Bisturi do tempo, de José Paulino Pereira (Setúbal: 2008) é título rico de sugestões, quer pela imagem médica ligada ao seu autor, quer por esse trabalho de precisão a fazer na memória para que não sejamos por ela traídos. E, depois, há ainda aquela possibilidade dupla: um bisturi que age sobre o tempo ou o tempo visto como bisturi?
Este livro recolhe textos que, na sua quase totalidade, foram já publicados e que, como regista o autor, em texto que serve como apresentação da obra, foram “inspirados em situações vividas”. A observação é importante, pois garante o pendor autobiográfico desta escrita, onde se cruzam espaços, pessoas e histórias vividas pelo narrador das evocações.
Podemos referir que este conjunto de textos constitui a geografia de José Paulino Pereira. Paradigmaticamente, a primeira narrativa intitula-se “A minha rua” e constitui a chave que permite a entrada no livro e a viagem até à infância em Torres Vedras – “foi nela que nasci, cresci e brinquei”. E é um desfiar de lembranças de amigos, de familiares, de intimidades.
O grupo de escritos dedicados a Torres Vedras tem ainda espaço para lembrar a história das Termas dos Cucos (narrativa em que descobri uma afinidade com a minha aldeia, pois houve alguém que, de Alvarães, no concelho de Viana do Castelo, pelos idos de 1932, questionou a legitimidade do testamento que fizera passar as termas para as mãos de José António Vieira), a pretensão já sentida de Torres Vedras querer ser a capital de um distrito que chegou a estar pensado para a região do Oeste, a história da medicina torriense, a ligação à Associação de Bombeiros.
Os outros pontos desta cartografia do tempo assentam em Coimbra (com histórias do tempo da formatura universitária e das visitas ali feitas depois, a propósito das reuniões de curso), Peniche (local de férias, com histórias vividas de descoberta) e Setúbal (ponto de fixação profissional nos hospitais – primeiro, da Misericórdia e, depois, de S. Bernardo –, com referências múltiplas à história local e a episódios passados com os respectivos pacientes).
Neste itinerário descontínuo e seleccionado de vida, há também lugar para identificações e preferências, aliando as sensibilidades de outros à descoberta própria, conjugando arte e saber, como surge neste exemplo que relembra uma viagem à Arrábida: “Eu não sou poeta. Não tenho esse dom, mas ninguém me impede de subir ao cimo da imponente Serra da Arrábida, imitando nessa caminhada o príncipe dos poetas setubalenses que se chamou Sebastião da Gama. Ninguém como ele conhecia os seus segredos que o convidavam à meditação.”
Quando Paulino Pereira fala de pessoas, são-lhes enaltecidos os dotes, que podem entrar para o lote de valores a preservar. Assim, surgem referências de apreço a mestres ou a figuras que foram importantes para a formação do próprio narrador por características como o trabalho em equipa, a formação humanista, a competência, a disponibilidade para os outros, a relação próxima e afectiva entre médico e doente. O humor está também presente, seja por alguns momentos relembrados e pelo cómico da situação que constituíram, seja pelo tom com que, à distância, são evocados. As qualidades das personagens e o sentido de humor conjugam-se bem nos quatro contos que constituem a última parte do livro, de tal forma que nem parece que se entra no registo da ficção, antes se continua no da memória…
Ao longo destes textos, o leitor vai ainda convivendo com a coerência do homem e do profissional, que não deixa margem para dúvidas depois de uma crónica como “Decisão na hora certa”, em que, a propósito da facilidade com que se põem em causa as práticas dos profissionais de alguns serviços, nomeadamente da saúde, Paulino Pereira relata a decisão que teve que tomar, ao levar um doente para o hospital, à sua própria custa, contra a vontade da família mas com o acordo do paciente, numa situação que poderia ser decisiva. A intervenção acabou por ter sucesso e a crónica conclui com a seguinte reflexão: “O êxito foi total. Mas, se o desfecho fosse outro, o que me teria acontecido? Os homens que me julgassem. Perante o tribunal da minha consciência ficaria absolvido.”
A escrita de Paulino Pereira neste Bisturi do tempo é simples, acessível e directa, parecendo que se está perante um contador de histórias de vida. Os retratos que ressaltam são os da disponibilidade e do prazer no exercício médico, quase nos surgindo pela frente um João Semana, distante do que Júlio Dinis nos apresentou no séc. XIX pelas mudanças operadas pelo tempo, mas próximo pela sensibilidade e pela humanidade no trato e na vida, marcas que popularizaram e notabilizaram essa personagem como médico.
Este livro recolhe textos que, na sua quase totalidade, foram já publicados e que, como regista o autor, em texto que serve como apresentação da obra, foram “inspirados em situações vividas”. A observação é importante, pois garante o pendor autobiográfico desta escrita, onde se cruzam espaços, pessoas e histórias vividas pelo narrador das evocações.
Podemos referir que este conjunto de textos constitui a geografia de José Paulino Pereira. Paradigmaticamente, a primeira narrativa intitula-se “A minha rua” e constitui a chave que permite a entrada no livro e a viagem até à infância em Torres Vedras – “foi nela que nasci, cresci e brinquei”. E é um desfiar de lembranças de amigos, de familiares, de intimidades.
O grupo de escritos dedicados a Torres Vedras tem ainda espaço para lembrar a história das Termas dos Cucos (narrativa em que descobri uma afinidade com a minha aldeia, pois houve alguém que, de Alvarães, no concelho de Viana do Castelo, pelos idos de 1932, questionou a legitimidade do testamento que fizera passar as termas para as mãos de José António Vieira), a pretensão já sentida de Torres Vedras querer ser a capital de um distrito que chegou a estar pensado para a região do Oeste, a história da medicina torriense, a ligação à Associação de Bombeiros.
Os outros pontos desta cartografia do tempo assentam em Coimbra (com histórias do tempo da formatura universitária e das visitas ali feitas depois, a propósito das reuniões de curso), Peniche (local de férias, com histórias vividas de descoberta) e Setúbal (ponto de fixação profissional nos hospitais – primeiro, da Misericórdia e, depois, de S. Bernardo –, com referências múltiplas à história local e a episódios passados com os respectivos pacientes).
Neste itinerário descontínuo e seleccionado de vida, há também lugar para identificações e preferências, aliando as sensibilidades de outros à descoberta própria, conjugando arte e saber, como surge neste exemplo que relembra uma viagem à Arrábida: “Eu não sou poeta. Não tenho esse dom, mas ninguém me impede de subir ao cimo da imponente Serra da Arrábida, imitando nessa caminhada o príncipe dos poetas setubalenses que se chamou Sebastião da Gama. Ninguém como ele conhecia os seus segredos que o convidavam à meditação.”
Quando Paulino Pereira fala de pessoas, são-lhes enaltecidos os dotes, que podem entrar para o lote de valores a preservar. Assim, surgem referências de apreço a mestres ou a figuras que foram importantes para a formação do próprio narrador por características como o trabalho em equipa, a formação humanista, a competência, a disponibilidade para os outros, a relação próxima e afectiva entre médico e doente. O humor está também presente, seja por alguns momentos relembrados e pelo cómico da situação que constituíram, seja pelo tom com que, à distância, são evocados. As qualidades das personagens e o sentido de humor conjugam-se bem nos quatro contos que constituem a última parte do livro, de tal forma que nem parece que se entra no registo da ficção, antes se continua no da memória…
Ao longo destes textos, o leitor vai ainda convivendo com a coerência do homem e do profissional, que não deixa margem para dúvidas depois de uma crónica como “Decisão na hora certa”, em que, a propósito da facilidade com que se põem em causa as práticas dos profissionais de alguns serviços, nomeadamente da saúde, Paulino Pereira relata a decisão que teve que tomar, ao levar um doente para o hospital, à sua própria custa, contra a vontade da família mas com o acordo do paciente, numa situação que poderia ser decisiva. A intervenção acabou por ter sucesso e a crónica conclui com a seguinte reflexão: “O êxito foi total. Mas, se o desfecho fosse outro, o que me teria acontecido? Os homens que me julgassem. Perante o tribunal da minha consciência ficaria absolvido.”
A escrita de Paulino Pereira neste Bisturi do tempo é simples, acessível e directa, parecendo que se está perante um contador de histórias de vida. Os retratos que ressaltam são os da disponibilidade e do prazer no exercício médico, quase nos surgindo pela frente um João Semana, distante do que Júlio Dinis nos apresentou no séc. XIX pelas mudanças operadas pelo tempo, mas próximo pela sensibilidade e pela humanidade no trato e na vida, marcas que popularizaram e notabilizaram essa personagem como médico.
[A obra, cuja chegada às livrarias (em 12 de Maio) aconteceu cerca de uma semana após o falecimento do seu autor (4 de Maio), vai ser apresentada, numa sessão que também será de homenagem a Paulino Pereira, no Salão Nobre da Câmara Municipal de Setúbal, em 31 de Maio, pelas 16h00.]
1 comentário:
wala pulos imo blog.
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