domingo, 9 de novembro de 2008

Palmela - Quando o concelho foi restaurado

(publicação dedicada aos alunos que
me pediram informações sobre este assunto)
No primeiro dia de Novembro de 1928, quando passavam dois anos sobre a decisão de ser lavrado o decreto que criaria o concelho de Palmela, surgiu na vila o jornal O Palmelense, título sem periodicidade certa que foi publicado ao longo de vários anos, devido a duas figuras por demais conhecidas na vida política e social de Palmela: Joaquim José de Carvalho, nome que preencheu o lugar de director, editor e proprietário e que era ao tempo o Presidente da Câmara Municipal de Palmela, e o Padre Moisés da Silva, anunciado como redactor principal, pároco local entre 1926 e 1933.
Ambos os nomes estavam ligados à restauração do concelho de Palmela, que tinha acontecido dois anos antes, e o aparecimento do jornal exactamente na data em que passava esse segundo aniversário não pode ser visto sem a vontade de afirmação existente na elite política de Palmela da época. Aliás, o texto que abre a primeira página do jornal é sintomático, enaltecendo e agradecendo publicamente aos homens que, dentro do poder, possibilitaram a restauração do concelho: "Palmela, terra gloriosa de tradições, que há 300 anos antes de Cristo foi fundada pelo pretor Alio Cornélio Palma, veste hoje as suas melhores galas: comemora o 2º aniversário da restauração concelhia. Deve-se ao sr. contra-almirante Jaime Afreixo, antigo Ministro da Marinha, pela sugestão do sr. general Amílcar Mota, também antigo Ministro da Guerra, figura notável do Exército Português, a restauração do concelho. Ao grande marinheiro e ao brioso militar Jaime Afreixo e Amílcar Mota apresenta o PALMELENSE, em nome do seu povo, os protestos da sua inquebrantável amizade e inolvidável gratidão". Os nomes de Jaime Afreixo e de Amílcar Mota constavam já na toponímia palmelense, localizando-se a sede do jornal na rua com o nome desta última personagem.
À maneira de editorial, surgia ainda na mesma primeira página um texto intitulado "A Que Vimos", cujo primeiro parágrafo se revela esclarecedor quanto aos propósitos do jornal: "Nesta hora de efervescência municipalista e de intensificação de progresso que se nota por todo o País, não podíamos nós deixar a fidalga vila de Palmela, que hoje goza a honrosa condição de povo livre e que procura em bases sólidas e sãos príncipios efectivar o seu ressentimento, desprovida desse agente propulsor do progresso que é a imprensa". Notórias são as marcas da festa pelo facto de Palmela ter voltado a ser concelho, da necessidade de colocar a vila ao nível do progresso, da noção de liberdade alcançada através da restauração concelhia e do papel que se sabia ter a comunicação social na afirmação dos problemas e das necessidades locais.
um concelho que deixou de o ser
Palmela, com foral desde 1185 atribuído por D.Afonso Henriques, constitui um dos mais antigos concelhos do sul do país e, mercê de circunstâncias várias, acabou por estar na origem da criação de variados concelhos das redondezas, entre os quais o de Setúbal que, em 1343, se estendeu para fora da vila através da atribuição que lhe foi feita de terrenos pertencentes a Alcácer e a Palmela.
Ao longo do século XIX, os municípios portugueses foram alvo de diversas reformas, tal como pode ser visto por alguns números: em 1774, havia 886 concelhos; em 1801, o número descia para 841; em 1878, eram 266. Na reforma havida em Outubro de 1855, vários municípios do então distrito de Lisboa (que abrangia grande parte do que é hoje o distrito de Setúbal), entre os quais os de Palmela e de Azeitão, foram extintos, tendo ambos passado a pertencer ao concelho de Setúbal.
O pedido da extinção do concelho de Palmela já andava a ser feito desde o início da década anterior. No primeiro trimestre de 1842, um grupo de setubalenses propôs às Cortes o fim do município de Palmela, devendo o seu território passar para o concelho de Setúbal. Tal pretensão mereceu resposta de Palmela, datada de Abril de 1843 e com 130 subscritores, dirigida aos "Senhores Deputados da Nação Portuguesa", que era iniciada com um lamento: "A Câmara Municipal e os habitantes de Palmela, vêm queixar-se da injusta e ainda mais ingrata perseguição que lhes fazem alguns moradores do concelho de Setúbal, pretendendo estes que o concelho de Palmela seja inteiramente suprimido".
O processo das pressões a partir de Setúbal para o fim do concelho de Palmela continuaram. Em final de Janeiro de 1855, uma exposição da Câmara palmelense dirigida aos Deputados dizia: "A Câmara Municipal e os povos de Palmela estão ameaçados e gemendo debaixo de um peso enorme das cruéis vinganças de alguns orgulhosos e ambiciosos de Setúbal, que a todo o custo pretendem a total ruína e inteira desgraça dos povos de Palmela pela anexação de ambos os concelhos". Depois, era o rol das acusações sobre os setubalenses: eles não queriam pagar décimas pelos bens que tinham em Palmela, não queriam respeitar as posturas municipais quanto a coimas a pagar, possuíam nos terrenos de Palmela enxames que davam cabo das uvas, etc.
um concelho que o quer voltar a ser
A partir do momento em que Palmela perdeu a sua autonomia concelhia, um longo processo de insistência começou por parte dos palmelenses, iniciado logo em Março de 1856 através de exposição às Cortes, onde era referido "o desprezo e abandono que a Câmara de Setúbal tem desgraçadamente votado" ao povo de Palmela, "já em três meses de cativeiro e premeditada opressão".
As várias insistências por parte de Palmela para reaver o seu estatuto de concelho surgem documentadas na obra Monografia de Palmela - Extinção e Restauração do Concelho, de António Matos Fortuna, datada de 1995, um processo que o autor considera em subtítulo do seu trabalho "um combate singularmente duro".
Ao longo dos tempos que se seguiram, várias alterações ao quadro dos municípios existiram, sem que Palmela tivesse sido contemplada. Só em 1914, através do deputado Joaquim Brandão (que também tem o nome registado na toponímia da vila), um projecto de lei foi apresentado no sentido de ser restaurado o concelho, aí se argumentando que a sua autonomia e progresso não seriam afectados, porquanto havia todos os "elementos de vida independente". Apesar de este projecto ter tido os pareceres favoráveis das várias comissões envolvidas na criação concelhia, certo foi que a restauração do concelho saiu mais uma vez embargada.
o concelho, de novo
No verão de 1921, um referendo realizado entre os eleitores de Palmela por voto secreto deu a unanimidade quanto à vontade na criação do concelho. Uma comissão integrada, entre outros, por Joaquim José de Carvalho e pelo padre Moisés da Silva teve, em 1926, papel importante nos contactos havidos com Amílcar Mota e Jaime Afreixo para a restauração municipal, de tal forma que, no primeiro de Novembro desse ano, era dada ordem para a redacção do decreto que reporia Palmela como cabeça de concelho (constituído pelas freguesias de Palmela e de Marateca), data que chegou a assinalar o feriado local. Só uma semana depois, em 8 de Novembro, esse decreto, com o nº 12615, foi publicado. Ao fim de 71 anos, Palmela voltava a ser concelho, uma situação só possível por uma conjuntura que foi sendo alterada ao longo do tempo devido a factores como "o aumento populacional, o vinho e a tradição" que surgiram, "durante as duas primeiras décadas do século XX, como fortes atributos de poder na luta pela restauração do concelho", como em 1998 notaram Ernesto e Odília Castro Leal em ensaio publicado na obra Da Supressão à Restauração do Concelho de Palmela - Conjunturas e Símbolos (1855-1926).
A restauração do concelho de Palmela não colheu opiniões agradáveis entre os políticos de Setúbal nem na imprensa local. Na edição de 6 de Novembro de 1926 d'O Setubalense, o editorial comentava: "Setúbal não protesta, Setúbal nunca protestou contra o concelho de Palmela. Achamos aos palmelenses toda a razão para quererem a sua autonomia - uma autonomia de que muito se arrependerão, porques lhes custará os olhos da cara. O que Setúbal apenas quer é que lhe seja dada uma compensação pelo facto de assim lhe ser roubada uma grande parte da sua área territorial".
O que estava em causa era a possibilidade de Setúbal vir a ser distrito, situação que ganhava adeptos. Em 4 de Novembro, uma comissão de setubalenses partira para Lisboa a fim de estabelecer contactos para a criação do distrito de Setúbal, tendo-lhe o então Governador Civil de Lisboa, João Luís de Moura, dado a entender que haveria condições favoráveis porque o distrito de Lisboa era muito grande.
João Reis Ribeiro, in Histórias e cantinhos da região de Palmela.
Palmela: Grupo dos Amigos do Concelho de Palmela, 2002, pp. 94-98

1 comentário:

Anónimo disse...

que bela lição de história e divulgação do Concelho de Palmela!
um abraço
aureliano