Reunida em Fátima em 13 de Novembro, a Conferência Episcopal Portuguesa produziu Carta Pastoral intitulada “
A Escola em Portugal – Educação Integral da Pessoa”. O documento é longo, mas tem leitura justificada – pensa a Escola, pensa os caminhos, pensa as responsabilidades, incentiva as autonomias, humaniza a educação. Registo alguns excertos.
A missão da escola
A educação escolar terá de assentar, consequentemente, num projecto cultural de natureza axiológica, antropologicamente fundamentado, capaz de definir as opções, as propostas e os contornos das políticas educativas que, coerentemente, o levem à prática. “A escola não pode ser apenas um conjunto de actividades; é uma visão da vida, persistente e longamente perseguida e afirmada” . (…)
Os graves problemas do mundo contemporâneo põem-nos perante a necessidade e urgência de recolocar o valor da vida e da dignidade humana no centro da realidade social, política, económica, cultural e educativa. Ultrapassar a crise contemporânea da escola, e da educação em geral, exige, previamente, redescobrir e abraçar decididamente tal finalidade. “Na raiz da crise da educação há, de facto, uma crise de confiança na vida”. (…)
A educação é o percurso da personalização, e não apenas socialização e formação para a cidadania. A educação autêntica é a educação integral da pessoa. Isto exige promoção dos valores espirituais, estruturação hierárquica de saberes e de valores, integração do saber científico-tecnológico num saber cultural mais vasto, mais abrangente e mais englobante. Exige igualmente partilha dos bens culturais e democratização no acesso aos conhecimentos, aos saberes científicos e competências tecnológicas, que são património comum da humanidade. Exige ainda promoção do homem-pessoa em recusa do homem-objecto de mercado, rejeição de todas as formas de alienação do ser humano, defesa do primado da solidariedade e da fraternidade sobre o interesse egoísta e a competição desenfreada. (…)
A escola é um projecto educativo em marcha que, necessariamente, brota de uma convicção que, por sua vez, radica num determinado modelo de homem e de sociedade. A escola é uma concepção de vida em acção, em realização continuada e renovada pela incarnação de ideias, de saberes, de valores, de critérios, de atitudes, de comportamentos. Não há, portanto, educação e ensino alheios a preocupações de ordem filosófica, ideológica, política e religiosa.
Importância social da escola
É precisamente no momento em que a escola portuguesa acolhe todos os cidadãos que revela as maiores fragilidades em criar as condições para que todos e cada um deles possam desenvolver-se e atingir adequados níveis de sucesso escolar. A heterogeneidade social e as desigualdades que persistem na sociedade portuguesa estão hoje presentes na escola e esta manifesta evidentes dificuldades em atender a estas diferenças, criando oportunidades apropriadas de desenvolvimento integral para cada um e para todos. E não só manifesta estas dificuldades como se encontra demasiado isolada no cumprimento deste objectivo social e cultural do maior alcance. (…)
Condicionantes e problemas hodiernos da escola
É sobejamente conhecida a dificuldade e a complexidade de educar nos tempos que correm. A escola acaba por ser muitas vezes reflexo da sociedade e dos seus problemas e sofre por isso, em si mesma, as condicionantes, as influências, as debilidades e as oscilações políticas, ideológicas, económicas, tecnológicas e culturais da sociedade em que está inserida. Corre constantemente o perigo de produzir resultados contrários aos que se propõe, reproduzindo as estruturas e as mesmas características da sociedade, das quais ela própria deveria ser um factor de mudança. (…)
Pela própria duração do processo de escolarização, a escola corre o risco de ser vista por muitas crianças e jovens não como um instrumento de humanização, mas como um longo “túnel”, um constrangimento insuportável a que se encontram condenados antes de passarem à ”vida verdadeira”. (…)
O Estado tem sido, por vezes, em virtude das políticas dos diversos governantes, um obstáculo à melhoria da qualidade da escola portuguesa, e isto por vários motivos:
- as reformas educativas sustentam-se frequentemente em trabalhos técnicos de gabinetes que infundem no sistema, por imposição linear imediata, mudanças que substituem outras mudanças ainda não devidamente implementadas nem avaliadas. Assim se lança ou favorece o caos permanente e a insegurança nos profissionais docentes que trabalham nas escolas;
- as medidas são impostas, sem valorizar a diversidade de escolas e contextos e desprezando a liberdade de actuação dos professores, pais, autarquias e outros agentes locais, com projectos educativos próprios;
- não se respeita o princípio da subsidiariedade e tudo se determina do centro para a periferia, concedendo, a custo e de modo sempre tímido, alguma autonomia e liberdade de actuação às escolas, o que leva os profissionais docentes a desvalorizar e desacreditar a sua capacidade de acção e de melhoria da qualidade da educação;
- este quadro de desresponsabilização e até de descrédito acerca do trabalho dos docentes a todos penaliza e impede uma evolução positiva mais concertada.
Sendo o Estado parte do problema, ele terá de ser também parte da solução, pelo que se exige, neste campo, muito mais ousadia e inovação aos diversos grupos políticos, pois sucessivos governos têm sido incapazes de encontrar um modelo de actuação de um estado regulador, articulado com um sistema onde reine a liberdade, a autonomia e a responsabilidade dos professores e dos actores sociais que com eles cooperam.
A necessária liberdade de aprender e ensinar
Não é legítimo analisar a questão da educação e do ensino, designadamente ao nível básico e secundário, à luz das leis do mercado. A educação e o ensino não são mercadorias para se transaccionarem comercialmente, mas decorrem fundamentalmente de quadros antropológicos de referência e de sistemas de valores. Os seus custos não são custos de produção, mas de formação e crescimento de pessoas a integrar socialmente e que contribuirão com o seu saber, o seu saber fazer e o seu quadro de valores para o desenvolvimento da sociedade. É, portanto, à sociedade no seu conjunto que cabe o ónus da formação dos seus membros. Tal não quer dizer, todavia, que o interesse público em matéria de educação e ensino se confunda com ensino público estatal. (…)
O Estado não tem, porém, o direito de impor currículos exaustivos, programas ideologicamente direccionados e processos educativos exclusivos, contrários à legitima e necessária autonomia das diferentes comunidades e instituições educativas. O critério deve ser o da qualidade, quer dos projectos e processos educativos, quer de cada uma das escolas concretas, comprovada pelo seu agir quotidiano, e não de quaisquer imposições arbitrárias da administração educativa.
Um olhar de esperança no futuro
É com muita esperança que olhamos o futuro da escola e da educação em Portugal. Acreditamos que é possível e urgente credibilizar as instituições educativas escolares, dignificar e conceder mais autonomia e responsabilidade ao trabalho dos profissionais docentes, melhorar os resultados escolares e criar ambientes mais estimuladores de um trabalho contínuo, exigente e de permanente revelação humana de todos e de cada um dos alunos, envolver mais os vários actores sociais de cada comunidade no investimento de uma educação de qualidade para todos e ao longo de toda a vida e com a vida. (…)
É fundamental clarificar, também ao nível escolar, para onde vamos, com quem vamos e por que caminhos, onde e em quê ou quem radicamos as nossas convicções e ancoramos a nossa esperança, que ser humano queremos ajudar a formar. (…)
A todos aqueles que têm responsabilidades na estruturação, organização e regulamentação do sistema educativo português, apelamos a um profundo respeito pela autonomia das instituições escolares, em nome do princípio da subsidiariedade que deve reger as relações entre os vários intervenientes no processo educativo.
Fazemos um especial apelo aos pais para que não descurem nunca e a nenhum pretexto a educação dos seus filhos. Para isso, intervenham construtivamente na escola, participem nas reuniões para que são convocados, dialoguem com os professores e organizem-se em associações de pais que trabalham legalmente e de modo positivo com as escolas onde estudam os seus filhos.
A todos os que, nas diversas instituições educativas, culturais e religiosas, nas diversas associações políticas, nos vários meios de comunicação social assumem responsabilidades cívicas, exortamos a que contribuam para uma reflexão aprofundada sobre as finalidades, os objectivos, os caminhos e os meios da educação escolar no nosso País, não esquecendo a sua inserção em espaços culturais, políticos e económicos mais vastos.
A todos aqueles que estudam, trabalham ou estão, de algum modo, envolvidos nas estruturas e instituições educativas, ou delas beneficiam, queremos deixar uma palavra de incentivo e de esperança no futuro. Com vigilância, prudência, trabalho, amor e dedicação, todos podemos contribuir para que a escola cumpra, efectivamente, a missão a que está destinada – a formação integral e o desenvolvimento harmonioso das nossas crianças e jovens.