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segunda-feira, 12 de dezembro de 2022

Francisco de Paula Borba biografado (1)



O nome de Francisco de Paula Borba (1872-1934), açoriano nascido em Angra do Heroísmo, é conhecido pelos setubalenses através da toponímia (desde 1935), de obra de arte pública (busto, também desde 1935), do balneário e do lar de que é patrono (desde 1926 e 1945, respectivamente). Um esboço biográfico sobre esta personalidade surgiu em 1986, Dr. Francisco de Paula Borba - 1º Cidadão Honorário de Setúbal, assinado por Rogério Claro, obra produzida na sequência do cinquentenário do seu falecimento. Recentemente, a propósito do 150º aniversário do seu nascimento, pela mão de Francisco Moniz Borba, surgiu o título Francisco de Paula Borba - Vida e Obra (1872-1934), obra com apreciável acervo fotográfico que contém ainda documentos interessantes para se conhecer o pensamento do biografado.

Logo no início da narração, o autor procede à sua declaração de interesses, confessando a proximidade com a figura sobre quem escreve, mas também a razão de ser deste projecto, alicerçado nas aprendizagens e no exemplo: “O Dr. Francisco de Paula Borba é meu Avô paterno e esta questão do parentesco dificulta-me naturalmente o indispensável distanciamento para reflectir e escrever com independência sobre a sua Vida e Obra. Talvez por isso, este livro, que sempre desejei escrever, tenha sido um projecto de gestação demorada, pela responsabilidade que decorre desse facto, mas também pela pesada herança do seu enorme exemplo de vida, que me acompanha desde a infância, e que, devo confessá-lo, me ajudou em muitos momentos da minha vida, alguns deles bem difíceis, a aceitar injustiças, a perceber melhor o que é a tolerância e a profundidade afectiva contida na tão gratificante prática da solidariedade.” No termo do trajecto, o narrador não esconde a emoção das descobertas e das memórias, possibilitada pela escrita: “Cheguei ao fim! Se afirmasse que não me emocionei algumas vezes durante a - para mim longa - elaboração deste trabalho, mentiria. A consulta de muitos documentos, a sua reprodução com o objectivo de serem preservados e publicados, foi em certos momentos regressar à infância, ao ambiente onde cresci e onde a diáfana figura do meu Avô pairava no ar que se respirava naquela casa. (...) Sinto uma enorme gratificação de conseguir celebrar o passado e deixar este legado. Graças a Deus! Invade-me uma formidável sensação de liberdade.”

As considerações de Francisco Moniz Borba caucionam uma leitura dominada por três importantes vertentes: primeiro, revelando a importância dos arquivos familiares como fundamentais para a história local e para a investigação, detentores que são de elementos quase únicos que ajudam a construção da personalidade e do papel desenvolvido, além de carrearem informações adicionais sobre aspectos vários da vida da urbe; por outro lado, transportando para a biografia a emoção da proximidade conhecedora, veiculada pelas pequenas histórias do quotidiano lembradas em família, como aquele teste à sua popularidade, que levou um transeunte a impedir a tentativa de furto do velocípede do médico, gritando “Olha a bicicleta do Dr. Borba, agarra que é ladrão, agarra que é ladrão!”; finalmente, porque, no gesto de descobrir o antepassado que nunca conheceu (o nascimento do neto ocorreu sete anos após o falecimento do avô), Francisco Moniz Borba partilha esse desvendar, dando a conhecer essa importante figura a quem chamaram “o amigo dos pobres”.

Durante uma centena de páginas, o leitor acompanha a chegada de Francisco de Paula Borba a Setúbal em 1898 (tendo começado a dar consultas na Farmácia Abreu, depois Farmácia Sartóris), ano em que também concluiu a licenciatura em medicina, e a acção desenvolvida na cidade em prol da assistência e da dignificação das condições de vida.

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 975, 2022-12-07, pg. 14.


quarta-feira, 16 de março de 2022

Bocage pelo olhar de Calafate (1)


 

António Maria Eusébio (1819-1911), poeta popular setubalense, ficou conhecido por “Calafate”, devido à profissão por que optou (contrariando a ideia da mãe), e por “Cantador de Setúbal”, por cantar fado (acompanhado à viola por Josué Ferreira, seu compadre, e à guitarra por Francisco de Jesus, conhecido como “Carga d’Ossos”) e pela prodigiosa imaginação para versejar. Não sabendo escrever, as décimas que produzia eram memorizadas e, depois, ditadas a uma neta ou a amigos, que as transcreviam.

Os seus primeiros versos foram publicados no Jornal de Setúbal, em 9 e 16 de Fevereiro de 1868, por iniciativa de Henrique das Neves (1841-1915). No entanto, só em 1901 voltaria a haver publicação, ainda por ideia de Henrique das Neves, quando surgiu o livro Versos do Cantador de Setúbal. E, ainda nesse mesmo ano, sairia o folheto Tudo e Nada (Reflexões entre um sábio e duas caveiras), conjunto de três poemas construídos sobre décimas, em oito páginas. Provavelmente, foi este o primeiro folheto de Calafate, expediente encontrado para suportar as dificuldades económicas e ajudar na sua autonomia, sem estar dependente dos filhos.

Ignora-se a quantidade de folhetos publicados na última década de vida de António Maria Eusébio - mais de 70, maioritariamente intitulados Cantigas para Guitarra, variando entre as quatro e as oito páginas (vendidos a 10 e a 20 réis, respectivamente), com periodicidade indeterminada, além de mais sete, de cunho autobiográfico, intitulados Recordações da Minha Vida, publicados entre 1904 e 1910, retrospectiva que ficou incompleta, pois as 422 décimas que os compõem apenas relatam a vida do poeta até cerca de 1846. Em toda esta produção, a fórmula mais habitual é a do poema constituído por quatro décimas, que seguem o mote dado por uma quadra, repetindo-se cada verso da quadra no final de cada décima, indo a engenharia dos poemas ao pormenor de repetir o esquema rimático em todas as construções. Os textos destes folhetos foram reunidos por Rogério Peres Claro (1921-2015), seu bisneto, na obra Versos do Cantador de Setúbal (dois volumes em 1985 e terceiro volume em 2008), seguindo o critério da arrumação temática dos textos e desprestigiando o ritmo e o contexto da publicação em folhetos.

O encontro de António Maria Eusébio com a poesia deu-se pelos seus vinte anos, cerca de 1840, e manteve-se pela vida fora, conforme canta numa décima do quinto folheto das Recordações, publicado em 1907, quando tinha 88 anos: “Já ia tomando amor / À musa da poesia / Já cantava e quem ouvia / Já me dava algum valor. / Chamavam-me o Cantador / Foi nome que me ficou / E ainda não se acabou / O nome que vale tanto. / Agora que já não canto / Ainda o Cantador sou.”

Senhor de uma memória prodigiosa e de uma curiosidade incontrolável, ao “Calafate”, os poemas saíam dominados pelo ritmo do fado e povoados pela experiência acumulada numa vida de dificuldades, que tanto lhe servia como fonte para testemunhar e relatar acontecimentos como motivação para reflectir sobre a existência. As temáticas que perpassam pelas suas décimas são diversificadas, um pouco ao ritmo dos acontecimentos vividos e presenciados - factos da vida pessoal, comemorações e festas religiosas, notícias do mundo (sobretudo conflitos internacionais), histórias brejeiras, episódios da vida local (as tramas políticas, as querelas, os costumes, o património), o sentir de classe e o mundo do trabalho, a vida social, reflexões sobre a vida e os valores.

Conterrâneo de Bocage, António Maria Eusébio presenciou vários momentos de homenagem ao vate sadino, razão por que o poeta setecentista não poderia escapar aos versos do “Cantador”.

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 807, 2022-03-16, pg. 5.


quinta-feira, 23 de agosto de 2018

Sebastião da Gama: "Pelo sonho é que vamos" - Um verso que vale uma obra



"Pelo sonho é que vamos" é um dos mais conhecidos versos do poeta azeitonense Sebastião da Gama. Vale falar sobre a expressividade desse verso e sobre a adesão que tem merecido; por isso, aqui reproduzo texto que foi publicado no mensário Jornal de Azeitão, em Julho (n.º 262, 2018-07, pg. 13).
A acompanhar o texto, uma fotografia da pintura mural que pode ser vista/lida na Rua das Oliveiras, no Bairro de Tróino, em Setúbal.


sexta-feira, 15 de março de 2013

Francisco Paula Borba - um benfeitor de Setúbal



Em 24 de Março de 1935 foi inaugurado, no jardim do então Asilo Bocage, em Setúbal, um monumento ao seu fundador, Dr. Francisco Paula Borba, médico açoriano que se radicou na cidade do Sado em 1898 e aí viria a terminar os seus dias em 1934. A escolha da data para a inauguração do monumento revestiu-se de elevada carga simbólica para os que conheceram Paula Borba, porquanto o seu falecimento, ocorrido seis meses antes (em 27 de Setembro), ainda não remetera o nome do clínico para o esquecimento e porque a data de 24 de Março era também a do seu nascimento, que ocorrera em 1872.
Para a homenagem a Paula Borba, a Mesa Administrativa da Santa Casa da Misericórdia de Setúbal fez publicar na edição de O Setubalense de 21 de Março um convite dirigido à população para "assistir a esses actos, afirmando assim, mais uma vez, com a sua presença, a sua grande saudade por quem tão dedicadamente o serviu e a sua admiração e reconhecimento pela obra de assistência" que deixou.
O programa, publicado em outra página do mesmo jornal, abrangeria todo o dia de 24 de Março. Depois de a manhã ser ocupada com uma missa em S. Julião e com romagem ao cemitério, a tarde começaria com a aposição de uma placa toponímica naquela que, a partir dessa data, passaria a ser a rua Paula Borba (espaço que até aí pertencera à rua Serpa Pinto) e haveria ainda lugar para a inauguração do monumento e de uma exposição no Asilo Bocage e para a admissão de uma dezena de internados na mesma instituição.
Em 23 de Março, O Setubalense usou toda a primeira página para assinalar a homenagem ao Dr. Paula Borba, reproduzindo o quadro da autoria do pintor sadino Fernando Santos alusivo ao homenageado. O quadro passaria a figurar no Asilo Bocage, a fim de a presença do seu fundador ser ali sempre lembrada. Em jeito de legenda, o jornal evocava a personalidade de Paula Borba dizendo que em "cada dia que passa mais se agiganta a sua figura". Este gesto levado a cabo pelo jornal conduziu a que a edição se esgotasse no próprio dia da saída, acontecimento que obrigou o jornal a publicar reproduções do quadro alusivo a Paula Borba, cujo produto de venda reverteu a favor do asilo.
O busto, da autoria de Leopoldo de Almeida e assente em plinto arquitectado por Abel Pascoal, foi descerrado por João Borba, filho do homenageado. O Setubalense de 25 de Março referiu que a festa contou com "a assistência de muitas pessoas e com a colaboração das bandas das sociedades Capricho e União Setubalense". Presentes as mais altas individualidades, no busto foi colocada a medalha da cidade pelo representante da Câmara Municipal e, de entre os discursos proferidos, ganhou ênfase a expressão de Botelho Moniz, ao dizer que "a morte havia arrebatado o Dr. Paula Borba, mas o seu coração não morrera".

Luto sobre Setúbal

Várias páginas de diversas edições do jornal O Setubalense foram ocupadas com referências ao Dr. Paula Borba aquando do seu falecimento, ocorrido às 13h30 de 26 de Setembro de 1934. Logo nesse dia, o periódico fez sair uma edição, ocupando a primeira página com a reprodução de um retrato do benfeitor desaparecido e deixando perpassar uma sensação de perda para a cidade e para a população: "Os crepes dum luto rigoroso cobrem hoje a cidade de Setúbal. Morreu o ilustre médico Sr. Dr. Paula Borba, cidadão honorário da cidade e director da Assistência setubalense". O jornalista não escondia do seu público que estava a escrever "debaixo de uma formidável impressão de tristeza". O testemunho dado era comovente, ao mesmo tempo que homenageava as virtudes de Paula Borba. Foi através do jornal, aliás, que a notícia se espalhou, uma vez que, logo que foi sabido o passamento do médico benfeitor, a sede d' O Setubalense colocou bandeira a meia haste.
Instituições como a Santa Casa da Misericórdia, a Sociedade Musical União Setubalense e a Associação Comercial de Setúbal fizeram publicar notas lutuosas a convidar os seus associados a participar no funeral, sendo proposto aos comerciantes que encerrassem os estabelecimentos; o Liceu de Bocage e a Escola Comercial e Industrial João Vaz solicitaram aos alunos e à Academia que se concentrassem nos respectivos estabelecimentos para integrarem o cortejo fúnebre.
No dia do funeral, em 27 de Setembro, O Setubalense voltava a ser quase totalmente ocupado com referências a Paula Borba, fosse através de textos de autores setubalenses, fosse mediante a reprodução de testemunhos colhidos na imprensa de Lisboa. A impressão vivida na cidade pode ser avaliada pelo conteúdo de um parágrafo que funciona como subtítulo na primeira página dessa edição: "O luto da cidade de Setúbal, em homenagem ao distinto médico Dr. Francisco de Paula Borba, não só a enobrece como a dignifica". O jornal procurava tudo relatar, chegando mesmo ao ponto de referir quem tinha feito chegar mensagens de condolências à residência da família Borba, sita na Avenida 5 de Outubro, reproduzindo mesmo o conteúdo de algumas, como a do Presidente da República, Óscar Carmona: "Com a expressão sincera do meu maior pesar, envio a V. Exª as mais sentidas condolências".
Todas as instituições sadinas se fizeram representar nas exéquias de Paula Borba, integrando um cortejo que passou por pontos da cidade a que o extinto tinha estado ligado, com paragens frente ao Asilo Bocage, ao Hospital e ao Asilo Barradas.
As referências ao médico na imprensa prolongaram-se por várias edições e por vários jornais. A ideia de uma homenagem a Paula Borba começou a tomar corpo logo na edição d' O Setubalense de 29 de Setembro, onde era dito que se projectava para 26 de Outubro, quando decorreriam trinta dias sobre o falecimento, "uma grande sessão de homenagem". José Maria da Silva assinava nessa edição um soneto dedicado a Paula Borba, realçando-lhe as virtudes: "tu foste um bom, foste um santo / que a todos socorrias e o pranto / enxugavas ao pobre, dia a dia". No entanto, a grande homenagem viria a ter lugar mais tarde, quando, em Março seguinte, passasse a data de nascimento de Paula Borba.

Biografias

Quando, em 1947, Manuel Envia publicou o seu livro Coisas de Setúbal, o nome e a figura do Dr. Paula Borba tiveram aí direito a uma nota biográfica de cinco páginas. Chegado a Setúbal em 1898, Paula Borba começou por oferecer gratuitamente os seus serviços clínicos ao hospital da Misericórdia. Ao longo das quase quatro décadas que passou na cidade, distinguiu-se pelo apoio médico-sanitário e pela benemerência, tendo obtido o título de "cidadão honorário" de Setúbal em 1927, além de outras menções honoríficas que lhe foram atribuídas. Impulsionador de uma obra assistencial vasta, a sua vida ficaria para sempre ligada à Misericórdia de Setúbal, organismo de que foi, aliás, provedor desde 1917 até à sua morte.
O Asilo Bocage, assim denominado aquando da sua fundação em 1913 graças ao facto de os fundos existentes no Montepio resultantes do remanescente da verba das despesas do centenário de Bocage (ocorrido em 1905) terem revertido para a construção do Asilo (conforme acta que foi publicada em O Elmano, de 13 de Setembro de 1913), passaria, nos anos 40, a deter o nome do seu fundador Paula Borba.
A mais completa biografia deste médico que adoptou Setúbal até hoje publicada é da autoria de Rogério Claro e data de 1986. Dr. Francisco de Paula Borba - 1º Cidadão Honorário de Setúbal é uma narração de cerca de oitenta páginas sobre os feitos públicos do biografado, com referências à imprensa e algumas reproduções fotográficas de documentos alusivos a Paula Borba e à história da cidade. Do retrato traçado ressalta, além da benemerência, o valor da coragem, que na forma como o médico levou até final a sua doença, quer na maneira como se entregou à causa da saúde dos mais desprotegidos em Setúbal, quer na verticalidade com que assumiu as obras a que se meteu. Grande impulsionador do Congresso das Misericórdias que conseguiu trazer a Setúbal em 1932, ficou célebre o discurso feito na abertura, em que disse, referindo-se à obra do Asilo: "Nada se pediu ao Estado; seria perder a autonomia que queremos!" Para Rogério Claro, o nome de Francisco de Paula Borba é o de "um Homem que, não sendo de Setúbal, a serviu como raros, de si e dela deixando memória notável".

[Este texto foi originalmente publicado no Jornal da Região - Setúbal / Palmela, em Julho de 2000. Reproduzo-o hoje, depois de ter ouvido a excelente palestra sobre a figura de Paula Borba feita pelo seu neto, o eng. Francisco Borba, que, num discurso comedido, equilibrando a emoção de biografar um familiar e o rigor da investigação, apresentou muitas pistas para uma mais completa biografia deste açoriano que foi uma das figuras importantes do primeiro terço do século XX setubalense.]

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Albérico Afonso Costa e as datas de Setúbal

Sabe o leitor qual foi o primeiro rei a visitar Setúbal? Ou quando houve a primeira demarcação do concelho de Setúbal? Ou que Nuno Álvares Pereira foi impedido de pernoitar na cidade do Sado? Ou que Setúbal foi a terra onde D. João II casou com Leonor de Lencastre? Ou que navegadores diversos zarparam de Setúbal rumo aos Descobrimentos? Ou que Fernão Mendes Pinto em Setúbal se abrigou quando o barco em que viajava foi assaltado? Ou que uma postura do século XVIII punia quem cortasse árvores no campo do Bonfim com açoite público e degredo para África? Ou que aquele que viria a ser o marido de Ana de Castro Osório esteve preso durante um mês? Ou que, em 1918, militares idos de Setúbal sofreram pesadas baixas na Grande Guerra?
As perguntas são estas, mas podiam ser muitas outras e sobre tão diversas épocas. As perguntas são estas e correm como elementos seguros da identidade setubalense. E a fonte onde podemos encontrar as respostas é-nos trazida por Albérico Afonso Costa, no seu livro História e Cronologia de Setúbal (1248-1926) (Setúbal: Estuário / Instituto Politécnico de Setúbal – Escola Superior de Educação, 2011), com aparato gráfico agradável e facilitador da leitura surgido sob a responsabilidade de outro setubalense, José Teófilo Duarte.
Logo de início, o autor adverte-nos quanto às escolhas – “Numa cronologia, o desafio que está sempre presente é o da opção por este ou aquele acontecimento, no sentido de lhe determinar o significado, de lhe perspectivar as consequências, de o entender no seu todo enquanto elo da corrente histórica.” E o leitor segue, então, esse trajecto, resultante das escolhas feitas no tempo de Setúbal, num desvendar cada vez mais intenso, num querer saber mais e mais, sentindo as pulsações e os ritmos desta beira-Sado.
São quase trezentas páginas de datas e de acontecimentos, divididos em quatro partes – “Setúbal Medieval e Moderna” (entre o 15 de Agosto de 1248, em que abriu ao culto o mais antigo templo sadino, a igreja de Santa Maria da Graça, e o 15 de Dezembro de 1819, dia em que nasceu António Maria Eusébio, o poeta popular “Calafate”, conhecido como o “Cantador de Setúbal”, cujas cantigas mereceram o apreço de muita gente da cultura da época), “Setúbal Liberal” (entre 24 de Agosto de 1820, em que Setúbal assiste à criação de uma Sociedade Patriótica, angariadora de apoios para o regime liberal, e Outubro de 1910, quando surgiu uma greve dos carroceiros locais) e “Setúbal Republicana” (entre o 5 de Outubro de 1910, data de revoltosos e de incêndio na Câmara, e 28 de Maio de 1926, sem reacções ao golpe militar mas com o anúncio de que os trabalhadores da Câmara tinham começado o ano com salários em atraso).
Cada uma das partes é antecedida de um texto introdutório, apresentando resenha sobre o que de mais importante aconteceu em Setúbal nessa época, quase funcionando essas indicações como a estrutura axial da identidade desses tempos.
No final, o leitor pode percorrer uma listagem de bibliografia adequada, bem como um índice analítico (que bem mereceria ter sido mais demorado e completo por constituir um roteiro e um complemento importante numa obra deste género) e cerca de meia centena de páginas de “Iconografia Setubalense”, com reproduções fotográficas de documentos já raros na maior parte dos casos.
Com esta obra, Albérico Afonso Costa retoma uma prática que já iniciara em 1988, ao publicar uma breve Cronologia Geral da História de Setúbal (Setúbal: Escola Superior de Educação), mas dela se distanciando na precisão, quantidade de informação e datas encontradas.
História e Cronologia de Setúbal, radicando numa prática que já teve antecessores como Almeida Carvalho, Manuel Maria Portela ou Peres Claro (nomes que trabalharam, recolhendo e divulgando as datas de Setúbal), passa a constituir, pois, um elemento indispensável para qualquer pesquisa relativa à história local sadina. Não será apenas um repositório de datas, alinhadas com a precisão do calendário, ou um baú de curiosidades; é muito mais do que isso – um documento que se dá a ler com agrado, com discurso acessível e preciso, frequentemente acompanhado de imagens e de textos que funcionam como documentos, uns na versão integral, outros apresentados em resumos. Conhecer a identidade setubalense terá de passar, inequivocamente, por este trabalho de Albérico Afonso Costa – ela está lá, seja no que foi a construção deste local, seja no que foram os obstáculos e adversidades a essa construção, as migrações (ponto de partida ou de chegadas), as acções políticas que a Setúbal vieram ter ou que em Setúbal começaram (ou passaram), as ondas de industrialização, as formas de socialização, o associativismo ou a intervenção cultural.
Setúbal tinha falta de uma obra assim!

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

No centenário da morte do Calafate, o seu busto

"O Rotary Clube de Setúbal vai oferecer à cidade um busto do poeta Calafate - Com o propósito de homenagear o poeta setubalense António Maria Eusébio, o popular Calafate, o Rotary Clube de Setúbal vai oferecer à cidade um busto do referido poeta, tendo o Município escolhido o Largo da Fonte Nova para a localização do citado busto". Esta era uma notícia de primeira página saída a público na edição do jornal local O Setubalense, em 10 de Fevereiro de 1968. Não havia ainda a indicação de data para a cerimónia e o conteúdo da informação ficava-se por aquelas escassas e curtas linhas.
Já por várias vezes em terra sadina fora publicamente manifestada a intenção de enaltecer a figura do Calafate, gravando-a em monumento. O chamado "Cantador de Setúbal", apesar de analfabeto para as estatísticas, foi um óptimo relator da vida do século XIX, que lhe passou pelo verso. O rigor das datas do seu nascimento e falecimento foi estabelecido por Carlos Dinis Cosme em artigo publicado na segunda edição da revista Património (Setúbal, 1984), tendo-se ficado a saber que António Maria Eusébio nascera em 15 de Dezembro de 1819, falecendo "de morte natural" em 22 de Novembro de 1911, cerca de dez meses após o passamento da esposa.
Vários vultos da cultura portuguesa lhe prestaram homenagem. Em 1901, Guerra Junqueiro revelou toda a sua emoção ao prefaciar os versos do Calafate, escrevendo: "Não sabendo ler nem escrever, és um grande poeta, meu ignorante e ignorado cantador de Setúbal." Afonso Lopes Vieira chamou-lhe "descendente dos troveiros góticos". Em 1902, sob a direcção de Paulino de Oliveira, foi publicado um conjunto de textos sob o título Homenagem ao Cantador de Setúbal, contendo escritos de Ana de Castro Osório, Guerra Junqueiro, Manuel Maria Portela, Arronches Junqueiro e João de Deus, entre outros. Fran Paxeco, ao recordar a figura do Calafate, descrevia-o em 1930 da seguinte forma: "Era uma excelente criatura. Arrastava-se, num passo tardo, pelas ruas e vielas do burgo. Entrava nas tascas, mas não bebia. De rosto calmo, faces emaciadas, sofredoras, nada nos indicava a veia do repentista ou do satírico."
Calafate de ofício nos estaleiros dos Mestres António José Taborda e Catalão, nasceu na Rua dos Marmelinhos, actualmente designada Rua António Maria Eusébio em sua lembrança. De memória prodigiosa, fixava os seus versos, que depois ditava para serem escritos. Animava a adega do Paulino cantando seus poemas, acompanhado à viola por Josué Costa Ferreira e à guitarra por Francisco Casimiro de Jesus, conhecido pela alcunha de "Carga de Ossos", seu compadre. De acordo com relato de Manuel Envia, o trio foi ainda actuar "a Calhariz a convite dos senhores Duques de Palmela e perante uma assistência selecta e fidalga".
A mais recente edição dos textos de Calafate, Versos do Cantador de Setúbal (publicada entre1985 e 2008), foi prefaciada por Rogério Peres Claro, que, em longo estudo, revela que "os papéis do Calafate são quase todos dos últimos dez anos da sua longa vida de nonagenário". Os textos eram ditados para a impressão e vendidos através de amigos "que assim o ajudavam, que ele assim o queria para não se tornar pesado ao filho, com quem então vivia".
A partir do momento em que, em 1968, o jornal O Setubalense anunciou a intenção do Rotary Clube de Setúbal, algumas crónicas versaram durante esse ano a questão do monumento a Calafate. Na edição do mesmo jornal de 3 de Junho, Santos Silva, que com o poeta convivera na Irmandade do Santíssimo da Matriz, sugeria que o monumento deveria ser colocado no Largo Teófilo Braga, porque, "depois de Guerra Junqueiro, foi Teófilo Braga quem mais se deleitou com a leitura dos versos do poeta cantador e quem mais o distinguiu", além de que, ligada a esse largo, estava a rua onde "o Poeta viu a luz do dia". No entanto, em Outubro, na edição do dia 19, O Setubalense informava, ainda na primeira página, que o busto ia ser colocado no Parque do Bonfim, "local mais adequado, por oferecer melhor enquadramento estético". Posteriormente, seria anunciada a data natalícia do poeta para a inauguração do monumento, mas a cerimónia só viria a acontecer em 29 de Dezembro de 1968.
A edição de O Setubalense do último dia desse ano noticiava o evento e evocava Calafate, revelando: "ao que parece, nos últimos anos da sua existência, conseguiu aprender a ler à força de ler e fixar os nomes das ruas da sua cidade", o que levou o repórter a concluir que se estava "perante um dos casos mais extraordinários da aprendizagem da leitura pelo chamado método globalístico". A inauguração do monumento, da autoria do arquitecto Castro Lobo, teve a presença do substituto do Governador Civil e dos Presidentes da Câmara de Setúbal (Constantino de Goes), da Junta Distrital (Eduardo Costa Albarran) e da Comissão Distrital da União Nacional (Manuel Seabra Carqueijeiro), além de "numerosos rotários" e de familiares de Calafate como o bisneto Peres Claro e a sobrinha Luísa Claro Braga, tendo esta última procedido ao descerrar do monumento.
A obra mantém-se na zona central do Parque do Bonfim, a evocar o homem e o poeta. Pelos seus versos passaram, em simultâneo, a filosofia que explica a vida e a sátira que a vida merece, como bem se pode ver na décima que se reproduz: "Já vi varões sem firmeza, / fidalgos sem fidalguia, / senhores sem senhoria / e morgados sem riqueza. / Já vi pobres sem pobreza, / mestre sem ter aprendiz, / taberneiro sem ter giz, / soldado sem ter capote. / Mas padre andar de chicote / só ao prior da matriz." Verdades profundas da sociedade nos oito primeiros versos e chiste nos dois versos derradeiros, que se referem, segundo Fran Paxeco, a um padre de Alcácer que o poeta "vira, de vergasta na mão, num dia de feira".
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O centenário da morte de António Maria Eusébio, o "Calafate", passou anteontem, data em que, na Biblioteca Municipal de Setúbal, foi inaugurada a exposição bibliográfica "António Maria Eusébio: o Calafate entre a Monarquia e a República", que ali poderá ser vista até 17 de Dezembro. Entretanto, também a agenda editada pela Câmara Municipal de Setúbal, Guia de Eventos, deste mês (nº 80), dedicou três páginas ao poeta.

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Inês Gato de Pinho, "Vilegiatura Marítima em Setúbal"

O que poderia ser Setúbal se tivesse sido dada continuidade àquilo que, no início do século XX, se prefigurava na margem do Sado como uma estância balnear? A resposta pertencerá a uma espécie de história virtual, mas a pergunta pode ser feita com toda a legitimidade se pensarmos no complexo que ali existiu a cargo da Empresa Setubalense de Banhos e se quisermos especular a partir da forma como se conclui o livro Vilegiatura Marítima em Setúbal (Setúbal: Liga dos Amigos de Setúbal e Azeitão, 2010), de Inês Gato de Pinho, quando a autora regista: “Resta-nos reavivar a memória de um período pouco documentado e deixar em aberto a reflexão sobre o futuro que Setúbal teria como estância balnear.”
No final do século XIX, Setúbal era um destino de férias, motivado por condições climáticas e pelas suas praias (umas e outras excelentes), recomendado pela medicina e pelos publicistas (destacando-se, neste último grupo, o nome de Ramalho Ortigão, autor de obras como Banhos de Caldas e Águas Minerais, de 1875, e As Praias de Portugal, de 1876, ambas sugerindo sítios saudáveis de Portugal).
Sendo esta vocação sadina uma área mal conhecida na história setubalense, Inês Gato de Pinho consultou autores da época, como Arronches Junqueiro ou o próprio Ramalho Ortigão, leu recortes jornalísticos da Gazeta Setubalense ou de A Folha de Setúbal, cruzou informações trazidas pelas investigações de Rogério Peres Claro e de Carlos Mouro, por fotografias e postais da época, verificou processos e projectos de arquitectura, e reconstruiu o que seria Setúbal enquanto cidade acolhedora de turistas nesse início do século XIX.
O leitor pode assim circular no Passeio do Lago, ao mesmo tempo que lê os conhecimentos da altura ou que passa os olhos pelos escritos de Paulino de Oliveira, pode contemplar a paisagem já centenária e sentir o olfacto invadido pela labuta piscatória, venha ela do afã com que as redes são tratadas ou dos odores que ressaltam das fábricas de conservas de peixe, pode mirar as páginas da revista social Ilustração Portuguesa, pode penetrar no luxo que dominaria o Cais do Trindade ou vaguear pelas alas do estabelecimento de banhos que a Empresa de Banhos Setubalense levantou a partir do projecto do arquitecto seixense Ventura Terra. Tudo suficientemente documentado e ilustrado. Simultaneamente, o leitor pode ainda ver como a cidade de Setúbal tem sido um ponto de encontro (ou de choque) entre modas nem sempre conciliáveis com uma visão de ordenamento da cidade, antes preferencialmente sujeitas àquilo que no momento mais dá….
E termino quase como comecei. “Um momento supôs-se que, desde Setúbal até ao Portinho da Arrábida, se estenderia, em poucos anos, uma linha de construções marginais, chalets de luxo e vivendas formosas, em volta das quais iriam tomando vulto povoações de recreio e de repouso. Viriam a finança e a aristocracia semear o seu ouro fecundo, transformando a encosta inútil em uma admirável estação marítima, que só teria rivais na margem do Tejo, de Lisboa a Cascais, e na margem do Douro, do Porto a Leça da Palmeira.” Quem assim escrevia era Câmara Reis, na já referida Ilustração Portuguesa, em Junho de 1918, citado pela autora. Desse sonho, algo visionário, ficou o palacete da Comenda, mandado construir pelo representante da França em Portugal, o Conde Armand, e projectado por outro arquitecto português de renome, Raul Lino. O resto… pertence às memórias que a autora percorreu e à tal história virtual.

domingo, 1 de fevereiro de 2009

João Envia e as biografias setubalenses

Seis anos passaram desde que João Francisco Envia publicou o primeiro volume da obra Setubalenses de Mérito, aí reunindo biografias de 120 personalidades que tiveram o seu nome ligado a Setúbal, fosse por naturalidade, fosse porque na cidade e concelho se destacaram. Agora, passada essa meia dúzia de anos, chegou o segundo volume da mesma obra, também ele com 120 resenhas biográficas de outras tantas personagens da história sadina, numa tiragem de 250 exemplares.
O conjunto dos dois volumes, que bem funcionam como um dicionário das personalidades setubalenses, é uma obra indispensável para a história local e regional, na medida em que o leitor ou o curioso teriam dificuldade em obter elementos sobre a maior parte dos nomes. Entre políticos, artistas, religiosos, desportistas, dirigentes e empresários, entre homens e mulheres, João Envia biografou e lembrou, não omitindo o apontamento pessoal, normalmente feito de memórias, sempre que oportuno.
Este livro é, assim, não só um contributo determinante para a(s) história(s) de Setúbal, mas também um passeio pelas memórias do seu autor, quer como leitor, quer como setubalense. Pode ler-se de seguida, saltando de vida em vida, mas pode também constituir um elemento de consulta indispensável sempre que seja necessário identificar nomes e trajectos de vida.
João Francisco Envia (n. 1919), autor de uma dezena de livros dedicados a Setúbal, colaborador de vários títulos da imprensa local, participante activo no movimento associativo, com estabelecimento comercial próprio desde 1948, deixa-se dominar pela voz que vai contando as histórias sadinas, tal como manifestou ontem, no momento da apresentação pública deste livro: mais dois títulos estão na forja – um, de poesia; outro, de histórias de ao pé do Sado. E, com graça, um dos biografados neste segundo volume, que deu testemunho na sessão, Rogério Peres Claro, com 88 anos, lá foi dizendo que o mal dos livros é poderem desactualizar-se depressa e, por isso e porque tinha ainda muito para fazer, esperava que João Envia ainda escrevesse o terceiro volume de biografias, com novos nomes e com actualização de dados dos que já passaram pelos dois volumes publicados…