Intitula-se "Pelas ruas da amargura", é assinado por Rui Ramos e vem no Público de hoje.
Quase ninguém resistiu ao apelo da rua - nem o Governo.
Há uns meses, a CGTP fez uma coisa em Lisboa a que, a título póstumo, se chamou "a maior manifestação de todos os tempos". Ninguém reparou. Talvez por isso, toda a gente resolveu reparar na "marcha da indignação" de sábado passado. Como seria de prever, poucos souberam dosear o esforço. Na ânsia de compensar a primeira desatenção, quase todos trataram agora, não de meter o Rossio na rua da Betesga, mas Portugal inteiro numas quantas ruas de Lisboa.
Houve quem, sugestionado pelos números prometidos na véspera, descobrisse na "rua" a verdadeira "realidade" do país. E ainda quem, a partir daí, não hesitasse em dar o passo de uma espécie de revisão constitucional imaginária. Vimos assim a rua promovida a órgão de soberania e quarto poder do Estado. Democracia? Mas quem precisa de democracia com ruas como as nossas, ainda para mais sob este abençoado clima, tão apropriado para a vida ao ar livre? Enfim, quase ninguém resistiu ao apelo da rua. Nem o Governo, que logo fez constar que também ia sair, numa manifestação depois reformada em comício. Que dizer perante isto? O actual Governo conta com uma maioria absoluta no Parlamento, a colaboração do Presidente da República, sondagens de opinião favoráveis e até, segundo gosta de reclamar, toda a razão do mundo. Mas não lhe chega: quer ser avaliado na rua. Eis um dado significativo para o debate nacional em curso sobre a caracterização dos nossos governantes. A questão de saber se Sócrates é como Salazar está longe de resolvida, apesar da intervenção de pensadores tão subtis como Mendes Bota. Em contrapartida, a comparação com Marcello Caetano ficou definitivamente comprometida. Na tarde de 25 de Abril de 1974, Caetano chamou um general para o "poder não cair na rua". É uma cautela que os actuais ministros decidiram dispensar: são eles próprios a quererem pôr o poder na rua.
Não nos devemos surpreender com este desvario geral. Perante o mais prolongado impasse económico desde a década de 1930 e quando a oposição, por intermédio do impagável Luís Filipe Menezes, confirma não ter alternativa, que fazer, senão perder a cabeça? Mas antes de descermos todos à rua, não valeria a pena pensar bem sobre que tipo de vida política é possível assentar na ocupação temporária do espaço entre dois prédios?
A rua não é um sítio para ter razão. Na rua não valem os argumentos, valem os números, vale a presença física. Na rua, o adversário não se ouve, não existe, não conta: é referido apenas para ser assobiado, insultado, queimado em efígie. Na rua, a multidão torna-se uniforme: não se divide, não discute - não é real. A rua das manifestações é um espaço privatizado, ocupado e delimitado pelos "organizadores", onde não se ouvem outras vozes - é a negação do espaço público democrático, que é por definição aberto e plural. Que regime se pode fundar na rua, a não ser o da guerra civil, aberta ou latente? Foi assim em Portugal no ano de 1975, durante o "período revolucionário", quando a rua de um lado se confrontou e mediu com a rua do outro. As democracias podem nascer na rua - mas também lá podem morrer.
Está a "realidade" na rua, como a verdade estava no vinho? Curiosamente, a marcha de sábado foi como a pescada: um dia antes de ser realizada, já era a "maior de sempre", com o número de antemão registado de 70.000 participantes. A ninguém pareceu necessário dar uma chance à realidade para confirmar o recorde. A rua é, como sempre foi, uma questão de "organização" e "relações públicas". Com 600 autocarros preenche-se uma avenida. Mas não basta. É preciso depois discutir os números com a polícia e fazer pressão sobre as televisões e os jornais para darem as "imagens" certas. A rua, hoje, é um espectáculo tão fabricado como qualquer outra cerimónia de Estado. Não é a realidade. A realidade é a vida de um país, que se não cabe numa assembleia, ainda menos cabe numa rua.
Onde irão dar estas ruas? Menezes parece convencido de que o levarão ao governo. Perante a marcha de sábado, roubou uns preciosos minutos à operação de mudança de ramo do PSD (de maior partido da oposição para o que promete ser, segundo um seu antigo secretário-geral, a maior rede de lavandarias do país) para saudar com emoção a "ponte 25 de Abril" de Sócrates. Não lhe ocorreu que nunca poderia governar, se por acaso Sócrates caísse assim. Com esta direcção, o PSD aderiu de vez ao clube do PCP e do BE. Quanto ao Governo, fica esta dúvida: os marchantes de sábado pediram a demissão de um ministro; e o Governo, no seu comício, vai pedir o quê? A demissão do país? Por estas ruas não iremos certamente a lado nenhum.
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