sábado, 29 de dezembro de 2007

Hoje, deveria ter saído no "Correio de Setúbal"

DIÁRIO DA AUTO-ESTIMA – 73
29 de Dezembro de 1915 – “O acaso fez-me descobrir hoje um livro escolar onde encontrei enfim aquelas regras de redacção, de criação e de elocução que há tanto tempo buscava e que são o segredo da escrita e da dicção tão precisas e tão claras dos franceses. Os portugueses escrevem pouco e com dificuldade. Não respondem, ou só tardiamente respondem a cartas, o que eles explicam pela preguiça. Nesse livro encontro esta frase: ‘On est toujours paresseux pour une chose qu’on fait mal’. Talvez me dedique a fazer um livro como esse, destinado às nossas escolas, e talvez seja esse o último serviço que preste ao meu país.” (João Chagas, Diário II).
29 de Dezembro de 1942 (Coimbra) – “Uma grande discussão sobre liberdade e justiça com um amigo magistrado, que há dois ou três anos vestiu a toga cheio de inquietações e que me apareceu agora relativamente sereno na sua função de julgar. (…) Dantes, quer ele a aceitar teoricamente um pragmatismo judicativo, quer eu a negá-lo, púnhamos ambos sobre a mesa dois corações igualmente ciosos da intangibilidade humana, só abertos à transcendência de cada destino, fossem quais fossem as razões da cabeça. Mas os anos passaram, a função fez o órgão, e hoje encontrei-me diante dum funcionário calmo e objectivo, apenas interessado em desempenhar proficientemente o seu papel de parafuso sem fim na complicada engrenagem social. E muito embora seguro da honradez profissional do meu interlocutor de agora, passei o tempo a ter saudades do outro, que ficava branco só de pensar que alguém pudesse erigir-se em juiz absoluto e condenar um semelhante à morte viva de trinta anos de cadeia.” (Miguel Torga, Diário – II).
29 de Dezembro de 1943 – “Ontem à noite estive muito triste. Tive a visão da avozinha e da Lies! Avozinha, querida avozinha! Não compreendemos bem quanto ela sofria. Só pensava em nós, mostrando-se sempre muito compreensiva em face dos nossos problemas. Sofria de uma grave doença. (…) Sou egoísta e cobarde! Não sei porque é que os meus sonhos e pensamentos só giram à volta das coisas tristes, até quase me apetecer gritar. Decerto não tenho bastante confiança em Deus! Afinal Ele deu-me tanta coisa que não mereço e só faço asneiras. Quando pensamos no próximo, devíamos chorar. A dizer a verdade, não devíamos fazer mais nada do que chorar. Resta-nos pedir a Deus que faça um milagre e que salve aquela pobre gente! E eu rezo do fundo do meu coração.” (Anne Frank, Diário).
1987, Ainda Dezembro, Matosinhos – “O tempo arrefece. Mas há sol e na linha do horizonte uns flocos de nuvens levemente rosadas como borlas de pó-de-arroz, 1920. Sobre as águas um jogo de velas. Os brancos fendidos oscilam, bailam sobre o azul – rodinha de borboletas, entre o leque aberto da rama dos pinheiros. De manhã, dava logo de rosto com o mar, porquê então aquela melancolia? Olhava aquela beleza balética, oscilante, grácil, como se olhasse um campo lavrado de lágrimas. Era dela, dentro dela, que a melancolia morava.” (Luísa Dacosta, Na água do tempo).
Com Dezembro quase no fim – Ano a caminho do termo. Mais um cabo de tormentas prestes a ser passado. E também a sensação de que as desigualdades se têm acentuado. E ainda: a dureza do quotidiano está muito longe da festa europeia com que Portugal pretendeu fazer História.

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