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sábado, 11 de julho de 2015

António Cagica Rapaz - A memória e a identidade nas crónicas



É reedição recente a obra Noventa e Tal Contos, de António Cagica Rapaz (1944-2009), que a Câmara Municipal de Sesimbra levou a cabo, quando passam quinze anos sobre a primeira publicação. Na verdade, trata-se de noventa e sete textos, que o próprio autor, em nota de abertura, hesitava em classificar quanto ao género: “não sei se são contos, se são crónicas, memórias, olhares ou retratos”, para logo acrescentar “se calhar é um pouco de tudo isso ou nada disso”, porque, “no fundo, são simplesmente coisas que, ao longo dos anos, fui buscando no sótão desarrumado que é esta minha cabeça e que fui escrevendo, ao correr da pena que tenho de não saber fazer melhor”.
E, na verdade, assim é. Os textos respeitam a modalidade da crónica pela sua extensão, pela forma de tornar actuais muitas histórias, por se cruzarem com o quotidiano de personagens com as quais o autor também se cruzou, por partirem para pequenas reflexões sobre a memória e as formas de vida, os exemplos, as convivências, os tempos. Havendo apenas um dos textos sem data, os mais antigos remetem-se para 1972, com publicação no jornal Record, enquanto os mais recentes surgem datados de 2000.
O estilo de Cagica Rapaz é vivo, intenso, medido ao pormenor, eficaz, levando o leitor a comungar os instantes e as situações, a viver aquilo que o próprio narrador quer fazer reviver. São histórias de Sesimbra, das suas gentes, do sítio. São narrativas de tempos recuados, assentes na infância do seu contador, que vogam até às figuras que fizeram parte do seu universo e que povoaram o tempo e a geografia entre Caixas,  Cotovia e Sesimbra. São relatos que vivem sobretudo pela sua humanidade, pelas relações que tal evocação gera entre as pessoas, todas protagonistas de vidas e da vida do narrador, que nunca se esconde atrás de um memorialista distante, antes insiste em tornar presentes os momentos que sentiu e as personagens que os condimentaram, sempre levado por um apego à terra, uma Sesimbra em que a paisagem tem de ser dominada, sem dúvida, pelo mar – “O mar e os barcos fazem parte da nossa vida, dos nossos sonhos. Por isso, no campo, mesmo sem searas a ondular, nos parece ver barcos onde, afinal, só há uma casa cercada por um muro pontiagudo, à beira da estrada.”
A pouco e pouco, ao longo da quase centena de crónicas, o autor vai revelando o seu propósito: vencer o tempo, revivendo-o pela memória, que se torna escrita. É assim que, poucas páginas de leitura volvidas, o leitor começa a entrar no desvendamento do porquê desta escrita: “foi-se o tempo, fica-nos a fantasia e a memória vacilante…” Um pouco adiante, ao fixar o retrato de uma personagem, um pouco mais de confissão – “é o passado que penetra o presente com ingénua autenticidade”. As histórias vão-se acumulando e, uns encontros à frente, é dito que “ficam as recordações aqui e ali reavivadas”. Já quase no final desta colectânea de crónicas, uma surge em que o autor cimenta o seu gesto de caminhar pela memória – refere-se à colaboração de António Lobo Antunes num periódico, entretanto recolhida sob o título de Crónicas, que, relidas, merecem de Cagica Rapaz a seguinte reflexão: “Sentimos quão vivas estão as recordações da infância, a ternura com que fala dos familiares, dos amigos, dos lugares, das coisas e de um tempo.” O leitor percebe que este narrador sente a felicidade da identificação, que cauciona o seu trajecto, mas, num gesto de simplicidade, conclui, linhas adiante: “Desta leitura acabei por extrair uma satisfação adicional que é o paralelismo que, vagamente, a espaços, a grande distância qualitativa, me atrevo a vislumbrar entre algumas das suas crónicas e um ou outro dos meus pobres escritos.”
A dimensão pictórica no traçado das personagens é intensa em António Cagica Rapaz, como se pode ver pela descrição de memória que faz de Maria Amália, sua familiar, impressão que quase nos remete para Arcimboldo: “Com os meus oito ou nove anos, eu via nela um fruto autêntico da terra, feito de trigo maduro, de sol cor de romã, de uva generosa, de bom pão amassado com amor e cozido em forno de tijolo moreno”. Impressionante também é a caracterização de uma outra personagem, que se manifesta em vários textos, o padre João, a quem está associada uma construção literária – “foi, para todos nós, o senhor abade das aldeias poetizadas do Júlio Dinis” –, resultante de um retrato todo ele eivado de sentimento – “felizmente, acima dos dogmas rígidos e tenebrosos, havia o Padre João, com a sua bondade, a sua jovialidade, a sua ternura, o seu sorriso cativante, a calorosa cumplicidade que estabelecia connosco”. Intenso também é o passeio na memória através de uma professora, Auzenda Pereira, que leccionava Francês no Liceu de Setúbal no início dos anos 60 e revelou aos alunos os caminhos da beleza e da arte – “Pessoas como a Dona Auzenda acompanham-nos ao longo das nossas vidas, ensinando-nos a apreciar as coisas bonitas da existência, com amor e o mesmo tacto poético com que nos levava pela mão através dos campos da Provença, em manhãs de evasão na biblioteca acolhedora do velho Liceu…” O recorte no tratamento das personagens é fino e sensível e assistimos a um desfile que integra o sapateiro, o pescador, o condutor do autocarro, o barbeiro, os amigos do café, aqueles que chegam e se deixam tornar íntimos de Sesimbra (terra de recepção também) e todos quantos acabam por fazer parte de uma vida, de uma comunidade, com ligação aos sítios (o café, a praça, a praia, o campo), aos momentos (a infância, a escola, a igreja, o futebol, as festas) e aos afectos. No fundo, são os contares do que alimentou o quotidiano, do que foi a epopeia de cada um – não por acaso, será a propósito da narração da matança do porco que o narrador dirá que, nesse dia, “se escrevia mais um capítulo dos muitos que compõem a epopeia do campo”…
Se dúvidas tivéssemos quanto ao que motivava António Cagica Rapaz nestas crónicas, o mistério seria desfeito por este curioso parágrafo que registou no texto “Omar” (designação vinda de poeta persa do século XI, evocado por Amin Maalouf), de 1999: “O que resta da nossa urbe é o olhar melancólico que alguns teimosos palermas, como eu, teimam em pousar sobre Sesimbra, tentando descobrir, desenterrar, trazer à superfície restos de beleza, de poesia, do encanto do passado.” E, quase no final do livro, mais um contributo para ajudar a desvendar o porquê destas evocações: “continuaria a fazer o que faço com as pessoas de quem gosto, evocando-as aqui e mais logo, por isto, por aquilo, como quem diz adeus de longe, do muro da lota…” Duzentas e poucas páginas de um livro que, dizendo adeus, traz o passado até ao presente, assumindo-se como um percurso que (re)constrói a identidade!

Sublinhados
Felicidade – “Se calhar, a felicidade é apenas meia dúzia de horas felizes, momentos espaçados e fugidios, uma sensação de paz, uma ilusão de eternidade, um riso de criança…”
Vida – “A nossa vida é um filme de que somos actores, de que nos julgamos realizadores e do qual, muitas vezes, somos apenas espectadores incapazes de interferir, impotentes para reagir.  Até ficarmos sozinhos na sala escura quando toda a gente já saiu, olhando para o relógio. Lá fora, na rua, já começa outro filme, outras vidas. Ou talvez seja apenas o mesmo filme que continua, em trinta e uma partes…”
Outro – “Andamos anos a cruzar-nos com pessoas de quem gostamos, a falar-lhes de raspão, ao dobrar a esquina, e não somos capazes de arranjar tempo para elas, para nós, para estarmos juntos, sempre a deixar para um qualquer dia que, quando e se chega, não é o que sonhámos. (…) Importante é gostarmos das pessoas e das coisas, sermos capazes de partilhar sentimentos e emoções.”
Escrever – “Escrever não é indispensável, faz parte das coisas supérfluas. Ninguém morre se não escrever e todos passam sem ler. Apenas acontece que alguns de nós, com ou sem razão, com mais ou menos jeito, julgam ter coisas para dizer. E escrevem. Por gosto, com paixão, por amor, escrevem.”

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Mia Couto - cinco excertos sobre a língua portuguesa (que nos une)


Na edição da revista Tempo Livre deste mês (Lisboa: Fundação Inatel, nº 238, Junho de 2012), é publicada entrevista de Mia Couto a Humberto Lopes em que são abordadas questões da literatura, da lusofonia, de Moçambique, do acordo ortográfico e da identidade. Aqui registo alguns excertos.
CPLP – “Qualquer organização que junta países que estão tão distantes tem que enfrentar [um] processo [que] tem que ser olhado com verdade. O que me faz aflição é que há quem pense que ela já está criada… E ainda não está, tem que nascer… Falta nascer no sentido em que essas organizações têm que nascer várias vezes… e têm que estar no lugar certo. Por exemplo, acontece qualquer coisa na Guiné ou em qualquer um desses países da comunidade e tem que se perceber como é que ela é útil e que conquistou um lugar.”
Países de língua portuguesa – “Esses países têm uma expressão diversa, são países que, sendo de língua portuguesa, têm outras línguas, têm outras maneiras de respirar e de pensar que têm de ser consideradas de forma inclusiva, que não se podem marginalizar. E isso significa pensar de todas as maneiras possíveis, económica, etc… Como fazer dicionários, como fazer trocas em que estas línguas falem realmente com o português, dialoguem com o português para que qualquer cidadão destes países possa saltitar entre as duas línguas, a materna e a língua portuguesa.”
Acordo Ortográfico – “O Acordo Ortográfico mexe com uma coisa tão pequenina, mexe com a ortografia, e a minha reinvenção não se opera exactamente aí… É um acordo que unifica tão pouco que não me parece que seja motivo para eu me preocupar… Acho que foi pena, sim, não se ter discutido coisas que eram bem mais importantes, como aquilo que são os nossos laços culturais e as distâncias das políticas culturais.”
Escrever – “As explicações que eu dou sobre as razões por que é que eu escrevo são sempre inventadas. E eu estou sempre a pensar em coisas novas porque não só uma explicação, há várias explicações disso que é a apetência de eu escrever, de criar e de fazer poesia. Mas eu acho que eu sou um escritor do território da poesia, essa é a minha casa. A prosa é uma viagem que eu faço para voltar, para sair de casa e voltar a casa.”
Linguagem – “A linguagem não serve só para descrever o mundo. A linguagem deve ter também uma função de o criar, uma vez que o mundo é sempre o resultado de um olhar, e de um olhar que é muito pessoal, que é sempre uma obra de reinvenção.”

sábado, 31 de dezembro de 2011

George Steiner e Cécile Ladjali: o prazer de ensinar

Em 2001, Cécile Ladjali publicava Murmures, antologia de poemas feitos pelos seus alunos de uma escola nos arredores de Paris. No ano seguinte, publicaria Tohu-Bohu, um texto dramático devido também à escrita dos seus alunos. Uma das particularidades do primeiro título resulta do facto de ter sido prefaciado por George Steiner e de ele mesmo ter acompanhado a feitura desse livro.
A aproximação entre Ladjali e Steiner levou a que, em 2003, surgisse uma obra resultante do diálogo dos dois, mantido em programa radiofónico, intitulada Éloge de la transmission – Le maître et l’élève, mais tarde reeditada no formato de bolso (Col. “Pluriel”. Paris: Hachette, 2007).
Se a ideia do livro é interessante, mesmo porque não se está perante uma simples entrevista, mas em presença de uma conversa, já o facto de o prefácio, da autoria de Ladjali, ocupar quase um terço do volume é algo fastidioso, ainda que com interesse para o leitor perceber a relação estabelecida entre esta professora, Steiner e os seus alunos. Assim, o leitor tem necessidade de chegar rapidamente ao diálogo entre os dois intervenientes, segmentado em sete capítulos: “Éloge de la difficulté”, “Créer à l’école”, “Grammaire”, “Le professeur”, “Les maîtres”, “Les classiques” e “Dans la classe”.
O que serve de pretexto a Ladjali é a experiência vivida com os seus alunos no projecto da escrita e de leitura de clássicos, sendo equacionado o papel do professor, bem como a recepção dos alunos. Da conversa entre estes dois interlocutores, ficam pistas para reflexão e peças para um “puzzle” que mais não é do que o desafio de ser professor, algumas delas aqui apresentadas por ordem alfabética do tema:

Clássicos – «Il n’est pas si facile de comprendre comment s’opère la transmission et pourquoi des textes millénaires  n’ont rien perdu, pour certains, de leur provocation et de leur vitalité, de leur puissance de choc. Mais le classique peut aussi naître aujourd’hui. (…) Un classique survit à toutes les bêtises.» (GS)
Ensinar – «Goethe a dit: “Celui qui sait faire fait. Celui qui ne sait pas faire enseigne!” Et j’ajoute: “Celui qui ne sait pas enseigner écrit des manuels de pédagogie.”» (GS)
Falar – «Parler, c’est respirer, c’est le souffle de l’âme. La parole est l’oxygène de notre être. (…) Chaque cliché est la morte d’une possibilite vitale, chaque belle métaphore ouvre littéralement des portes sur l’être.» (GS)
Função do professor - «Quelle pourrait être, de nos jours, la fonction du professeur?» (CL) «Un certain martyre. Sans aucun doute, il y a des difficultés, des souffrances, des collapses. (…) J’ai toujours dit à mes élèves: “On ne négocie pas ses passions. Les choses que je vais essayer de vous présenter, je les aime plus que tout au monde. Je ne peux pas les justifier. (…) Si l’étudiant sent qu’on est un peu fou, qu’on est possedé par ce qu’on enseigne, c’est déjà le premier pas. Il ne sera pas d’accord, peut-être va-t-il se moquer, mais il écoutera. C’est le moment miraculeux où le dialogue commence à s’établir avec une passion. Il ne faut jamais essayer de se justifier.» (GS)
Imagem da Escola – «Une très grande place accordée aux classiques et à l’apprentissage par cœur, une manière presque physique d’ingérer une culture pour mieux la vivre et, au centre de l’édifice, la figure du maître.» (GS)
Literatura – «Ce qui compte avant tout, c’est l’étonnement, l’espèce de transe qui nous prend quand on est mis en contact avec l’étrange et le merveilleux. C’est terriblement didactique tout ça.» (CL)
Mestre – «C’est tout simplement quelqu’un qui a une aura quasi physique. La passion qui se dégage de lui est presque tangible. (…) Celui dont même l’ironie vous donne une impression d’amour.» (GS)
Resultados – «Nos élèves sont terriblement pragmatiques, ils veulent constater des résultats tout de suite.» (CL)
Segunda língua – «On devrait depuis la première enfance, enseigner une autre langue. Depuis la toute première enfance, l’enfant devrait avoir deux langues, ce qui rend impossible une certaine étroitesse d’âme, un certain dédain pour autrui. Mais c’est un idéal, une utopie.» (GS)
Silêncio – «Rien n’est devenu plus luxueux aujourd’hui que le silence.» (GS)
Sonhos I – «C’est dans les premières années du secondaire que se joue le drame le plus complexe, qui est celui de faire croire à l’enfant qu’il y a des rêves, des transcendances éventuelles possibles.» (GS)
Sonhos II – «Si nous ne pouvions rêver – et rêver est une forme de futurité –, il n’y aurait vraiment que la clôture de la brieveté et de la médiocrité de nos petites vies personnelles.» (GS)


E, a rematar: que recompensa possível para um professor? Responde e pensa Steiner, recorrendo ao exemplo da sua vida de mestre: «Il peut donner une terrible aigreur, mais il y a une récompense suprême, qui est de rencontrer l’élève beaucoup plus doué que soi-même, qui va avancer bien au-delà de soi-même, qui va peut-être créer l’œuvre qu’un prochain enseignant va enseigner. Ça m’est arrivé quatre fois dans ma vie. C’est énorme comme chiffre sur cinquante ans d’enseignement. Quatre fois, c’est déjà beaucoup. Ça, je vous jure, c’est une récompense infinie.»

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

António Oliveira e Castro: "Tambwe" ou o mundo pelos olhos de Eugénio

O mais recente romance de António Oliveira e Castro, Tambwe – A unha do leão (Lisboa: Gradiva, 2011), com ilustrações de Nuno David, é uma história que prende o leitor ao trajecto de uma personagem como Eugénio, figura que, ora procura a morte, ora assume o seu trajecto sozinho, ora peregrina até às raízes. A história é intensa e o leitor é convidado a passar por paisagens diversas, europeias (Portugal, França) ou africanas (Angola), por corredores diversificados de uma sociedade que nem sempre se rege pelos melhores princípios, convivendo com figuras da baixa política, com revolucionários, com mercenários, e tendo momentos de paragem, também fortes, em pensares de tempos de solidão ou em reflexão com figuras que constroem e se alojam na identidade.
É uma história dramática, em que o narrador dialoga com o leitor, tentando convencê-lo da verosimilhança das situações e levando-o a pensar a actualidade, o papel da política, o encaminhamento do mundo, o ser cidadão. É uma história dolorosa, com desvios e demandas, mortes e utopias, caos e ordem, poesia e horror, em que a liberdade e a prisão coexistem e a fragilidade do mundo e dos sistemas é posta à prova. É a história de uma solidão sempre e sempre testada, numa fuga ao tormento.
Sublinhados
Palavras – “As palavras, por maior que seja o seu conteúdo, não têm peso, sustentam-se de aparentes levezas, da aragem dos êxtases.”
Mistério – “Nem sempre o universo do homem se pode resumir ao encontro com a razão, na equação entram outras incógnitas, indecifráveis e misteriosas.” 
Faltas – “O que mais há na terra é paisagem e o que mais falta é o amor.”
Escrever – “Nenhum escritor escreve sobre acontecimentos insignificantes, procura sempre o lado sombrio, sujo, sanguinolento, colérico e escondido do Homem; descreve os campos de batalha onde se fuzilam os inocentes e assinam acordos de paz com os generais; o artífice da palavra relata, com a emoção de que é capaz, a loucura dos heróis, o medo dos cobardes; leva-nos até aos que jazem, na agonia da morte, debruçados sobre a terra que lhes escuta o lamento; faz-nos tropeçar nos corpos dilacerados que se espalham sobre os degraus dos edifícios em ruínas.”
Amor – “O amor é um fenómeno muito mais complexo que a morte; enquanto um regenera, o outro remete para o esquecimento.”
Vida – “Mesmo a vida mais verdadeira não passa do resultado do acaso, a que só a fé dos homens confere normalidade.”
Gerações – “O mundo acaba apenas para velhos que já não são capazes de se transformar, continua para os jovens generosos e sonhadores, que precisam de mudança.”
Futuro – “Nada, nada mesmo, obedece à lógica; apenas a aventura, o perigo, o risco, o sucesso imprevisto comandam o futuro.”
Castigo – “Os castigos são sempre subjectivos. Dependem de quem está no poder. Herói se vencer, traidor se for derrotado.”
História – “A história despreza os seus actores, reescreve-lhes o drama a seu bel-prazer; a qualquer instante pode matar num jogo de contradições, de paradoxos, de ironias, de injustiças; oportunista, caminha sobre uma estrada de cadáveres.”
Guerra – “A guerra não distingue os homens; tanto se lhe dá que sejam honestos ou assassinos, jovens ou velhos, pouco lhe importa que se encontrem exaustos ou frescos. Aliás, a violência tem especial predilecção pelos mais incautos, pelos mais fracos.”
Actor – “Apenas quando encarnam personagens que um qualquer dramaturgo inventou, os actores são belos, sedutores, insuspeitos, assim que abandonam o palco e a ribalta regressam à miserável condição humana que os agasalha.” 
Pátria – “Para que precisamos de nações? Os cidadãos precisam é de paz!”
Povo – “A história dos povos tem as suas regras, o seu tempo lento, mas as mudanças são muito mais definitivas quando a violência da guerra se torna conselheira da razão e das emoções.”
Trincheira – “Nas trincheiras, sempre morreram os jovens crédulos, cadáveres  condecorados com a crueldade do martírio. Indiferentes à hecatombe, os proprietários da pátria, latifúndio com milhares de hectares, que fazem crer ser também nossa, oferecem-nos o privilégio de lhes amanharmos o solo, de lhes produzirmos a riqueza.”
Horizonte – “A dimensão dos homens vê-se para onde olham, se para o umbigo, se para a montanha.”
Ambição – “Os homens, quando guiados apenas pela ambição, perdem a noção da realidade, escutam o umbigo quando tudo à volta se desmorona.”

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Acordo Ortográfico na revista "Ler"

A história do mais recente acordo ortográfico ainda está muito mal contada. E, provavelmente, continuará mal contada. Já toda a gente percebeu que a aprovação deste acordo foi uma questão política de significado duvidoso – não foi uniformizada a ortografia entre os lusófonos, são permitidas variações ortográficas diversas mesmo para os lusófonos de um país, as bases do acordo permitem a confusão da pronúncia em algumas palavras, etc., etc.
O ano lectivo vai começar, sendo as escolas o primeiro espaço em que, oficialmente, vai entrar o acordo ortográfico, mas nem todos os manuais foram revistos em conformidade, o que até se compreende. Os periódicos lá têm vindo a aderir ao acordo, num gesto que pareceu inovação – afinal, devem, também eles pugnar pela ortografia –, mas muitos colaboradores não aderem a essa nova escrita e fazem questão de o dizer numa nota em final de artigo.
Poderá não tardar muito e vir aí uma lei proibitiva da ortografia tal como a praticamos hoje… em defesa de um acordo ortográfico que não dá garantias, de um acordo ortográfico que nasceu com o propósito de uniformizar e poupar e acabou como vemos!
A revista Ler, na sua edição de Setembro, vai abordar o tema. E, a adivinhar pela apresentação, promete!

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Gonçalo M. Tavares envia "biblioteca" para leitores de Palmela

Gonçalo M. Tavares passou, a partir deste mês, a partilhar os seus apontamentos de “Biblioteca” com leitores através da Biblioteca Municipal de Palmela, num processo que pode envolver escritos de ambas as partes.
Em cada mês, Gonçalo M. Tavares enviará dois textos inéditos para serem divulgados pela Biblioteca de Palmela. Aos leitores é sugerido que produzam um texto-resposta (que pode assumir a forma de apontamento, poema, desenho, ilustração, etc.), devendo o mesmo ser entregue em qualquer dos pólos da Biblioteca palmelense. Posteriormente, os leitores serão convidados a participar num “Curso de Leitura e Imaginação” orientado por Gonçalo M. Tavares.
Para o mês de Novembro, o desafio parte de textos sobre Alexandre O’Neill, podendo ambos ser encontrados aqui.

sábado, 16 de maio de 2009

Intervalo (14)

Uma aluna enviou-me o texto que segue, já recebido de outro emissor. A informação que acompanha este texto tenta garantir que ele foi realmente produzido e constituiu trabalho apresentado por um aluno numa escola portuguesa. Temos direito às nossas reservas, mas podemos admitir que sim... Não interessam os considerandos nem outras considerações (como diria Gedeão). O texto aí fica... para um intervalo.

O PIPOL E A ESCOLA
Eu axo q os alunos n devem d xumbar qd n vam á escola. Pq o aluno tb tem Direitos e se n vai á escola latrá os seus motivos pq isto tb é perciso ver q á razões qd um aluno não vai á escola. Primeiros a peçoa n se sente motivada pq axa q a escola e a iducação estam uma beca sobre alurizadas.
Valáver, o q é q intereça a um bacano se o quelima de trásosmontes é munto Montanhoso? Ou se a ecuação é exdruxula ou alcalina? Ou cuantas estrofes tem um cuadrado? Ou se um angulo é paleolitico ou espongiforme? Hã?
E ópois os setores ainda xutam preguntas parvas tipo cuantos cantos tem 'os Lesiades''s, q é u m livro xato e q n foi escrevido c/ palavras normais mas q no aspequeto é como outro qq e só pode ter 4 cantos comós outros, daaaah.
Ás veses o pipol ainda tenta tar cos abanos em on, mas os bitaites dos profes até dam gomitos e a Malta re-sentesse, outro dia um arrotou q os jovens n tem abitos de leitura e q a Malta n sabemos ler nem escrever e a sorte do gimbras foi q ele h-xoce bué da rapido e só o 'garra de lin-chao' é q conceguiu assertar lhe com um sapato. Atão agora aviamos de ler tudo qt é livro desde o Camóes até á idade média e por aí fora, qués ver???
O pipol tem é q aprender cenas q intressam como na minha escola q á um curço de otelaria e a Malta aprendemos a faser lã pereias e ovos mois e piças de xicolate q são assim tipo as pecialidades da rejião e ópois pudemos ganhar

sábado, 21 de março de 2009

No Dia Mundial da Poesia, a esperança

A Filomena anda pelos 15 anos e é minha aluna há quase três anos. Gosta de ler e de escrever e, de vez em quando, poeta. Na madrugada de hoje, a propósito do Dia Mundial da Poesia, enviou a muitos colegas e a alguns professores um mail com dois poemas. Escolhi "A Esperança" para aqui reproduzir. Em jeito de oferta e de partilha da escrita da Filomena e por causa da poesia...

Esperança

Na neblina da manhã,
Eu olhei para o céu
E vi esta artimanha
Da minha esperança.
O mundo de hoje,
Na claridade da escuridão,
Esqueceu-se da amizade
E penetrou na solidão.
Mas, no fundo do mar
E nas montanhas esculpidas
Pelo olhar
Das pessoas adoradas,
Pela fama de sonhar,
Há sempre um canto
De amor e solidariedade.
Apesar de caladas
As razões da criação
De esperança,
Há sempre um coração
Disposto a ajudar...
O canto dos pássaros,
O pôr-do-sol,
O mar, o amar
E até o ar puro.
Março de 2007

sábado, 7 de março de 2009

Erros acompanharam o "Magalhães"

É possível que os jogos educativos do computador “Magalhães” – o tal “bezerro de ouro” de que fala António Barreto – contenham instruções repletas de erros de escrita? É. Melhor: foi. Sem bater muito na questão, há um pormenor que me apoquenta sobretudo: como foi possível que essas instruções chegassem às escolas e aos utilizadores sem revisão? Ironia do destino: no fim-de-semana passado, no Porto, a editora ASA promoveu um encontro para apresentação dos novos programas de Língua Portuguesa até ao 3º ciclo, acção em que uma das tónicas apresentadas pelos responsáveis desses programas recaía sobre a insistência que vai ser proposta no plano da revisão de texto (a praticar nos vários níveis de ensino), premente sobretudo quando as novas tecnologias permitem a revisão com facilidade!…
Torna-se óbvio que o erro do "Magalhães" vai ser reparado. Mas este foi um erro que não deveria ter existido. Numa altura em que tanto se questiona a qualidade dos manuais escolares, como é possível que uma ferramenta como o “Magalhães”, com toda a propaganda que lhe tem andado associada, tenha chegado nestas condições, com a língua portuguesa a sofrer tratos de polé?
A questão foi trazida para cena pelo deputado José Paulo Carvalho. O Expresso de hoje reporta-a e, numa breve, fala do tradutor das instruções. É emigrante em França desde os 10 anos, tem a 4ª classe e diz: “O problema da tradução é que nenhum português de Portugal se dedicou a ela”, acrescentando o jornal que “ninguém até hoje reviu a versão que ele criou”. Só quem não sabe os efeitos do afastamento de um falante da sua língua para adoptar outra língua no seu quotidiano pode ter deixado que as coisas assim tenham corrido…
Custa-me que a área da Educação esteja envolvida nisto, tal como me custa ter tomado conhecimento através da net da muito deficiente redacção de um ofício da DREN (estrutura do Ministério da Educação) que, há dias, por aí circulou. Não serão cabalas, não; mas é incompetência em excesso. Pelo menos, linguística. E também de identidade. E a área da Educação deveria estar fora disto.

domingo, 23 de novembro de 2008

Assim, o dia é bom...

"Ela era perfeita, tinha as pétalas lindas, enquanto nós, pequenas gotas de água, éramos desajeitadas e até parecia mal cairmos sobre uma rosa como ela. Tu tens o teu jardim, eu tenho o meu. O meu jardim e o das minhas irmãs gotas é a rosa, mas o teu é diferente, o teu é o planeta inteiro."
Este curto texto saltou-me numa resposta do teste de Língua Portuguesa de 7º ano feito pela A.S., que acabo agora de ver. Tive que partilhar a ideia, a sensibilidade e a beleza. E este gesto de escrita. Coisas lindas que surgem também nos testes! Era pedido que escrevessem um pequeno texto (podia ser apenas uma frase) em que fossem utilizados dois pronomes possessivos...

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

João Ubaldo Ribeiro em 13 sublinhados de “A casa dos budas ditosos”

Americanos – “Americano consegue ser chato e cagar regra até em suruba, são muito piores do que os alemães, que, quando botam coisa no juízo, ficam completamente despirocados e não respeitam regra nenhuma. Nos Estados Unidos há um manual e um curso para tudo e sem dúvida lá muito se trepa de acordo com os manuais.”
Escrever – “Chega ao ponto de muitos débeis mentais se orgulharem de falar como se escreve, como se a grafia não fosse uma tentativa muito defeituosa de engessar as palavras em símbolos metidos a fonéticos, como se se pudesse pedir a um chinês para falar como se escreve, como se a escrita tivesse precedido a fala.”
Feminino – “Viver numa sociedade em que a honra feminina é portada entre as pernas, que coisa mais besta, meu Deus do céu. Mas, não é, não é? Às vezes me dá vontade de fazer um comício. Quantas vidas se perderam, quantos destinos se estragaram, quantas tragédias não houve, quantos conventos não foram abarrotados desumanamente, por causa da honra de tantas e tantas infelizes?”
França – “O que se fala e escreve de merda engalanada na França é inacreditável, eu mesma nunca engoli nada dessa empulhação que confunde ininteligibilidade e chatice com profundidade, nem Lacan, nem Godard, nem Robbe-Grillet, nada dessas merdas, tudo chute e chato, e quem gosta é porque foi chantageado a gostar e, no fundo, se sente burro.”
Ler – “As pessoas lêem romances, biografias, confissões e memórias porque querem saber se as outras pessoas são como elas. Não somente por isso, mas muito por isso. Querem saber se aquilo de vergonhoso que sentem é também sentido por outros, querem olhar mesmo pelo buraco da fechadura e, quanto mais olham, mais precisam olhar, nunca estarão saciadas. Faz bem, é reconfortante.”
Memória – “A gente pensa que lembra como eram as coisas, mas não lembra, há sempre filtros, filtros da memória, filtros das neuroses, filtros do voluntarismo, tudo quanto é tipo de filtro.”
Mistério – “É bom que haja mistérios insondáveis em nossas biografias.”
Palavrão – “É mais fácil dizer palavrão do que escrever palavrão, há exigência de passaporte para as palavras passarem do falado ao escrito, algumas não conseguem nunca, a humanidade é muito estranha.”
Pecado – “Quem peca é aquele que não faz o que foi criado para fazer.”
Religião – “Os católicos são politeístas, botaram os santos no lugar dos deuses especializados. Os gregos e os romanos tinham um deus menor para cada coisa, regras atrasadas, artistas falidos, transações impossíveis, dívidas alimentares, casamentos, músicos bêbedos, agricultores, criadores de cabra, tudo, tudo, tudo. Os católicos substituíram os deuses pelos santos. Os músicos? Santa Cecília. Os ruins da vista? Santa Luzia. As solteironas? Santo António. E por aí, como você sabe. Até lugares. São José de Não Sei Onde? Diana de Éfeso, a mesmíssima coisa. Os deuses não foram derrotados ou eliminados, continuam imortais como sempre foram e somente mudaram de nome, se adaptaram às mudanças.”
Terceira Idade – “Eu abomino a expressão terceira idade, hipocrisia de americano, entre as muitas que já importámos, americano é o rei do eufemismo.”
Verdade – “A verdade dói, a verdade machuca, a verdade contunde, a verdade fere, a verdade maltrata, a verdade mata.”
Vida – “A vida devia ser duas; uma para ensaiar, outra para viver a sério. Quando se aprende alguma coisa, está na hora de ir.”
João Ubaldo Ribeiro. A casa dos budas ditosos. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1999.