quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

Camões pela pena de Alegre

Quando eu era criança, lembro-me de ver na minha casa e nas casas de pessoas de família ou amigas, normalmente na sala de visitas, um livro grande, encadernado, que se destacava de todos os outros. Nem sempre era da mesma cor, mas em todos eles havia o desenho de um homem com uma coroa de louros na cabeça e uma pala num olho. Um dia perguntei que livro era.” Está o leitor mesmo a ver que se tratava de Os Lusíadas. Foi, aliás, isso que, pela voz do pai, o narrador desta história ouviu, início de desvendamento de um mistério e começo de uma relação cultural, identitária e poética.
O texto que assim começa é também o princípio do mais recente livro de Manuel Alegre, intitulado Barbi-Ruivo – O meu primeiro Camões (Lisboa: Dom Quixote, 2007). E pode-se justificar o título: não havendo nenhum retrato de Camões feito a partir do modelo original, foi um registo documental escrito da Casa da Índia, datado de 1550 e divulgado por Faria e Sousa, biógrafo de Camões, que apresentou o poeta como “barbi-ruivo”, termo que Alegre recupera; quanto ao subtítulo, de feição metonímica, ele faz o cruzamento da vida e da obra camonianas com as memórias do narrador, mais precisamente, com as lembranças que o narrador tem do que, ao longo da vida, foi aprendendo e lendo de e sobre Camões.
Constituído por três partes, o livro é dedicado por Manuel Alegre aos netos, numa tentativa de passar a palavra, de transmitir o testemunho, recuando o narrador até à infância para contar os seus primeiros contactos com o tesouro camoniano – primeiro, pela vista (ver os livros); depois, pela audição (o pai lia-lhe Camões, de tal forma que a criança decorou o início da épica e alguns sonetos); mais tarde, pela leitura a expensas próprias.
Para o narrador, pontos marcantes deste percurso camoniano foram: a musicalidade (que o levou a aprender Camões de cor - “eu subia para cima de uma cadeira, dizia os versos e tinha a sensação de que dentro das palavras havia um ritmo, quase se podia assobiar ou entoar baixinho, era uma forma de música”); o ritmo (que, nalguns poemas, “lembrava o das canções e dos fados que se ouviam nas ruas e na rádio”); o amor (manifestação em que o soneto “Amor é um fogo que arde sem se ver” levava a palma nas declarações amorosas da geração do narrador e que também é essencial para a compreensão dos poemas de Camões, pois que “segundo o amor que tiverdes, tereis o entendimento de meus versos”); a diferença (várias mulheres ocupam o cenário da paixão camoniana, todas com traços fisionómicos e de raça diversos, numa pluralidade inebriante, que leva Alegre a considerar que “dois dos maiores poemas de amor da nossa língua – trovas a Bárbara cativa e 'Alma minha, gentil que te partiste', motivado por Dinamene – foram inspirados por mulheres de outra cor”); a procura de uma identidade (capítulo longo é o intitulado “Embarcar n’Os Lusíadas”, que passa sobre a epopeia e sobre os seus mais conhecidos e mais bem conseguidos episódios, numa “viagem pela nossa História” e até pela história da leitura e da recepção desta obra, visível, por exemplo, no testemunho do tempo do liceu – “o canto IX era o mais proibido e censurado e, por isso, o mais apetecido… afinal, um dos mais belos”); as leituras inovadoras (a figura do “Velho do Restelo” é apresentada como materialização da voz do próprio Camões, numa crítica ao processo como se desencadearam os descobrimentos, a descrição dos fenómenos naturais é vista como sendo “dos momentos mais inovadores e mais belos” do poema, o Adamastor é encarado como um “momento essencial” na história porque “decide o sucesso da viagem”); a lenda (em que a própria figura de Camões surgiu envolvida, prestando-se a isso um homem cultíssimo que escreveu o mais genial poema português e viveu na miséria, que deixou a ideia tão agradável e romanticamente definidora do ser português da “vida pelo mundo em pedaços repartida”, e de cujo percurso biográfico pouco se sabe, não existindo mesmo documentos autógrafos).
Ao longo dos tempos, Camões e a sua obra têm servido adaptações várias, com públicos diversificados. Assim, de repente, vêm à memória títulos como Os Lusíadas contados às crianças e lembrados ao povo (1930, de João de Barros), Aventuras do Trinca-Fortes (1946, de Adolfo Simões Müller), Camões poeta mancebo e pobre (1980, de Matilde Rosa Araújo), Camões (1990, texto de Oliveira Cosme e banda desenhada de Carlos Alberto Santos). Barbi-Ruivo junta-se a este rol de visitações da obra camoniana e, parecendo destinar-se aos mais jovens (quer pela dedicatória do autor, quer pelo aspecto gráfico), a verdade é que o seu público será quem queira conhecer a vida e a obra de Camões, em visita guiada por Manuel Alegre, um poeta do século XXI, que, na sua obra, também já tomou o épico para fonte de inspiração.
Diga-se ainda que a obra tem ilustrações de André Letria, conjunto de uma dúzia de desenhos de temática camoniana, em todos constando o livro como elemento comum, assim dando valor ao que de mais importante existe num poeta – a sua obra.
[Fotos: capa do livro e desenho do Adamastor, por André Letria.]

1 comentário:

Anónimo disse...

sim de facto desenhas mt bem...

gxtei mt de ver na nossa escola de vendas novas 2, 3 siclo....

obrigado pla visitah...