O HISTORIADOR LOCAL
ANTÓNIO MATOS FORTUNA
ANTÓNIO MATOS FORTUNA
A casa mostra a legenda "Casal dos Cantos" e a personagem que a habita honra a inscrição, tal é o acervo de estórias pessoais que se confundem com as histórias de Palmela, a mostrarem a sua presença constante pelos cantos da casa e da conversa. À entrada da freguesia de Quinta do Anjo, para quem vá do lado de Palmela, sobre o lado esquerdo, em casa térrea, vive António Matos Fortuna, o mais conhecido historiador local da região, "em serviço permanente, nas 24 horas do dia".
O mês de Dezembro de 1930 começou com o desaparecimento, no seu quinto dia, de Raúl Brandão, nome maior das letras portuguesas deste século, e findou com o nascimento de António Matos Fortuna, numa casa situada na actual Rua Afonso de Albuquerque, em Quinta do Anjo, hoje já recuperada. Os dois anos do início da década de 30 disputaram-lhe o nascimento, mas foi na invernosa tarde do dia 31 que o pequeno António fez ecoar o seu primeiro choro. Iniciava-se assim o percurso de "uma vida banalíssima, igual à de toda a gente", confessa a tentar esconder a notoriedade.
Com estudos na Escola João Vaz, em Setúbal, feitos à custa de um trajecto a pé entre a sua freguesia e a cidade sadina (cerca de dezena e meia de quilómetros para cada lado), aos 22 anos era fiscal de impostos na Câmara de Setúbal, trabalhando depois no Sanatório do Outão, na editora lisboeta “Logos” como revisor, na Casa de Pessoal da “Sacor” e leccionando na Escola Básica dos 2º e 3º Ciclos de Palmela, a partir de 1977 até à aposentação como docente, ocorrida em Setembro de 2000.
Entretanto, a escrita e o gosto pela História foram companhia constante. Na década de 50, por volta de 1953, foi um dos componentes da "Arcádia da Fonte do Anjo", tertúlia constituída à maneira das academias literárias setecentistas onde teve o pseudónimo de Louro da Serra, acompanhado por nomes conhecidos na região de Setúbal e de Palmela como o médico e escritor Cabral Adão, a poetisa Maria Helena Soares Horta e a mestre de música Maria Adelaide Rosado Pinto. Tal associação, integrada no espírito da época, teve página regular no jornal O Setubalense e fez apresentações de poesia no sul do país e em Setúbal e pretendia o ressurgimento da poesia lírica, tal como se podia perceber pela sua declaração de intenções: "Nós não temos estatutos nem regulamentos, apenas temos uma missão: combater a poesia moderna, a poesia-disparate, que pode ser muito interessante no preenchimento da ficha clínica do manicómio, mas que não é suficiente para entreter um espírito medianamente culto".
O jornalismo foi outra das áreas de intervenção de Matos Fortuna, tal como comprova a vasta colaboração em periódicos regionais e nacionais que tem mantido e mesmo a frequência do primeiro Curso de Jornalismo, da responsabilidade do Sindicato Nacional de Jornalistas, ocorrido no ano lectivo de 1968/69, onde teve como professores Francisco Pinto Balsemão e José Júlio Gonçalves, figuras bem conhecidas.
Mas a História, com um exercício profundo de investigação e de descoberta, à maneira de "trabalho de galinha, porque se trata de esgravatar para trás, recuando no tempo", tem constituído a paixão de António Fortuna. Em 1970, com 40 anos, matriculou-se na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa para cursar História, tempo de que relembra professores como o jesuíta Manuel Antunes e os historiadores Veríssimo Serrão e Borges de Macedo. O termo do curso ocorreu em 1975, tendo depois iniciado a sua carreira de professor e a escrita da história local. Para lá de muitas colaborações avulsas e de comunicações dispersas, a sua obra abrange mais de dezena e meia de volumes, obras publicadas pela Câmara Municipal, pelo Grupo dos Amigos do Concelho de Palmela, pela Misericórida e pela Paróquia palmelenses, maioritariamente.
"Escrever a história de Palmela é aliciante porque é tudo original", desabafa. "Não tenho antecedentes em que me apoiar". Na verdade, grande parte da documentação histórica sobre Palmela perdeu-se em dois incêndios, um no século XVII, nos Paços de Concelho locais, e outro na noite de 4 para 5 de Outubro de 1910, no edifício da Câmara de Setúbal, concelho em que Palmela estava integrada na época. Estas duas ocorrências têm constituído o desafio permanente de Matos Fortuna, aliado a um grande afecto pela sua terra e ao sacrifício familiar que ele mesmo exige a si próprio, pormenor que deixou registado na dedicatória do último livro, ao escrever: "à Maria Jorge, minha mulher, a maior, ou única vítima do amor que consagro às terras de Palmela".
A actividade de Matos Fortuna tem sido ramificada ainda pela organização de passeios eminentemente culturais, em visita a sítios por onde as agências de viagens não passam, que rapidamente esgotam a lotação entre os associados do Grupo dos Amigos do Concelho de Palmela (de que é sócio-fundador), entre os irmãos da Misericórdia palmelense ou entre os paroquianos de Quinta do Anjo, tal é a dose de seriedade e de interesse postos na sua organização. "Uma outra forma de mostrar a história às pessoas", diz, ao mesmo tempo que sublinha o seu grande apreço pelo contacto, pela conversa com as gentes, consequências de uma experiência muito sentida ao longo dos quinze anos em que esteve ligado à Acção Católica Rural, onde encontrou "a melhor gente".
Considera que o seu “grande trabalho foram os 800 anos do foral”, celebrados em 1985, quando preparou a rigor um torneio medieval “que teve honras de televisão e de que toda a gente falou”. Depois, “os torneios medievais entraram na moda e começaram a andar por aí…” A romagem de todos os concelhos a que Afonso Henriques deu foral ao túmulo do primeiro rei português, em Santa Cruz de Coimbra, na passagem dos 800 anos sobre a sua morte, com discurso de Henrique Barrilaro Ruas, foi outra das iniciativas promovidas por Fortuna, em 1985, através do Grupo dos Amigos do Concelho de Palmela. “Nunca Afonso Henriques teve tanta flor…”, recorda com satisfação.
O mês de Dezembro de 1930 começou com o desaparecimento, no seu quinto dia, de Raúl Brandão, nome maior das letras portuguesas deste século, e findou com o nascimento de António Matos Fortuna, numa casa situada na actual Rua Afonso de Albuquerque, em Quinta do Anjo, hoje já recuperada. Os dois anos do início da década de 30 disputaram-lhe o nascimento, mas foi na invernosa tarde do dia 31 que o pequeno António fez ecoar o seu primeiro choro. Iniciava-se assim o percurso de "uma vida banalíssima, igual à de toda a gente", confessa a tentar esconder a notoriedade.
Com estudos na Escola João Vaz, em Setúbal, feitos à custa de um trajecto a pé entre a sua freguesia e a cidade sadina (cerca de dezena e meia de quilómetros para cada lado), aos 22 anos era fiscal de impostos na Câmara de Setúbal, trabalhando depois no Sanatório do Outão, na editora lisboeta “Logos” como revisor, na Casa de Pessoal da “Sacor” e leccionando na Escola Básica dos 2º e 3º Ciclos de Palmela, a partir de 1977 até à aposentação como docente, ocorrida em Setembro de 2000.
Entretanto, a escrita e o gosto pela História foram companhia constante. Na década de 50, por volta de 1953, foi um dos componentes da "Arcádia da Fonte do Anjo", tertúlia constituída à maneira das academias literárias setecentistas onde teve o pseudónimo de Louro da Serra, acompanhado por nomes conhecidos na região de Setúbal e de Palmela como o médico e escritor Cabral Adão, a poetisa Maria Helena Soares Horta e a mestre de música Maria Adelaide Rosado Pinto. Tal associação, integrada no espírito da época, teve página regular no jornal O Setubalense e fez apresentações de poesia no sul do país e em Setúbal e pretendia o ressurgimento da poesia lírica, tal como se podia perceber pela sua declaração de intenções: "Nós não temos estatutos nem regulamentos, apenas temos uma missão: combater a poesia moderna, a poesia-disparate, que pode ser muito interessante no preenchimento da ficha clínica do manicómio, mas que não é suficiente para entreter um espírito medianamente culto".
O jornalismo foi outra das áreas de intervenção de Matos Fortuna, tal como comprova a vasta colaboração em periódicos regionais e nacionais que tem mantido e mesmo a frequência do primeiro Curso de Jornalismo, da responsabilidade do Sindicato Nacional de Jornalistas, ocorrido no ano lectivo de 1968/69, onde teve como professores Francisco Pinto Balsemão e José Júlio Gonçalves, figuras bem conhecidas.
Mas a História, com um exercício profundo de investigação e de descoberta, à maneira de "trabalho de galinha, porque se trata de esgravatar para trás, recuando no tempo", tem constituído a paixão de António Fortuna. Em 1970, com 40 anos, matriculou-se na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa para cursar História, tempo de que relembra professores como o jesuíta Manuel Antunes e os historiadores Veríssimo Serrão e Borges de Macedo. O termo do curso ocorreu em 1975, tendo depois iniciado a sua carreira de professor e a escrita da história local. Para lá de muitas colaborações avulsas e de comunicações dispersas, a sua obra abrange mais de dezena e meia de volumes, obras publicadas pela Câmara Municipal, pelo Grupo dos Amigos do Concelho de Palmela, pela Misericórida e pela Paróquia palmelenses, maioritariamente.
"Escrever a história de Palmela é aliciante porque é tudo original", desabafa. "Não tenho antecedentes em que me apoiar". Na verdade, grande parte da documentação histórica sobre Palmela perdeu-se em dois incêndios, um no século XVII, nos Paços de Concelho locais, e outro na noite de 4 para 5 de Outubro de 1910, no edifício da Câmara de Setúbal, concelho em que Palmela estava integrada na época. Estas duas ocorrências têm constituído o desafio permanente de Matos Fortuna, aliado a um grande afecto pela sua terra e ao sacrifício familiar que ele mesmo exige a si próprio, pormenor que deixou registado na dedicatória do último livro, ao escrever: "à Maria Jorge, minha mulher, a maior, ou única vítima do amor que consagro às terras de Palmela".
A actividade de Matos Fortuna tem sido ramificada ainda pela organização de passeios eminentemente culturais, em visita a sítios por onde as agências de viagens não passam, que rapidamente esgotam a lotação entre os associados do Grupo dos Amigos do Concelho de Palmela (de que é sócio-fundador), entre os irmãos da Misericórdia palmelense ou entre os paroquianos de Quinta do Anjo, tal é a dose de seriedade e de interesse postos na sua organização. "Uma outra forma de mostrar a história às pessoas", diz, ao mesmo tempo que sublinha o seu grande apreço pelo contacto, pela conversa com as gentes, consequências de uma experiência muito sentida ao longo dos quinze anos em que esteve ligado à Acção Católica Rural, onde encontrou "a melhor gente".
Considera que o seu “grande trabalho foram os 800 anos do foral”, celebrados em 1985, quando preparou a rigor um torneio medieval “que teve honras de televisão e de que toda a gente falou”. Depois, “os torneios medievais entraram na moda e começaram a andar por aí…” A romagem de todos os concelhos a que Afonso Henriques deu foral ao túmulo do primeiro rei português, em Santa Cruz de Coimbra, na passagem dos 800 anos sobre a sua morte, com discurso de Henrique Barrilaro Ruas, foi outra das iniciativas promovidas por Fortuna, em 1985, através do Grupo dos Amigos do Concelho de Palmela. “Nunca Afonso Henriques teve tanta flor…”, recorda com satisfação.
No seu gesto largo e rápido de falar e de contar as muitas histórias que sabe, encadeia narrativas num fio que nunca mais acaba. "Sabe que o primeiro acidente de automóvel em Portugal ocorreu em Palmela? E que o primeiro barco a vapor no nosso país se chamou Palmela? E sabe que a maior vinha do mundo pertencente a um só indivíduo existiu no concelho de Palmela?" São perguntas de outras tantas histórias que vai divulgando. Uma curiosidade sem limites orienta este homem que tem sido chamado para todas as actividades culturais locais, incluindo a de assessor cultural da autarquia, consequência reconhecida das mais de duas mil páginas publicadas em livro sobre a história de Palmela e seu termo.
João Reis Ribeiro. Histórias e cantinhos da região de Palmela. Col. "Cadernos Locais" (3).
Palmela: Grupo dos Amigos do Concelho de Palmela, 2002, pp. 99-104.
1 comentário:
Ao Dr.António Fortuna, pela sua contagiante alegria de Viver o Hoje e de saber descobrir "coisas do passado".
Até sempre.
Enviar um comentário