quarta-feira, 26 de junho de 2019

Manuel dos Santos Rodrigues: Romance pelo seminário dentro



Manuel dos Santos Rodrigues dedicou uma boa parte da sua vida ao estudo de uma figura setubalense, Vasco Mouzinho de Quevedo, tendo investigado a sua vida e sobretudo a sua obra, sendo responsável pela mais recente edição dessa epopeia que é Afonso Africano (Setúbal: Câmara Municipal de Setúbal, 2013).
No ano passado, editou o livro de poemas Altar de Pena Escrita, que teve apresentação em Setúbal em Janeiro.
No sábado, 29 de Junho, pelas 18h00, Manuel dos Santos Rodrigues volta à Biblioteca Municipal de Setúbal para apresentar o seu mais recente título, O rubro perfume das acácias, um romance que entra para o corpus das narrativas ligadas à vida do seminário e à condição de padre, com tradição na literatura portuguesa (Vergílio Ferreira, Fernando Faria, Manuel Rodas, Pinho Neno, Francisco Freire, entre outros). A questão do celibato, que sempre tem estado em discussão, domina o romance.
Evento organizado pela LASA. Convidados.

Luísa Ducla Soares em Setúbal



Luísa Ducla Soares dispensa apresentações, tão vasta é a sua obra no domínio da literatura infanto-juvenil. Vai estar em Setúbal, na Biblioteca Municipal, no sábado, 29 de Junho, às 16h00, em evento organizado pela Casa da Poesia de Setúbal. Convidados!

Manuel dos Santos Rodrigues - Ofício poético em louvor da vida



“Não me considero um poeta.” É a primeira frase que salta neste Altar de Pena Escrita, de Manuel dos Santos Rodrigues (Ed. Autor, 2018), que carrega ainda o subtítulo de “Tríptico Poético”. Poucas palavras andadas, uma explicação: “Isto não quer dizer que não tenha momentos, raros talvez, mas genuínos, de sensibilidade poética”. E, logo a seguir: “nesses momentos, com um pouco de habilidade versífera, pode surgir um poema”.
Um poema é um estado, uma técnica, uma voz própria, resulta de um momento, congrega tudo isso? Um poema é o sublime de uma língua que se escreve? Um poema justifica-se? O “prólogo” que Manuel Rodrigues apresenta tenta fundamentar os momentos poéticos que constituem este livro, desde logo assinalando a capacidade metafórica e a alegoria que podem existir nas pequenas coisas - “Um dia, alguém passa e repara naquele pequeno pormenor. Visto ao longe, é massa indistinta na paisagem, mas eis que, tocado pela vista, brilha com um relevo particular, dotado de especial encanto.” A poesia exige então esse movimento que se estabelece entre o “parar” e o “reparar”, daí surgindo a revelação, uma descoberta - “Viesses tu, poesia, / e o mais estava certo”, escreveu Sebastião da Gama, assim como quem diz que a poesia cauciona a graça, impõe a maravilha.
O jeito deste “prólogo” é semelhante ao “imprimatur” aposto pela autoridade para que o livro possa ser publicado, com a diferença de que, aqui, é o próprio autor que o atribui - “Este será o meu único livro de poesia. Valerá a pena? (...) Ainda assim, publique-se.” Quase parece que o autor tem de se pôr de acordo com o poeta que se esconde para que o livro aconteça!
E o autor volta a intervir logo a seguir, agora sob a forma de “Manifesto”, um conjunto de dez quadras em defesa da forma de escrita, em contestação do Acordo Ortográfico, por onde circulam a ironia e a recusa, mesmo o maldizer, em jeito de bengalada mais camiliana que queirosiana, numa brincadeira poética que não pode ser lida sem o acompanhamento da nota que, no início adverte que o autor não segue o Acordo “por o considerar inconsistente do ponto de vista científico e incoerente do ponto de vista técnico”.
Só a partir daqui entra o leitor no caminho do Altar de Pena Escrita, obra que se apresenta organizada em três partes: “Memória”, “Insano Amor” e “O Canto e a Pena”. É obrigatório de imediato associar esta trilogia a três momentos de um percurso - desde “Memória”, o primeiro conjunto de poemas, que nos remete para o tempo mais distante, para os fragmentos que desse tempo ficaram gravados, até “O Canto e a Pena”, a última parte, que nos chama a atenção para o título da obra, a juntar a necessidade da expressão (o “canto” ou a escrita que coroa a vida) e o sofrimento e dificuldade que compõem a vida (a “pena”). A escolha dos títulos para estas partes acaba por ser uma decisão poética que lhes associa os epítetos de clássicos como Plutarco, Anacreonte e Estesícoro e ainda criações mitológicas como Eros (na segunda parte) e Apolo e Hades (na terceira), assim se conferindo um tom alegórico a esta obra.
De facto, o leitor está perante uma obra em que se misturam o autor e o poeta, nisso se estabelecendo um certo pacto autobiográfico, umas vezes mais assumido, outras vezes mais sugerido. Poderemos dizer que este Altar de Pena Escrita é uma autobiografia que se aloja numa alegoria, grande sucessão de imagens que se colam a momentos, a lugares, a gestos. Um exemplo: qual a função das seis histórias que iniciam a primeira parte do livro, sob o título “Fábulas”? As histórias são conhecidas e circulam em todo o lado - a raposa e as uvas, o corvo e a raposa, a rã e a vaca, a cegonha e a raposa, o lobo e o cordeiro, o burrinho e o lobo -, tenham elas chegado a partir de Esopo, de La Fontaine ou da tradução que Bocage de algumas fez. Se as fábulas remetem para os ensinamentos através das narrativas, também nos lembram a simplicidade dos primeiros textos orais e sugerem ainda o tempo da infância. Ora, o percurso inicia-se numa infância, que pode ter uma dupla interpretação: a infância do traçado autobiográfico e a infância da escrita.
Este grupo é ainda constituído por poemas que denotam a aprendizagem veiculada pela via religiosa e por outros em que a prova autobiográfica surge evidente, desde logo pela evocação de Marmelos, a aldeia do concelho de Mirandela em que o autor nasceu, designada por “aldeia pequenina” (em que o adjetivo tem a dupla leitura da dimensão do lugar, por um lado, e a associação à infância - logo a seguir, há um poema, “História de vida”, cujo primeiro verso recorre ao mesmo qualificativo, “quando eu era pequenino”). Outras marcas topográficas povoam esta primeira parte, todas fazendo parte do trajecto geográfico que seguiram os passos do autor, como Moçambique, Lourenço Marques, Ourique ou a terra africana. A estas referências espaciais, estão associadas vivências felizes, despertando alegria e nostalgia, que não é apenas dos sítios, mas também de um tempo, o da infância despreocupada e satisfeita, imaginativa e revivida, como se pode verificar no poema “No meu tempo de cow-boy”: “No meu cavalo de pau / Ia fazendo tau! tau! / Co’a pistola de madeira. / Desta forma, a tauitar, / Via as horas a passar / Sem nunca sentir canseira.” (com a particularidade daquele neologismo inventado para relembrar o poder da voz associado ao gesto de brincar).
A primeira parte conclui-se com o poema “Ocaso”, melódica forma de pôr fim a esse tempo infantil, ainda que passando em revista todos os estádios da vida - o sol vai-se embora com saudades da criança  que “não se cansa de saltar e de correr”, do jovem “a nascer para a poesia”, do par que debica “segredos de amor, do velho que risca com a bengala “como querendo traçar / os passos da sua vida”. Um poema que fecha uma das partes parece congregar um tríptico dos ciclos da vida, assim como se anunciar a continuidade...
A segunda parte, “Insano Amor”, corre sob o signo de Eros e, logo no primeiro poema, não podemos esquecer a imagem de Fernando Pessoa, ainda que sob a capa de Ricardo Reis: “Vem, senta-te junto a mim, / tranquilamente, na margem verde do regato, / e escuta este rumorejar interior...” Reis diria: “Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio. / Sossegadamente fitemos o seu curso (...) / Amemo-nos tranquilamente.”
Alguns poemas fazem ecoar estruturas da lírica amorosa galego-portuguesa, seja pela semelhança temática do questionamento da ausência - “Onde estás, por que não vens?” -, seja pelo recurso ao refrão, que vai deixando um ressoar de sentido no poeta - “Ai, Deus, onde irás tu!”. Outros textos acompanham Camões na sua forma de sentir o amor como algo impossível de definir - “Há uma incógnita pendente / Um não sei quê mal assente / Entre ti e mim.” - ou como algo que faz assumir uma nova identidade - “Concedessem os deuses a quem ama / transformar-se o amador na coisa amada / Unindo os corações numa só chama” - ou pelas ressonâncias de imagens como a do “cativo” de amor. O erotismo afirma-se também por via da invocação dos mestres (Bocage e Camões, de novo, para aqui chamados), demonstrando que a arte da sedução visa também aquilo que será a mais humana reacção - “Não quero honras, não, só quero engenho / Pra levar-te comigo para a cama. (...) / Dou-te versos, em troca peço beijos, / Só por amor construo os meus poemas.”
Este grupo de poemas consagrados à temática do amor e da paixão faz reviver mitos clássicos que lhe estão associados, como o do rapto de Europa, de Hero e Leandro, de Narciso. Por ele transitam também princípios como o “carpe diem” - “simples mortal que sou, sem vã magia, / contente de ir vivendo o dia a dia” -, como o da escrita enquanto momento de celebração - “Flor que eu celebro, em poesia ou prosa, / Acirrado p’la força do desejo.” Ainda nesta parte, é valorizada a dimensão artística da escrita - “Não me apetece / ler ou escrever / ou sequer conversar”, como se estas três acções fossem as mais importantes que dominavam o poeta -, bem como a dimensão autobiográfica (num texto “feito a pedido de um amigo, que, tendo de se ausentar, lhe confiou a sua amada”, o nome do autor aparece registado) - “Pra ti espero um dia regressar, / Mas deixo-te, entretanto, em meu lugar / O bom Manuel, um grande e fiel amigo.”
O texto que encerra esta parte contém um tom algo disfórico ao intitular-se “Poema de fim de Verão”, dominado por verbos que remetem todas as acções para um passado concluído, fechado, mesmo no que aos deuses respeita: “Afrodite sorriu, Dioniso falou, / Eros feriu, esse insano e cruel deus. / O ciclo fechou-se. Resta dizer adeus...”
O terceiro grupo de poemas, “O canto e a pena”, deixa-se dominar pelo par mitológico de Apolo e Hades, a aproximação à luz e à glória, por um lado, e a certeza do sofrimento e da morte, por outro. O poema que abre este ciclo, “Invocação”, sugere aquela parte da escrita épica em que é pedida ajuda às musas para que a arte não falte. Sendo disso mesmo que se trata, o terceto que o encerra afirma-se pelo pragmatismo e por alguma ironia - “Pudera eu ser Camões no grande engenho, / No engenho sim, mas não no triste fado, / Pois penas que me cheguem já eu tenho.” -, embora no poema seguinte, o poeta reconheça a sua modéstia - “Perdoa, pois, ó divina Poesia, / Que a minha oração seja um mero bocejo”.
Nesta secção, o percurso parece ser muito mais autónomo, mais distante do convencional, seja pela mistura do cantar ao desafio com a poesia de José Afonso e de Sophia, seja pela pressão do academismo, que é violentamente recusado - “Poético. Vulgarmente poético. Pouco me importa, / odeio a poesia. Há alturas em que a odeio. Melhor, não / odeio a poesia, odeio as figuras de estilo, a conotação, a / literariedade, a metáfora, essa peste que se mete em / tudo que se presume literário.” A vida do poeta é atrofiada pela cidade e deixa enredar-se nas imagens clássicas do labirinto, da efabulação, dos temas horacianos (retomando Ricardo Reis).
É o momento da aprendizagem dolorosa das incapacidades que governam as vidas, como a invencibilidade do tempo ou o desgaste da memória - “E dói, dói, dói - caramba, se dói! / esta incapacidade de aprisionar a memória, / que o tempo, esse, nem vale a pena tentar pará-lo.”
À medida que o livro se aproxima do final, também a geografia das origens vai ocupando um cada vez maior espaço, numa posição antípoda das referências do início. Aqui, é a procura de lugares míticos, antigos, repletos de simbologia, começando por um “marco miliário”, medidor de distâncias quilométricas ou temporais, cruzando a ponte romana, bebendo na fonte também romana, olhando Vilarinho das Furnas, contemplando ruínas, cumeando uma mitologia própria que se diviniza no Larouco.
Aqui chegados, o derradeiro poema toma o título do livro, justificando-o - é sobre esse “altar” que a obra é posta, seja ela a obra poética, seja o percurso que se conclui. A poesia mistura-se com a braveza, a dureza e a eternidade da pedra - “Em pedra escrevi teu nome, Poesia, / Na pedra dura em que minha alma habita. / Na pedra o escrevi com pena esguia / Na pedra pura do altar de pena escrita.”
Este poema surge como a celebração final, cerimónia de conclusão, prova de que esta escrita outra coisa não foi senão a prova de uma vida - seja ela uma biografia, seja ela uma viagem de aprendizagem da poesia. Não faltam os elementos simbólicos como o sangue e o fogo, elementos fortes para gravar, exprimir, destruir, renovar; não falta o “sacerdote” perante a ara em que ritualiza e oferece a vida em sacrifício poético. E fica a oração final: “Eu te invoco, Poesia, eu te conjuro / Sobre esta pedra dura derrama teu olhar / Aceita minha vida, meu sangue puro / Que deponho na pena escrita deste altar.”
Uma vida que se conta (ou que se alegoriza), um poema que se conclui, um livro que termina. “Viesses tu, poesia, / e o mais estava certo”, dizia Sebastião da Gama. Esta poesia certificou a certeza desta vida.

segunda-feira, 24 de junho de 2019

Bocage: Obra completa apresentada na Biblioteca Nacional



Entre 2004 e 2007, foram publicados cinco volumes da "Obra Completa" de Bocage pelas Edições Caixotim, num trabalho de organização levado a cabo por Daniel Pires. Contudo, por razões editoriais, o projecto da obra completa bocagiana não foi concluído e vários volumes ficaram por publicar.
A oportunidade de ler a obra completa de Bocage surge agora, também organizada por Daniel Pires, em trabalho publicado pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda, projecto que teve o apoio da Câmara Municipal de Setúbal.
A apresentação da obra, a cargo de António Carlos Cortez, vai acontecer em 27 de Junho, pelas 18h00, na Biblioteca Nacional de Portugal.

quinta-feira, 20 de junho de 2019

Frei Agostinho da Cruz na Arrábida: Os poemas do desassossego



Frei Agostinho da Cruz (1540-1619) está a ser tema de comemoração por passarem, em 2019, o quarto centenário da sua morte e, em 2020, os 480 anos do seu nascimento. Estando entre os poetas maiores da literatura portuguesa, a sua obra nunca mereceu um volume de conjunto durante a vida do poeta; só no século XVIII apareceria o repositório dos seus poemas. No século XX, foram os poemas de Agostinho da Cruz significativamente reunidos por Mendes dos Remédios (1918), Augusto Pires de Lima (1941), José Régio (1963) e António Gil Rafael (1994). Já mais recentemente, houve uma seleção de textos seus publicados com um prólogo de Dalila Pereira da Costa (Poemas da Montanha. Vila Viçosa: Serra d'Ossa Edições, 2010) e, no âmbito das celebrações que estão a decorrer, o poeta Ruy Ventura organizou uma Antologia Poética (Évora: Editora Licorne, 2019).

Quando, em 1771, são publicadas as Várias Poesias do Venerável Padre Frei Agostinho da Cruz (Lisboa: Oficina de Miguel Rodrigues), já tinham passado 150 anos sobre a morte do seu autor, que escolhera a Arrábida para passar os derradeiros anos da sua vida. Esta obra vem acompanhada do texto “Vida do Venerável Padre Fr. Agostinho da Cruz”, assinado por José Caietano de Mesquita (“professor de Retórica e Lógica do Colégio Real dos Nobres”), biografia pormenorizada que demonstra a adesão do autor ao espírito do biografado.
Relata Mesquita que Agostinho da Cruz não conseguiu a mudança de Sintra para a Arrábida com facilidade. Homem nada dado a títulos ou a cargos, apenas aos 65 anos aceitou ser guardião do convento de S. José de Ribamar, a instâncias do Provincial franciscano, explicando Mesquita que esta aceitação ocorreu porque o frade “assentou que por este meio facilitaria um despacho, que já de tanto tempo intentava, e era que se lhe desse licença para se retirar à serra da Arrábida, a viver solitário e apartado de toda a comunidade dos homens, de quem achava que nada devia esperar para si.”
A transferência não foi fácil, mas, ainda em 1605, no dia de S. José, Frei Agostinho, depois de renunciar à guardiania (cargo que ocupou por escasso tempo), conseguia a concordância superior. E comenta Mesquita: “Não cabia em si de júbilo Fr. Agostinho por ter alcançado esta felicidade por que tanto suspirava: na sua alma louvava infinitas vezes ao Senhor, dava-lhe repetidas graças de o chegar a tempo, em que só para ele e com ele havia de viver”.
A vida na Arrábida foi de recolhimento nos 14 anos que ali passou (ainda que com alguma curta interrupção), vivendo sozinho numa cela, fora da cerca do convento. Mesquita recorda que “foi visto muitas vezes derramar copiosas lágrimas, outras estar elevado e fora de si, sem dar tino de nada exterior e terreno”, em vida de oração e contemplação, associando-o aos antigos padres do deserto. Esta opção de Frei Agostinho continuou a não ser pacífica, sobretudo para os seus confrades que viviam no convento e discordavam da vida eremítica, mas a sua escolha e prática mantiveram-se inabaláveis.
Em 14 de Março de 1619, Agostinho morria na enfermaria que existia em Setúbal, com fama de santidade - “Espalhando-se pela vila a notícia da morte do servo de Deus, logo pela manhã acudiu à enfermaria grande número de pessoas não só a venerá-lo, mas a cortar-lhe pedaços do hábito, que guardavam como relíquias preciosas com que remediar os seus perigos e moléstias; e chegou nesta parte a tanto o excesso da devoção que foi necessário vestir ao santo cadáver novo hábito para decentemente se poder levar à sepultura”, narra Mesquita.
O relato assinado por Caietano de Mesquita quase decalca o perfil biográfico que, cerca de quatro décadas antes, de Frei Agostinho da Cruz fizera Frei António da Piedade na obra Espelho de Penitentes e Crónica da Província de Santa Maria da Arrábida (Lisboa: Oficina de José António da Silva, 1728-1737) ao longo de três capítulos que incluíram também uma mostra da poesia do frade franciscano (quatro sonetos, duas elegias e glosa a um mote). Relativamente à vida isolada de Agostinho da Cruz, refere Piedade: “Seguindo este varão apostólico as pisadas dos antigos Padres do Ermo, fechava as portas à sugestão dos pensamentos vãos, estando sempre ocupado.” Essas ocupações são mencionadas umas linhas adiante: “Por fugir pois a toda a ruína, que lhe podia maquinar o ócio, se a ele se entregasse, no tempo que lhe restava das suas obrigações e devotos exercícios, se divertia em fazer bordões que dava aos frades e oferecia aos Duques e Duquesas, quando o visitavam. Também pela inclinação que tinha à Poesia, compunha a vários assuntos espirituais muitos sonetos e outras variedades de versos.”
Pelos poemas de Agostinho da Cruz passa o seu desassossego. Não configurando um registo diário, ressalta, contudo, dos seus poemas terem eles sido escritos ao ritmo da vida, dos problemas, das reflexões, da oração. Bem terá ele dito na hora da morte, em jeito de recomendação, segundo Frei António da Piedade: “Não deixo contudo de lembrar aos mortais as angústias desta hora e lhes peço não guardem para ela o ajuste das suas contas, porque se expõem a perigo de as errarem pelo desassossego que padece a alma.” Vítor Aguiar e Silva, nessa obra incontornável que é Maneirismo e Barroco na Poesia Lírica Portuguesa (Coimbra: Centro de Estudos Românicos, 1971), bem considera que, na produção literária de Frei Agostinho da Cruz (como na de Camões, Diogo Bernardes ou Vasco Mouzinho de Quevedo), surge “uma poesia reflexiva, de análise psicológica ou de substância moral, dilacerada por dúvidas, congeminações e conflitos íntimos, que contrasta com a poesia sensorial, grandiloquente, teatral e patética, de teor descritivo e narrativo, que surge com frequência nos autores barrocos”...
Desprezando a vida palaciana, apesar de ter uma amizade forte com nobres, Agostinho exarou numa elegia a razão que o aproximava da Arrábida que o acolhera, aí deixando também, em jeito de testamento, o registo da sua derradeira vontade: “Agora, que de todo despedido / nesta Serra d’Arrábida me vejo, / de tudo quanto mal tinha entendido. // Com mais quietação livre me desejo / nela eu próprio cavar a sepultura, / que não junto do Lima, nem do Tejo. // Aqui, com mais suave compostura, / menos contradição, mais clara vista, / verei o Criador na criatura.” A ideia de para sempre permanecer na serra é retomada no final do poema: “Oh Serra das Estrelas tão vizinha, / quem nunca de ti, Serra, se apartara, / ou quando se partira esta alma minha / da terra, nesta tua me enterrara!” Ainda neste poema, a questão do desassossego sentido pontua num terceto: “Discorrendo dum noutro fundamento, / uma vez me perturbo, outra me indigno, / outra de mágoa pura arrebento.”
A Arrábida, em Frei Agostinho da Cruz, é um encontro último, final, que permite a união com o sagrado, num gesto de absoluta comunhão com o Criador, razão por que nunca desistiu de ver a serra como o seu refúgio, a única via que lhe permitiria chegar às estrelas.
Tão intensa ligação à Arrábida transformaria Frei Agostinho da Cruz no iniciador da tradição literária que tem tomado esta serra como motivo, num percurso que se estende até à actualidade, destacando-se, obviamente, mesmo por razões de proximidade e inserção geográfica, o nome de Sebastião da Gama (1924-1952), que não hesitou em convocar Agostinho da Cruz para os seus poemas em diversas ocasiões, como não duvidou sobre a necessidade de personificar a “serra-mãe”, trazendo-a para tema maior da sua produção poética. A Arrábida afigura-se, assim, como bem disse Teixeira de Pascoaes em conversa com o poeta azeitonense (Jornal do Barreiro: 11.Outubro.1951), como algo de essencial - “A Arrábida é que é o altar da Saudade. Eu pu-lo no Marão porque sou do Norte.” E, quanto a Frei Agostinho, responde Sebastião da Gama: “Esse adivinhou-lhe a essência, que foi como quem diz aos vindouros: Cantem agora. (Ele tinha tanto que falar de si mesmo, tanta amargura, tanta luta a contar!...)”
A Arrábida pinta(va)-se, pois, com as cores do desassossego, tornando-o questão essencial para a existência humana e para o sentir do(s) poeta(s)...

segunda-feira, 17 de junho de 2019

Viriato Soromenho-Marques: Pensar a Europa



A Europa tem sido objecto de reflexão para Viriato Soromenho-Marques desde sempre: quer pelo seu significado cultural e espaço de pensamento, quer pela sua geomorfologia histórica e política. A sua bibliografia sobre a questão europeia é vasta e podem recordar-se, a título de exemplo, obras como Europa: O risco do futuro (1985), Europa - Labirinto ou casa comum (1993), Portugal na queda da Europa (2014) ou Cidadania e construção europeia (2005), obra que coordenou.
A obra de 1993 referida contém um início nada calmo: “Há uma crise que percorre a Europa. Uma crise mais vasta e profunda que a da Comunidade Europeia, que vê os seus alicerces e metas tremerem. Mais sob as vagas da tempestade da especulação bolsista, temos de o confessar, que perante a prolongada comoção de uma guerra balcânica. (...) A presente crise europeia é mais vasta e profunda que a da Comunidade Europeia. Ela obriga-nos a repensar o significado da identidade plural do Velho continente. A avaliar as possibilidades de tantos Estados, Povos e Nações partilharem algumas das tarefas de um destino, quer o queiramos quer não, cada vez mais comum.” Na obra publicada em 2005, Soromenho-Marques insistia: “Numa altura em que tudo parece estar em causa no sistema internacional, desde a questão do terrorismo ao papel das Nações Unidas, passando pela crise global do ambiente, a hesitação no comércio mundial entre portas escancaradas e retorno ao proteccionismo, e a situação de declínio crítico que afecta a política externa dos Estados Unidos, a Europa precisa de vencer as visões paroquiais, olhando para o futuro com ambição e generosidade.”
Cinco anos volvidos sobre Portugal na queda da Europa, novo livro de Viriato Soromenho-Marques surge a questionar sobre o Velho Continente: Depois da queda - A União Europeia dentre o reerguer e a fragmentação (Lisboa: Temas e Debates / Círculo de Leitores, 2019), um conjunto de cinco ensaios, acompanhados de uma introdução e de uma conclusão, obra que, apesar de ter saído uns tempos antes das eleições para o Parlamento Europeu, não suscitou a discussão, porque também a Europa e o seu futuro foram temas que não saltaram para o debate durante toda a campanha.
A abertura deste Depois da queda não deixa o leitor em segurança: “A Europa em 2019 - entendida como o projecto de integração europeia de que resultou a actual União Europeia - já se encontra tombada sobre terra, impossibilitada de se reerguer se as políticas e as instituições que a conduziram até ao chão se mantiverem sem mudanças profundas.” Para o cidadão, os sinais de inquietação são muitos: o distanciamento económico entre países, as desigualdades em cada país, o ignorar princípios básicos da democracia representativa, a chegada ao poder de forças populistas, as disparidades de pensamento (e de acção) quanto aos migrantes e refugiados, a apatia europeia quanto às tomadas de posição relativas à Europa por parte da China, dos Estados Unidos ou da Rússia. Estas seis evidências, acrescidas do “Brexit” e do papel que os “coletes amarelos” têm tido no protesto social, são listadas por Soromenho-Marques e podem constituir o pretexto para o desenvolvimento do seu estudo.
A construção do sistema do euro acutilantemente chamada para a responsabilidade do actual estado, a refundação da zona euro tornada uma emergência, os cidadãos europeus tratados de maneira diferente depois de ter sido “encorajado o processo de declínio dos direitos sociais e económicos” que lhes eram devidos - eis as três linhas dominantes no pensamento desta obra, que surge recheada de elementos trazidos da estatística, dos estudos, dos factos da história recente (e menos recente) da Europa.
O percurso económico da Alemanha pós-1945 e o peso deste país na ideia do euro, a (des)regulação bancária e “um sistema financeiro hiperbólico e labiríntico”, a “crise da dívida soberana” e os interesses nacionais individualistas, constituem o conjunto que dá corpo aos ensaios, cujo final se apresenta com um título em que se confrontam as possibilidades e a insegurança - “Sete certezas na incerteza do futuro europeu”.
Quais são as certezas? Primeira: “a União Europeia só se reerguerá através de uma reforma profunda da zona euro, que a coloque ao serviço de um projecto europeu onde as leis de mercado não devorem o interesse maior da segurança pessoal e da justiça social”. Segunda: “não existe saída ordenada nem dissolução negociável da zona euro”, porque “as regras do euro foram feitas de tal modo que não existe caminho razoável para regressar à situação anterior a Maastricht”. Terceira: “a actual ordem da agonia lenta do euro não será duradoura nem sustentável”. Quarta: “responsabilidade alemã em desbloquear as negociações para a única via possível para impedir a fragmentação europeia: a reforma profunda da sona euro.” Quinta: a divergência entre a manifestação dos cidadãos através da democracia e o espaço “blindado à intervenção dos cidadãos” onde se decide com “consequências materiais efectivas”. Sexta: “nenhum país europeu está em condições de enfrentar melhor sozinho, do que no quadro de uma União Europeia refundada, todos os gigantescos desafios existenciais” da actualidade (ambiente, trabalho, inteligência artificial, segurança militar e direitos humanos incluídos). Sétima: “uma política europeia deve estar ao serviço da protecção e do respeito das diferenças e das distâncias que é preciso salvaguardar e não colocar-se sob as ordens daqueles que querem ‘normalizar’ e terraplanar o que é diverso, e diverso deverá permanecer”.
O contributo da Europa para a paz é um valor em que se acredita, mas também não se pode esquecer que a primeira metade do século XX trouxe à Europa, por responsabilidade dos europeus, uma outra “guerra dos 30 anos”, entre 1914 e 1945, tempo em que a guerra nunca esteve adormecida, tempo em que a conflitualidade se aproveitou da insegurança dos povos.
Forçoso será acreditar que a Europa há de encontrar uma solução. Contudo, a espera não pode conduzir à eternidade. Na base das melhorias ou dos aperfeiçoamentos, estará um princípio que tem de orientar os europeus e os seus decisores, defendido por Viriato Soromenho-Marques quase no fecho do livro: “A política de que os europeus necessitam não é a que promova o amor mútuo, mas sim a que fortaleça o respeito mútuo.”
Esta obra, sem incursões difíceis de entender, é para ser lida. Obviamente por quem se liga à política nacional e europeia. Mas, não menos obviamente, também pelo cidadão português e europeu. Para que sejamos críticos, para que tenhamos argumentos, para que pensemos também na nossa condição de europeus. Talvez este questionar europeu nos torne mais amigos e mais cidadãos da Europa...

sexta-feira, 7 de junho de 2019

Visitar o Calafate (António Maria Eusébio) em Setúbal


António Maria Eusébio (1819-1911) foi cidadão setubalense, teve muitas profissões (em que se destacou a de calafate) e foi poeta (que Guerra Junqueiro elogiou), área em que ao seu nome foi associada a profissão, sendo conhecido como António Maria Eusébio, o Calafate, além de também ter sido reconhecido como "Cantador de Setúbal".
No ano em que passa o 2º centenário do seu nascimento, do conjunto de iniciativas que Setúbal está a levar a cabo, destaca-se a exposição bio-bibliográfica que amanhã vai ser inaugurada no Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal (MAEDS, na Av. Luísa Todi), com inauguração anunciada para as 18h00.
Parceiros desta realização são o MAEDS, a Câmara Municipal de Setúbal, o Rotary Club de Setúbal e a LASA (Liga dos Amigos de Setúbal e Azeitão).
Estão convidados.


Evocar Sebastião da Gama 12 - A Serra-Mãe de Sebastião da Gama


A Arrábida, que Sebastião da Gama baptizou como "Serra-Mãe", na sua relação com o poeta é o tema da crónica que ontem saiu no quinzenário Setúbal Mais (dirigido por Florindo Cardoso) e que aqui partilho.
O mesmo texto foi publicado na edição deste mês do Jornal de Azeitão, mensário que, durante um ano, aceitou a minha colaboração, que agora finda "por motivos editoriais". Aos leitores e ao director do JA, um agradecimento pela atenção que dispensaram.


sábado, 1 de junho de 2019

"O que muitos andaram para aqui chegarmos." - Andanças de exílio para conquistar o horizonte



Deixem-me começar por uma quadra de Daniel Filipe, do seu livro Pátria, Lugar de Exílio (1963): “Pátria, mas terra agreste; / terra, apesar da morte. / Pátria sem medo a leste. / Lugar de exílio a norte.” Esta quadra não entrou no arranjo musical que deste poema fez Luís Cília em 1973, no disco “Contra a ideia da violência”, mas bem podia ter entrado!
Se trago estes dois nomes para começar a falar do livro que para aqui nos convocou - O que muitos andaram para aqui chegarmos (Bruxelas: Poemar, 2019) -, tal deve-se ao facto de Daniel Filipe ser um bom poeta do exílio e ter sido perseguido pela polícia política, como vários dos participantes na obra de que hoje falamos, e ao facto de Luís Cília (que foi incentivado a musicar poetas pelo próprio Daniel Filipe) ter sido uma referência para muitos exilados portugueses, designada e assumidamente para um dos participantes nesta antologia testemunhal, Manuel Jorge Gonçalves, que o conheceu em Paris.
Mas há ainda uma outra razão para terem sido estes versos de Daniel Filipe os escolhidos: é que eles condensam muito do que sobre o exílio se possa dizer em termos de expressão literária - o exilado tem de dar corpo à contradição, vivendo a ausência e assumindo esse estar fora com dor (“Pátria, mas terra agreste” é verso que reúne esse estar preso e estar distante em simultâneo, um paradoxo da existência que vai muito para lá da geografia); o exilado procura a utopia para se salvar (“lugar de exílio a norte” é o verso que bem explica o conforto que Maria Augusta Seixas vai encontrar em Bruxelas, a que chama a “casa dos desertores”, abrigo e porto seguro, ou o paraíso que o já citado Manuel Jorge Gonçalves vai descobrir no país que o acolhe, quando exclama: “Bélgica, terra de liberdade, tão mais progressista e evoluída!”). 
Estão assim projectadas duas linhas de leitura que determinam este livro: por um lado, o registo testemunhal do exílio, vivido e sentido, como experiência dos limites e como risco indispensável para dar corpo à existência; por outro lado, a Bélgica e Bruxelas como unidade de espaço, varanda de ver o mundo e desejar o futuro, comum a todos os intervenientes nesta obra.
O livro conta com dez testemunhos e uma justificação, constando esta no capítulo que encerra o volume, em cujo título se questiona Maria Manuel Gandra: “E as mulheres?” Com efeito, das dez colaborações apenas uma é assinada por uma mulher, Maria Augusta Seixas; contudo, tem razão Maria Manuel Gandra quando refere que elas estão “na sombra, discretas e seguras figuras de segundo plano”, apesar de esse “segundo plano” não estar isento de heroísmo, de luta, de dor, de sonho, afinal os mesmos ingredientes que fizeram mover os homens que por aqui passam - é que praticamente todos os textos são povoados pela figura feminina, independentemente de ser a namorada ou a mãe, a companheira ou a protectora dos refugiados, a mulher humilhada por um agente da PIDE ou aquela que é trazida a Portugal e acaba por se deixar adoptar também pela pátria de exílio do companheiro.
Bruxelas foi encarada como “porto seguro” por todos estes “pássaros de arribação” (metáfora que é usada no curto texto introdutório) depois de um voo rasteiro, demasiado rasteiro para não dar nas vistas, com passaporte falso, sob a protecção das sombras da noite, num itinerário “a salto”, calcorreando estradas de fronteira e Pirenéus, vivendo a insegurança e o medo, tudo numa “rocambolesca viagem para o exílio”, como a classificou Carlos Marum.
No horizonte que ficava para trás, estava a polícia política, estava a guerra colonial iminente e impositiva no trajecto de cada um, estava a militância política e obrigatoriamente clandestina. No horizonte que ficava para trás, estava também um tempo em que, como refere José de Matos, “desconfiança era a palavra que filtrava tudo o que ouvia”. Tão intensa era essa treva do receio de dizer e de pensar que Vítor Ascensão reconhece que, mesmo fora de Portugal, “durante muito tempo, viveu com os pesadelos de medo, de insegurança e fragilidade” e “o sentimento de que qualquer coisa [pudesse]acontecer acompanh[ava]-o”.
A insegurança vestia, muitas vezes, a roupagem da ilusão, obrigando estes actores a um regime de atenção e de cuidado, sobretudo na percepção do perigo, como aconteceu com José Matias, quando lhe apareceu uma personagem a querer formar um grupo para uma invasão na ilha da Madeira, criatura que não era outra coisa senão um informador, um “bufo”, que pretendia chegar ao topo da organização política de oposição com que Matias simpatizava.
No trajecto até Bruxelas, havia a França, com paragem em Paris por tempo variável. Era a oportunidade para encontros com outros exilados, para um olhar já mais higiénico sobre o mundo - recorda José de Matos que entrar em França “foi lavar as roupas bolorentas dos regimes fascistas de Portugal e Espanha”. As ruas de Paris foram também o espaço que permitiu a alguns participarem no Maio de 1968, como foi o caso de José Coelho, que sentiu o fascínio de “ver a liberdade com que aqueles milhares de pessoas se manifestavam a reivindicar uma mudança de um sistema autoritário vigente para um sistema com maiores liberdades.”
Contudo, o apelo mais forte vinha de Bruxelas, ali onde lhes era possível deixarem a clandestinidade e reapropriarem-se da identidade, através do estatuto de refugiado político atribuído pela ONU. A cidade era, além disso, o novo mundo, terra de abundância e de trabalho, de liberdade, onde, depois da fuga de um “país triste, acabrunhado, onde o lindo céu azul de Lisboa parecia cinzento” e “podia desabar na cabeça a todo o momento”, como evoca Maria Augusta Seixas, valia a pena o trabalho (muitas vezes, de sobrevivência), o esforço, numa capacidade de adaptação e de mudança impressionantes, alicerçadas na convicção e na esperança.
Os textos até aqui citados caracterizam-se sobretudo pela marca da memória e do testemunho, num contar da experiência pessoal, vários deles redigidos por outro que não o protagonista do que é contado e um deles sob a forma de entrevista. Ressalta em todos um balanço positivo do percurso feito e a passagem do testemunho à escrita afigura-se como uma forma de reencontro ou de aproximação ou de partilha, como descobre Carlos Melro no final da sua prestação: “Acabei por dizer coisas em que nunca tinha pensado, contei histórias que nunca tinha contado, mas tudo saiu espontaneamente.”
Restam ainda por referir dois textos, o de Diogo Pires Aurélio e o de Fernando Gandra. Não porque o percurso até Bruxelas tenha sido diferente ou porque as dificuldades tenham sido menores, mas porque, na sua concepção, estes dois textos ultrapassam o registo do testemunho e deixam-se impregnar pela literatura.
Diogo Pires Aurélio, ao puxar “Vocabulário do exílio” para título, abre o caminho da liberdade da semântica, selecionando palavras, expressões, acrónimos e datas como “a salto”, “carta”, “clandestino”, “comboio”, “esquemas”, “guerra”, “nevoeiro”, “noite”, “ONU”, “STIB” e “25 de Abril de 1974” para, a propósito de cada uma das entradas, contar a sua história. Cada uma delas adquire um novo significado para lá da marca denotativa que o dicionário lhe confere, da mesma maneira que o narrador, por vezes, é independente da personagem sobre quem conta, um tal D., que se percebe ter sido um empréstimo do autor ou que narrador e personagem se mesclam, como se num vaivém entre os arquivos da memória e os acontecimentos tornados presente. Por estas onze secções passam os momentos de glória e de medo e as pequenas histórias que carregam a marca do desespero do momento; passa ainda a reflexão, em termos muito pragmáticos e em tom de resposta antecipada às conjecturas do leitor, para ajudar a entender atitudes que só existiram por causa das circunstâncias, por causa do sofrido.
“Porque não há vento?” é a questão trazida para título por Fernando Gandra, num texto de metáfora forte, enveredando por uma escrita poética, de imagens intensas, em que o leitor é logo desafiado a observar a gare de Austerlitz, onde passam “milhares de portugueses numa aflição calada” ou, depois, levado até Bruxelas, onde “a saudade é uma lâmina sangrenta que nada pode contra a inflamação do longe”. Mas o texto rapidamente adquire um tom épico ao enumerar as razões que os candidatos ao estatuto de refugiado político apresentavam, chamando as razões de um colectivo, que vão configurando também o retrato da alma de um país (se é que ela não estava também em fuga!): “fugimos do Cais de Alcântara e dos seus lenços de adeus até ao meu regresso que era os mesmos que acenavam na Cova da Iria altar do mundo (...) / fugimos da naftalina e do quanto mais me bates mais tenho ciúmes e anda encosta o teu peito ao meu / (...) / fugimos dos raciocínios do contumaz almirante Américo que sofria de microcefalia (...)”, etc. No total, dezoito recorrências anafóricas, todas pintando um país que fora abandonado e era satirizado em cada um dos motivos apresentados.
Numa segunda parte, o texto de Fernando Gandra aproxima-se da escrita biográfica, traçando o seu perfil na terceira pessoa e concluindo com a afirmação da identidade da actualidade: “Anos depois, cansado da bruma, optou pelo sol e dedicou-se exclusivamente à escrita, a sua vocação de sempre.” Um terminar que justifica o rasgo literário posto neste texto de memórias!
Mas até onde se projectava o horizonte de todos estes intervenientes e autores e actores dos seus percursos? Esse horizonte, que a utopia prometia e que a luta pela vida caldeou, foi comum a todos eles, cristalizado numa data repleta de promessas e de esperança: o 25 de Abril de 1974. Fernando Gandra refere que esse dia fez com que tivesse “terminado o Portugal teologal”; José de Matos não consegue descrever o que sentiu, apenas “uma alegria, uma coisa grande”; outros revelam que acreditaram com reservas; outros viveram o dia normal de trabalho, porque tinha de ser e talvez porque fosse preciso ver... Mas aquela quinta-feira acabou por tocar todos, uns com a ânsia de regressarem, outros observando a distância, uns a querem descobrir a diferença possível relativamente àquilo que tinham deixado, outros a assumirem a continuidade em Bruxelas... no entanto, sempre com a ideia de que o horizonte tinha sido conquistado.
Enfim, O que muitos andaram para aqui chegarmos. é um repositório intenso de emoções e de humanidade, um bom retrato do exílio na literatura, um contributo para mapear as distâncias entre o país triste que foi abandonado e o país reencontrado. Vale por isso este livro, mas vale ainda, e sobretudo, para percebermos que o “aqui” que se afirma no título é o sinónimo do “hoje” e do nosso estado, possível pelo que outros, muitos, andaram e lutaram, registo que a memória deve ajudar a ser incorporado na nossa identidade para que o presente valha sempre a pena, não apenas porque estamos cá, mas porque ele foi construído também por aquilo que muitos andaram.

(Na apresentação do livro, em 30 de Maio de 2019, na Fundação José Saramago, em Lisboa)