadros do longe com motivos da proximidade, numa oscilação entre a partida, em viagens de ausência quase sempre feliz, e o estar aqui, em momentos de regresso, para evocar quadros de vida, lembranças, aprendizagens, onde não faltam o Sado, a Arrábida, a cidade ou os seus jardins.
Tudo passa pela partilha através da palavra – “hei-de escrever / todos os versos que a Musa me ditar / e dá-los-ei ao Mundo para os ler!” Tal comunhão vive das convicções (“sempre fiz da razão a única força da verdade”), da descoberta do valor do tempo e da vida (“sempre gostei de falar da vida, / tema que guardo serenamente / no meu vocabulário, em palavras / de silêncio, que guardo avidamente / por respeito à memória dos tempos”), da fixação em momentos de paisagem, acompanhando, por exemplo, o voo da gaivota (“sei que depois voltas calma, serenamente, / à cidade no teu voo de asas brancas, / a deitar luz sobre as águas mansas do Sado”) ou o sulcar de um veleiro (“navega cortando as brumas e as vagas, / numa marcha firme, sempre mais audaz, / meu veleiro branco que larga o cais / com rumo traçado em busca de paz”).
Por estes poemas passam também valores, chaves outras de orientação e da vida, de que destaco dois: a energia que pode jorrar da humildade (“é muito provável que ninguém saiba / por ser segredo / que a força da humildade / contraria a escuridão do nosso medo”) e um forte sentido do que é ser homem e senhor do destino, em liberdade (“sou eu quem guia o meu caminho, / não há mares, rios, oceanos, / ventos ou tempestades / que consigam transformar o meu querer”).
Dizer poético é esta mensagem de Ilídio Gomes, através de um cântico que louva a vida, dele não sendo alheias marcas da dureza que a constrói, num esforço preocupado de encontrar a essência que caracteriza o homem e que define uma vida! São esses momentos que a palavra poética transforma em Cântico primaveril
[Na apresentação da obra, no sábado, em Setúbal.]

quinta-feira, 26 de abril de 2012

Máximas em mínimas (83) - Alice Vieira


Sonho – “Os sonhos são recados dos deuses.”
Bondade – “Quem tem um coração de oiro nunca envelhece, mesmo que viva até aos cem anos.”
Infinito – “O que não tem fim não se pode medir.”
Palavra – “Às vezes, há palavras que matam muito mais depressa do que uma valente espadeirada.”
Chegada – “Estamos sempre a chegar e sempre a partir.”
Adulação – “Às vezes, os reis só têm ouvidos para as palavras da lisonja e da mentira.”
Amar – “Quem ama não deve pedir nada em troca desse amor.”
Alice Vieira. Leandro, rei da Helíria, 1991.

terça-feira, 24 de abril de 2012

Memória: Miguel Portas (1958-2012)

Admirei-lhe a coerência e a convicção. Há uns meses, veio à minha Escola para falar da Europa e do seu futuro. Foi um discurso aberto, afável, construído sobre convicções, esclarecedor, sem demagogia. Os alunos que assistiram, mesmo os mais novos, apreciaram a força dos argumentos e a clareza, logo o distanciando dos políticos que todos os dias invadiam (invadem) os media. Era dono de uma voz que nos vai fazer falta.

Dina Barco: "Diário de Sara, a Verde"


“Mãe, tens muitos diários cá em casa?”, quis saber Sara, um dia. Pensando nos seus diários da juventude, a mãe confessou que já os destruíra, mas a adolescente logo corrigiu a pontaria – “Não é desses que estou a falar. Quero saber de diários como o de Anne Frank e o outro que andaste a ler!” E a mãe procedeu a rápido inventário do que podia ser encontrado nas estantes lá de casa: Miguel Torga, Sebastião da Gama, José Saramago. Mais tarde, nessa sexta-feira, Sara registaria: “Pelos vistos, a moda dos diários-livros não é coisa recente. Não sei se foi a Anne Frank que começou, embora involuntariamente, coitada, porque duvido que isso a preocupasse enquanto vivia escondida dos nazis. O certo é que, uns anos mais tarde, no meio de outra guerra, a Anne serviu de inspiração à Zlata Filipovic. Depois apareceram a Joana (da Lua), a Sofia (& Cª) e uma tal Bridget Jones (…) Agora há diários para todos os gostos: cruzados, secretos, de bananas, de totós, de vampiros…” E logo veio a decisão da jovem: “Mesmo assim, resolvi experimentar a receita para ver se acabo com as crises financeiras cá de casa. Se os outros escrevem, porque não eu, que até tenho sempre boas notas a Português?”
Está encontrado o pretexto para este Diário de Sara, a Verde, de Dina Barco (Ilustr.: Raquel Barco. Setúbal: ed. Autor, 2011), volume de oitenta páginas, corrido no tempo de um ano escolar, entre o primeiro de Setembro e o 25 de Junho. O género é a forma de escrita diarística juvenil sobre uma história ficcionada e os modelos são vários, como referido acima.
De leitura bastante acessível, transmitindo os sentires de Sara, uma jovem do 6º ano, que vive com a mãe, na cidade do Sado, neste Diário vai a protagonista partilhando com o leitor as preocupações da idade – as amizades, os amores, as zangas, a cumplicidade com a mãe, a escola, o espírito de grupo, a família, as descobertas, a ausência do pai, a identidade…
Por este caminho passam, sobretudo, as aprendizagens e os olhares de uma adolescente atenta à vida – sobre a amizade (“Sabe tão bem fazermos os outros felizes!”), sobre as dificuldades dos outros (ao saber a história de Fábio, desabafa: “deve ser horrível andar a viver daquela maneira, empurrado duns sítios para os outros, sem um único adulto em condições que se preocupe com ele… Como é que eu seria se tivesse uma vida assim?”), sobre os rapazes (“Parece que nem vives neste mundo. Então não sabes que quando os rapazes coram é porque estão apaixonados?”, ensinou-lhe a Inês), sobre o apoio da mãe (“Não ganha muito e portanto também não podemos ter luxos, mas eu não trocava a minha vida por nada! Damo-nos bem, divertimo-nos juntas, fazemos programas interessantes… Ela não sabe, mas é a pessoa que eu mais admiro no mundo.”), sobre os efeitos da paixão (“quando aparecem paixões pelo meio é normal que as amizades se ressintam um pouco”), sobre o primeiro beijo (“depois os lábios dele tocaram os meus e senti uma onda de calor que me deixou literalmente a flutuar”), sobre o sentido das aprendizagens (“já percebi que dentro e fora da escola a vida é assim mesmo, feita de mudanças que nos estão sempre a pôr à prova e a fazer aprender mais qualquer coisa”). E passam também as preocupações sociais (o custo de vida, a solidariedade, a amizade, as cautelas no uso da net, cuidados ambientais), as imagens sadinas (Arrábida, Teatro Animação de Setúbal, Coral Luísa Todi, Coral Infantil de Setúbal, Vitória Futebol Club, Parque Urbano de Albarquel, Museu Oceanográfico, Lapa de Santa Margarida, José Afonso, Casa da Baía), a pedagogia sobre a saúde (alimentação).
Quanto ao cognome “a Verde”, Sara adquiriu-o graças a um projecto que desenvolveu na escola, assumindo uma perspectiva crítica quanto às práticas pouco amigas do ambiente levadas a cabo no meio escolar. A sua forma de afirmação, o seu espírito crítico e a sua convicção granjearam-lhe simpatias e constituíram mesmo um passo determinante para o encontro com o rapaz de quem gostava, assinalando um momento de tal crescimento que, num registo de Junho, a levará a escrever: “Faltam só duas semanas para vermos terminado o ano lectivo mais feliz da minha vida!”
O final do livro é de encontros: apaixonada, Sara consegue reconhecer que a mãe estava perante o mesmo sentimento. E, perante as dúvidas de como poderia ser a sua relação com o namorado da mãe e com a filha dele, a Sara revela-se ainda um outro segredo que lhe traz alegria: o destino das duas jovens já se tinha cruzado, ainda que nenhuma delas o soubesse.
Diário de Sara, a Verde é livro de leitura fácil, que pode suscitar diálogos e momentos de escrita. Não sabe o leitor se Sara deu cumprimento à última promessa que deixou exarada na derradeira página do diário – perante o entusiasmo da descoberta final, que Sara conta já tarde, “cansada e com muito sono”, conclui o texto, dizendo: “Agora vou dormir. Feliz. O resto fica para depois.” Se o “resto” for a continuação do trajecto de Sara, pode ser que, um dia, o leitor se cruze com ele… Não se perderia nada, tanto vale a pena haver retratos de jovens felizes com as suas descobertas!

segunda-feira, 23 de abril de 2012

No Dia Mundial do Livro, a "Oración al libro", de Rafael Heliodoro Valle



Danos, Señor, el libro nuestro de cada día, tenemos sed de justicia: es nuestro vino; nos morimos de hambre de amor: es nuestro pan.
Danos labios puros para leerlo, manos limpias para tocarlo, candor para merecerlo. Está hecho también para que los hombres malos lo lean, porque él es agua clara en que se purifican las almas sucias, aroma fina para todas las llagas.
Danos el libro que todos pueden leer, el que sea para todos como el sol y todos lo entiendan como el agua. El que nos alumbre en este largo camino que se llama vida: queremos luz; el que nos levante de esta tierra en que nos arrastramos: queremos alas.
Lo queremos suave de corazón, lleno de cantos como un árbol, y que descanse en nuestras rodillas como un niño. No importa que sea humilde, con tal que se ofrezca a la mano como un fruto: o que sea débil en aparencia, con tal que llene un nido.
Le haremos su casa, para que en ella viva con decencia; lo defenderemos de las manos pérfidas que lo acechan, para que sirva a todos; lo levantaremos del suelo cuando se caiga, para que otros no lo ultrajen; lo vestiremos, si está desnudo, con la seda de nuestra devoción contenida. En él viven almas que tuvieron el dolor de nuestro mismo llanto, sufrieron en carne viva otras ideas, se desesperaron por otros ensueños; pero él no estará quieto en su casa, porque fue hecho con la inquietud, con el dolor y el amor de cada día, y por eso, cuando sea más oscura la noche y el camino más pavoroso de peligros, él saldrá a dar el pan y el vino a los que tienen sed de justicia, hambre de amor.
Los niños ricos lo leerán y los de los pobres lo amarán, porque los hombres lo hicieron para todos los hombres. Irá, de mano en mano, como la buena semilla de tierra en tierra, y ha de ser tierno como el nido; delicioso, entero como el fruto.
Cuando todos los hombres lo lean, se apagará la llama horrible de la guerra, el rico no explotará al pobre, y habrá riso y buena acción en el mundo, canción en la tarea, y no se odiarán más los hombres de buena voluntad. Ni habrá niños descalzos, niños que alzen las manos para pedir sino para dar. Todos creerán en un mismo Diós; ni el arte, ni la ciencia, ni la religión serán el privilegio de los unos, y la vida tendrá entonces su más alto sentido.
Danos, Señor, el libro que trae llamas en la frente como el profeta que nos bajó del cielo. Este no es el barco cañonero que trae gente armada; este barco trae libros para los niños o los sabios y los que tienen hambre de conocimiento, sed de misericordia.
Danos, Señor, el libro del Norte y del Sur, y el que está escrito con espíritu, y el que sabe a la amargura más íntima del corazón. Los hombres buenos — que son más que los hombres malos — salen a recibirlo con los brazos abiertos. Danos, Señor, el libro antena, aquél en que repercuta el grito de los otros hombres, el que copia el paisaje de las otras lontananyas. Y deja, Señor, que él nos alumbre en este largo viaje de la vida y nos sea claro como el torrente, generoso como el fruto, blando como el nido; y que solo se nos caiga cuando llegue la muerte.

O texto é do hondurenho Rafael Heliodoro Valle e li-o transcrito por Sebastião da Gama no seu Diário no conjunto de “páginas de férias”, de 1949. Heliodoro Valle (1891-1959) passou a viver no México desde cedo. Professor universitário, desempenhou também o cargo de embaixador do seu país nos Estados Unidos. Foi autor de obras como El rosal del ermitaño (1911), El perfume de la tierra natal (1917), Ánfora sedienta (1922), El espejo historial (1937), Cronología de la cultura (1939), Unísono amor (1940), Poemas (1954), Flor de Mesoamerica (1955) e Historia de las ideas contemporáneas en Centro-América (1960), entre outras.

domingo, 22 de abril de 2012

Máximas em mínimas (82) - André Domingues


Doença – “As doenças não pedem licença para exercer em nós o seu laborioso domínio.”
Tempo – “O tempo é a grande ratoeira do infinito.”
André Domingues. "Sine die". Novos Talentos FNAC Literatura 2011. Lisboa: FNAC / Teodolito, 2011

sábado, 21 de abril de 2012

Para a agenda: Ricardo Saavedra biografa António Manuel Couto Viana

É de Ricardo Saavedra a primeira biografia sobre António Manuel Couto Viana. De Ricardo Saavedra e do biografado, já que o texto resulta de longa entrevista e não menos longas conversas entre os dois. Daí, um livro a quatro mãos este António Manuel Couto Viana - Memorial do Coração, a ser editado pela Quetzal e com apresentação pública marcada para 4 de Maio, na Feira do Livro de Lisboa. Ler mais aqui >>>

quinta-feira, 19 de abril de 2012

Para a agenda: "Livros que tomam partido - A edição política em Portugal no período 1968-1982"

Decorrerá no próximo dia 21 de Abril, às 16:00 horas, no espaço da livraria Culsete, em Setúbal, a apresentação da conferência «Livros que tomam partido: a edição política em Portugal no período 1968-1982», apresentada por Flamarion Maués, investigador da Universidade de São Paulo e do Instituto de História Contemporânea da UNL. A conferência será comentada por Nuno Medeiros, especialista em sociologia e história do livro e da edição.
Portugal assistiu, desde 1968, mas principalmente após o derrube da ditadura em 25 de Abril de 1974, a uma explosão do que podemos chamar de edição política, ou seja, a publicação de livros de caráter político, sobretudo de obras vinculadas ao pensamento de esquerda, dentro de um movimento mais amplo de liberação política e cultural decorrente do fim da opressão ditatorial.
O historiador brasileiro Flamarion Maués vem desenvolvendo ampla e pioneira investigação sobre a edição política em Portugal, focalizando as editoras de livros de caráter político que publicaram no período entre 1968 e 1982, procurando perceber e interpretar o seu papel.
Ao convidar este investigador, a Livraria Culsete pretende assinalar a passagem dos 38 anos da Revolução de Abril, chamando a atenção para uma questão até agora esquecida, mas de importância crucial no aprofundamento histórico e cultural da edição e do livro.

quarta-feira, 18 de abril de 2012

Antero de Quental, 170 anos, hoje

Antero de Quental, em banco, no jardim, na Praça das Amoreiras, em Lisboa

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Para a agenda - Centro de Investigação Manuel Medeiros

Hoje, em Setúbal, no auditório da Biblioteca Municipal, a cerimónia de fundação do Centro de Investigação Manuel Medeiros, no âmbito da UNISETI.
O patrono, açoriano e livreiro em Setúbal, poeta (Resendes Ventura), autor de blogue ("Chapéu e Bengala"), vai falar sobre "Temáticas setubalenses e conquista de cidadania activa". A não perder, pelas 15h00.

quinta-feira, 12 de abril de 2012

N'«O Setubalense» de ontem - Professor

Antes de mais, uma declaração de interesses: sou professor. Por gosto, por prazer, por necessidade de aprender cada vez mais. Tenho de muitos dos meus professores gratas recordações, porque com eles aprendi muito, porque me ajudaram a ter do professor a imagem que tenho, positiva. Recordo muitos deles, sejam da escola primária (era assim que se chamava), do ensino secundário ou do ensino superior. Recordo-os com boas lembranças e, quando os encontro, faço também questão de lhes mostrar essa ligação. De alguns fiquei amigo, de convívio frequente; de outros, sei deles pela memória.
De igual forma, tenho tido alunos que me têm lembrado a importância de nos termos encontrado. Como haverá outros que nem se lembram ou que quiseram esquecer rapidamente. Leis da vida e das conjunturas, pois educar e ensinar não é simples, embora seja uma área sobre a qual é fácil dar palpites, talvez porque todos temos algo a ensinar ou a aprender. Sebastião da Gama dizia isso mesmo aos seus alunos, conforme o recorda no Diário: «Não sou, junto de vós, mais do que um camarada um bocadinho mais velho. Sei coisas que vocês não sabem, do mesmo modo que vocês sabem coisas que eu não sei ou já esqueci. Estou aqui para ensinar umas e aprender outras.» Revolucionário para a época, em Janeiro de 1949? Não, apenas natural, como continua a ser natural hoje, mas com sabor a aprendizagem e a ensinamento.
Vem tudo a propósito de um texto que vi escrito num saco. É verdade: num saco. Começou o período da apresentação de manuais escolares e, há dias, numa sessão promovida pela Porto Editora, por facilidade de arrumação, os vários componentes dos respectivos projectos eram entregues dentro de um saco, em cujo corpo se podia ler o seguinte texto, dirigido aos professores: “Pela sua paixão, pela sua dedicação e pela sua coragem. Por nos mostrar o mundo. Por nos abrir os olhos. Por nos fazer pensar, imaginar e sonhar. Por cada aula. Pelas letras e pelos números. Pelos pensadores, pelos construtores e pelos inventores. Por nos mostrar o caminho e por caminhar ao nosso lado. Por ensinar as nossas crianças. Por abrir horizontes a Portugal. Obrigado.”
Poder-se-á dizer que a mensagem corresponde à dimensão poética do que pode conter o texto publicitário; poder-se-á dizer que é a boa promoção de uma marca. Certo. Mas não é menos certo que, depois do que tem sido, nos últimos anos, a forma de tratar este grupo profissional, sabe bem ler isto. Todos nós, professores, nos sentimos perto do que esta mensagem diz, às vezes; noutros momentos, sentimos a distância porque não conseguimos chegar ali. Contingências de sermos humanos…
De ser professor gostaria de ter uma recordação como aquela que George Steiner enunciou uma vez, quando lhe perguntaram qual a recompensa possível para um professor: «A recompensa suprema é a de encontrar um aluno muito mais dotado que nós mesmos, que vai avançar mais do que nós, que vai criar a obra que um futuro professor vai ensinar.»

quarta-feira, 11 de abril de 2012

Sebastião da Gama: poemas para os amigos

Muitos dos poemas que Sebastião da Gama escreveu tiveram dedicatórias para amigos, sobretudo nos manuscritos – são cerca de quatro dezenas os poemas publicados nos três livros por si editados (Serra Mãe, 1945; Cabo da boa esperança, 1947; Campo aberto, 1951) que, não tendo dedicatória nos livros, foram dedicados em manuscrito. A prática era normal em Sebastião da Gama, que gostava de se apresentar como poeta: partilhar poemas com os amigos, não só a dádiva por ouvirem o texto acabado de surgir, mas também a entrega do documento escrito, de que o poeta fazia várias cópias para ofertar.
Há, no entanto, cerca de trinta poemas que tiveram destinatário especificado, motivados que foram por essa prática do livro de curso a encerrar o tempo universitário de uma licenciatura. Sebastião da Gama escreveu para vários amigos e em várias dessas publicações. Cerca de três dezenas é o número de poemas nessas circunstâncias que conseguimos apurar até agora. Dessa produção quase não ficou registo e existem escassos manuscritos desses mesmos testemunhos de afecto. >>> Continuar a leitura >>>

Máximas em mínimas (81) - Horácio Bento de Gouveia

Adolescência – “Abstracção vive-se, sim, na adolescência, na qual os olhos vêem com matizes que só a ela pertencem o mundo em torno.”
Vivido – “Procurar reproduzir a experiência vivida é o mesmo que evocar, em presença da fotografia, a realidade humana que não se vê mas existiu.”
Imaginação – “Se não fora a imaginação, a vida seria de uma realidade cruenta.”
Olhar – “O exterior é o primeiro conhecimento dos olhos.”
Beleza – “A beleza também embriaga. A reflexão nunca desmente o êxtase que a consciência viveu.”
Horácio Bento de Gouveia. Alma negra e outras almas. Funchal: ed. Autor, 1972

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Em La Lys, na Flandres, há 94 anos

Na obra Notas do Cativeiro – Memórias dum Prisioneiro de Guerra na Alemanha [Lisboa: J. Rodrigues & Cª (depositário), 1919], Adelino Delduque ocupa o primeiro capítulo, intitulado “De Cense de Raux a Salomé-La Bassée”, transmitindo a visão do que ficou do 9 de Abril, dia da batalha de La Lys.
Datado de “Rastatt, Abril de 1918”, este texto é a memória do momento em que o narrador e camaradas seus (entre os quais o então tenente-coronel Craveiro Lopes) foram feitos prisioneiros pelos alemães em 9 de Abril. Depois da descrição do saque produzido pelos soldados inimigos aos souvenirs (“termo extremamente singelo e não sei se quase carinhoso, à sombra do qual fomos ficando sem as coisas que lhes iam apetecendo e que para nós em não sei quantos casos tinham além do seu valor intrínseco o da recordação que representavam”) que eram os objectos de uso pessoal (artigos de toilette, relógio, carteira, casaco e outros), torna-se forte a impressão causada pela destruição, pela ruína – dos homens e dos sítios:
«(…) A barragem de artilharia, essa música ensurdecedora e horrível de nove horas consecutivas, ouve-se já a maior distância. (…) Agora vamos ao longo da rua du Bois, antiga estrada que atravessava as linhas e que entre elas estava quase desaparecida. (…) A todo o longo há um horroroso espectáculo de carnificina. Jazem a um e outro lado numa verdadeira igualdade, nesta que só nestas condições é verdadeiramente igual, soldados nossos e inimigos. Há-os desfigurados, disformes, contorcidos, despedaçados, as mãos crispadas, o rosto profundamente contraído, mostrando bem o horror do sofrimento em que se debateram e em que morreram. Lutaram como soldados e diz-nos o aspecto que nos últimos momentos em que os rostos da lucidez lhe avivaram memórias que não falham, sentimentos que se não perdem, lutaram ainda desesperadamente para viver. (…) Foi por entre este horrível espectáculo que atravessámos as linhas. (…) O efeito do nosso bombardeamento íamo-lo encontrando a cada passo. Havia muitos cavalos mortos, muitas viaturas em destroços. Infelizmente, porém, não fora o bastante. (…)»

Adelino Delduque da Costa (10.Jun.1889-25.Jun.1953), natural de Viana do Castelo, foi oficial do Exército. Passou à situação de reserva como coronel em 1948. Participou no CEP, tendo sido feito prisioneiro em 9 de Abril; leccionou no Instituto dos Pupilos do Exército e no colégio Militar; foi Chefe do Estado-Maior do Estado da Índia e Governador do distrito de Damão. Pertenceu ao Instituto Vasco da Gama e à Comissão de Arqueologia do Estado da Índia. Foi autor de Notas do Cativeiro – Memórias dum Prisioneiro de Guerra na Alemanha (1919), Diu – Breve notícia histórica e descritiva (1928) e Os Portugueses e os Reis da Índia (1933).

domingo, 8 de abril de 2012

Páscoa

Na igreja paroquial de Queijas (Oeiras), pintura de Victor Lages

sexta-feira, 6 de abril de 2012

Nuno Gomes Garcia, "Arame farpado - As peripécias de um soldado republicano"

Sabino nasceu em 29 de Fevereiro de 1892, em Lisboa, e à data foi associado algum espírito de maldição. O trajecto de Sabino, Casimiro Sabino, lisboeta de Alfama, personagem complexa, ocupa a história de Arame farpado – As peripécias de um soldado republicano, de Nuno Gomes Garcia (Corroios: Edi 9, 2011).
O subtítulo ajuda a desvendar algumas marcas da história, sobretudo a da condição militar e a do momento histórico, contextos que se estendem pelos vinte capítulos, com o leitor a acompanhar a personagem até Janeiro de 1926, data em que o narrador conclui a sua história, quando se sente “perdido na quietude gelada do manto branco que cobre as estepes da Ásia”.
É uma história construída sobre analepses, outros tantos momentos de memórias, conjugadas com momentos históricos com os quais a vida da personagem se cruzou – o regicídio em Lisboa, a barricada na Rotunda, o 5 de Outubro, as incursões couceiristas em Trás-os-Montes, o ataque alemão ao posto moçambicano de Maziúa, a preparação do Corpo Expedicionário Português em Tancos, a participação portuguesa na Flandres e a batalha de La Lys. Estes momentos dão-nos, de resto, a geografia em que a história decorre – entre Lisboa, Vinhais, Moçambique, Brest, Flandres.
O tempo preponderante é o das trincheiras na Flandres (com episódios da vida na trincheira bem reconstruídos), que ocupa metade dos capítulos da história, surgindo todos eles intervalados pelos capítulos que evocam outros momentos da história da personagem, num trajecto de reconstrução da memória de Sabino, um misto de soldado e de crítico, sempre sentindo a maldição sobre si, gostando de viver no caos, construindo o seu próprio caos, determinado pela procura dos sítios e dos momentos de maior desagregação (“Desde cedo, compreendi a ligação umbilical entre a república e o caos. A república precisava do caos, por isso, eu necessitava da república.”).
O percurso de Sabino, revolucionário, degredado, desertor, vendedor ambulante de livros, leitor, trabalhador na morgue, soldado, solitário, permanentemente preocupado em guardar o seu segredo (ainda que escrevendo-o), constrói-se no encontro com outras personagens, algumas delas figuras da história portuguesa da época (Machado dos Santos, general Tamagnini ou Aníbal Milhais, o famoso soldado “Milhões”, entre outros) e sobre uma linguagem crítica, fortemente irónica (“Os guerreiros portugueses lá se arrebanhavam nas valas, mascarados de ovelhas em plena véspera de natal, tal qual figurantes de um aberrante presépio.”; “os ingleses não conseguiam tolerar a pontualíssima meia hora de atraso lusitana.”) e sarcástica, muitas vezes (“Ninguém nos sabia dizer se o Manelinho tinha ido ou não ao encontro do seu augusto paizinho. Mal por mal, o reizinho, doravante, já saberia como é difícil viver numa casa sem teto.”, observação referente ao momento em que, tendo sido bombardeado o palácio das Necessidades, se ignorava o destino de D. Manuel).
Acompanhar Sabino no período de uma década (entre 1908 e 1918) é testemunhar o absurdo de uma personagem que esmaga os sentimentos dos outros e corre em busca de uma normalidade que não encontra, transformando-se num símbolo de crise.
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Paraíso – “O paraíso é efémero e tende, tal como aconteceu na génese da humanidade, a terminar abruptamente.”
Esperança – “A esperança infundada é a grande responsável pelos maiores logros e desastres.”
Aparência – “Uma gravata é o melhor meio de queimar etapas no sentido de uma vertiginosa ascensão social.”
Espera – “Todas as esperas são dolorosas.”
Tempo – “Talvez não haja nada mais longo no tempo do que a perpetuidade.”
Justiça – “A justiça e a paridade não são luxos, são direitos universais.”

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Hélia Correia na "Ler"

A entrevista que Carlos Vaz Marques fez a Hélia Correia e que o número deste mês da revista Ler (Lisboa: Fundação Círculo de Leitores, nº 112, Abril 2012) publica é peça a considerar.
No próprio e excelente estilo de Vaz Marques, o pretexto da conversa é a publicação recente do poema A terceira miséria (Relógio d’Água) de Hélia Correia, perpassando pelas suas oito páginas o retrato da entrevistada, uma tela cheia de originalidade, iniciada com os ensinamentos recebidos dos gatos e da Grécia e finalizada com uma confissão resultante de um tratamento que acabou por rejeitar porque… “estive quase a ser normal, imagine.”
Fala-se da Grécia e da cultura grega, da poesia, do “mundo” literário, da escrita, da leitura, da vida. Uma entrevista a alguém que faz o seu mundo e que faz o mundo seu. Peça a ler.
E, sobre o presente, uma (longa) citação a reter, quando todos andamos preocupados com os valores em que nos movimentamos: “Não há nada que escape ao escândalo que o ser humano criou para os dias de hoje. As pessoas falam muito de valores mas eu não gosto muito de falar de valores porque isso implica um sistema moral que se considera mais perfeito do que o dos outros. Não falo, por isso, da falta de valores, hoje. Até porque há grandes valores, por exemplo entre os jovens. Há o valor maravilhoso da amizade, que está muito implantado. Se eles não têm outras virtudes é também porque não podem, porque estão lançados na arena dos gladiadores e têm de lutar até à morte para não serem mortos. Aí, não pode haver virtude nenhuma. Também não gosto nada da palavra ‘virtude’, que é romana e própria dos homens: é a qualidade do homem. Como é que se pode tipificar este escândalo? É o completo voltar de costas à vida e ao louvor da vida. Sendo que para mim a vida é a natureza e todos os seres que ela contém.”

terça-feira, 3 de abril de 2012

Andersen no dia de ontem

Ontem foi o Dia Internacional do Livro Infantil, caído em 2 de Abril por ser esse o dia em que, em 1805, nasceu Hans Christian Andersen, o contista dinamarquês universalmente conhecido, que foi também viajante e andou por Portugal em 1866 (passará, dentro de quatro anos, o 150º aniversário dessa viagem), dessa experiência tendo deixado relato.
Setúbal foi um ponto de poiso nessa longa jornada e foi nesta terra que lhe surgiu a ideia para um conto como “O sapo” (“Skrubtudsen”, no original), narrativa que homenageia o sonho de ir mais além, apesar dos riscos.
O fascínio dos contos de Andersen, na sua totalidade traduzidos para português por um setubalense, João José Pereira da Silva Duarte (1918-2011), mantém-se sobre os seus leitores, independentemente das latitudes ou das gerações.
Há poucos meses, a M. C., minha aluna de 7º ano, leitora compulsiva, fazia-se acompanhar do livro Os contos, de Andersen, numa edição devida a esse espantoso divulgador e amante da obra do seu conterrâneo que é Niels Fischer, feita em 2005 (aquando do bicentenário do nascimento de H. C. Andersen). Pedi-lhe uma opinião sobre a sua leitura e a resposta deu para conversa em parte significativa de uma aula: “Os contos de Andersen não são tão felizes na escrita como aparecem nos filmes, dizia, mas são muito mais bonitos e encantadores, mais surpreendentes, na leitura do que nas versões que nos mostram.”
É claro que, perante uma observação destas, uma parte considerável da turma quis saber as razões que levavam a M. C. a falar assim e quiseram saber a opinião do professor. Daí o tempo que, em aula, se gastou a falar de Andersen… com a consequente recomendação de leitura de “O sapo”, que tinha sido gerado em Setúbal, e com olhares atentos para uma (re)descoberta de Andersen graças à M. C.
Quanto a “O sapo”, o início é nas profundezas, enquanto o final é nas alturas. Assim começa:
“O poço era fundo, por isso a corda era comprida. A roldana rodava com dificuldade quando se puxava o balde com água para a borda do poço. O sol nunca conseguia descer para se espelhar na água, por muito clara que fosse, mas até onde chegava o seu brilho, crescia a erva entre as pedras. (…)”

Victor Hugo: "Les misérables" com 150 anos

Charles Baudelaire considerou a obra “un livre de charité, un étourdissement rappel à l’ordre d’une société trop amoureuse d’elle-même et trop peu soucieuse de l’immortelle loi de fraternité”.
Referia-se a Les misérables, de Victor Hugo, onde se conta a epopeia de Jean Valjean, já várias vezes adaptada a outras formas de arte. A primeira edição desta obra apareceu faz hoje 150 anos. Um dos livros a não perder e de que se reproduz o início:
“En 1815, M. Charles-François-Bienvenu Myriel était évêque de Digne. C’était un vieillard d’environ soixante-quinze ans; il occupait le siège de Digne depuis 1806. Quoique ce détail ne touche en aucune manière au fond même de ce que nous avons à raconter, il n’est peut-être pas inutile, ne fût-ce que pour être exact en tout, d’indiquer ici les bruits et les propos qui avaient couru sur son compte au moment où il était arrivé dans le diocèse. Vrai ou faux, ce qu’on dit des hommes tient souvent autant de place dans leur vie et surtout dans leur destinée que ce qu’ils font. (…)”