segunda-feira, 24 de novembro de 2008

A cultura científica, evocando Galileo e Gedeão

Hoje é o Dia Nacional da Cultura Científica, dia em que passam 102 anos sobre o nascimento do cidadão e professor Rómulo de Carvalho e simultaneamente poeta António Gedeão.
Perante a ciência, fica sempre o fascínio da descoberta, do saber mais e do… quão pouco sabemos. Mas sempre que se pensa em ciência é inevitável chamarmos a memória de Gedeão, que soube, com mister, deixar que a poesia se invadisse pela cultura científica. E a gente lembra-se desse poema lindo e laboratorial que é “Lágrima de Preta”, desse poema também lindo e aritmético que é “Mãezinha”, desse velocipédico e juvenil “Poema da autoestrada”, desse ritmado e suado poema que é “Calçada de Carriche” e de muitos outros, alguns deles musicados e até símbolos de um tempo, mesmo pela maneira como a filosofia da vida invade os versos e os ritmos.
A propósito do que se celebra neste dia, escolhi o “Poema para Galileo”, uma carta ou conversa ou desabafo ou confissão ou retrato, que sempre me leva a imaginar o espectáculo que seria termos a possibilidade de presenciar a troca de impressões entre Galileo e Gedeão, numa linguagem simples, aproximando a ciência da vida. Ainda a este propósito, que as conversas são como as cerejas, corro a procurar o livro de Rómulo de Carvalho Física para o Povo (Coimbra: Atlântida Editora, 1968), que, a abrir o primeiro volume, se dirige assim ao leitor: “Pus-me a pensar sobre várias coisas que o meu amigo poderá ter observado na sua vida diária e que talvez gostasse de saber explicar. Procurei ir ao encontro do seu pensamento e responder às suas prováveis interrogações, sempre do modo mais simples possível, pois sei que o meu amigo não tem os estudos suficientes para compreender certas explicações ou o significado de certos termos que eu deveria usar para ser mais correcto. Não mostre este livro a nenhuma pessoa sabedora porque essa encontraria com certeza muitos motivos de censura nas minhas palavras. Acharia que aqui não estava bem explicado, que ali tinha usado palavras impróprias, que mais adiante não era bem assim como digo, etc., etc. E tinha razão. Mas não se preocupe com isso. Isto é só para o meu amigo. Quando tiver vagar pegue no livro e entretenha-se a ler.
Quem assim escreve deverá ter, naturalmente, condições para conversar com Galileo. Vamos, então, ao

Poema para Galileo

Estou olhando o teu retrato, meu velho pisano,
aquele teu retrato que toda a gente conhece,
em que a tua bela cabeça desabrocha e floresce
sobre um modesto cabeção de pano.
Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da tua velha Florença.
(Não, não, Galileo! Eu não disse Santo Ofício.
Disse Galeria dos Ofícios.)
Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da requintada Florença.
Lembras-te? A Ponte Vecchio, a Loggia, a Piazza della Signoria…
Eu sei… eu sei…
As margens doces do Arno às horas pardas da melancolia.
Ai que saudade, Galileo Galilei!

Olha. Sabes? Lá em Florença
está guardado um dedo da tua mão direita num relicário.
Palavra de honra que está!
As voltas que o mundo dá!
Se calhar até há gente que pensa
que entraste no calendário.

Eu queria agradecer-te, Galileo,
a inteligência das coisas que me deste.
Eu,
e quantos milhões de homens como eu
a quem tu esclareceste,
ia jurar - que disparate, Galileo!
- e jurava a pés juntos e apostava a cabeça
sem a menor hesitação -
que os corpos caem tanto mais depressa
quanto mais pesados são.

Pois não é evidente, Galileo?
Quem acredita que um penedo caia
com a mesma rapidez que um botão de camisa ou que um seixo da praia?

Esta era a inteligência que Deus nos deu.

Estava agora a lembrar-me, Galileo,
daquela cena em que tu estavas sentado num escabelo
e tinhas à tua frente
um friso de homens doutos, hirtos, de toga e de capelo
a olharem-te severamente.
Estavam todos a ralhar contigo,
que parecia impossível que um homem da tua idade
e da tua condição,
se estivesse tornando num perigo
para a Humanidade
e para a Civilização.
Tu, embaraçado e comprometido, em silêncio mordiscavas os lábios,
e percorrias, cheio de piedade,
os rostos impenetráveis daquela fila de sábios.

Teus olhos habituados à observação dos satélites e das estrelas,
desceram lá das suas alturas
e poisaram, como aves aturdidas - parece-me que estou a vê-las -,
nas faces grávidas daquelas reverendíssimas criaturas.
E tu foste dizendo a tudo que sim, que sim senhor, que era tudo tal qual
conforme suas eminências desejavam,
e dirias que o Sol era quadrado e a Lua pentagonal
e que os astros bailavam e entoavam
à meia-noite louvores à harmonia universal.
E juraste que nunca mais repetirias
nem a ti mesmo, na própria intimidade do teu pensamento, livre e calma,
aquelas abomináveis heresias
que ensinavas e descrevias
para eterna perdição da tua alma.
Ai Galileo!
Mal sabem os teus doutos juízes, grandes senhores deste pequeno mundo,
que assim mesmo, empertigados nos seus cadeirões de braços,
andavam a correr e a rolar pelos espaços
à razão de trinta quilómetros por segundo.
Tu é que sabias, Galileo Galilei.
Por isso eram teus olhos misericordiosos,
por isso era teu coração cheio de piedade,
piedade pelos homens que não precisam de sofrer, homens ditosos
a quem Deus dispensou de buscar a verdade.
Por isso estoicamente, mansamente,
resististe a todas as torturas,
a todas as angústias, a todos os contratempos,
enquanto eles, do alto incessível das suas alturas,
foram caindo,
caindo,
caindo,
caindo,
caindo sempre,
e sempre,
ininterruptamente,
na razão directa do quadrado dos tempos.
António Gedeão. Linhas de Força (1967)

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