"Janeiro, 11 [de 1949] - Para começar, o metodólogo falou connosco durante uma hora. De acordo com o que disse, vão ser as aulas de Português o que eu gosto que elas sejam: um pretexto para estar a conviver com os rapazes, alegremente e sinceramente. E dentro dessa convivência, como quem brinca ou como quem se lembra de uma coisa que sabe e que vem a propósito, ir ensinando. Depois, esta nota importantíssima: lembrar-se a gente de que deve aceitar os rapazes como rapazes: deixá-los ser: 'porque até o barulho é uma coisa agradável, quando é feito de boa-fé.'
Houve nesta conversa uma palavra para guardar tanto como as outras, mais que todas as outras: 'O que eu quero principalmente é que vivam felizes'."
Sebastião da Gama. Diário (1958)
Em 11 de Janeiro de 1949, Sebastião da Gama tinha 24 anos. Licenciara-se em Filologia Românica, em Lisboa, cerca de um ano e meio antes, com a tese de licenciatura intitulada Apontamentos sobre a Poesia Social no Século XIX, com a classificação final de 17 valores. Três meses depois de obtida a licenciatura, em 14 de Outubro de 1947, Sebastião da Gama iniciava o seu percurso de professor em Setúbal, na Escola Industrial e Comercial de João Vaz (actual Escola Secundária Sebastião da Gama), onde era director o açoriano Armando Pereira Athayde de Medeiros. Nesta escola, leccionou como professor provisório entre 14 de Outubro de 1947 e 31 de Julho de 1948 e também no ano lectivo seguinte, entre 19 de Outubro de 1948 e 10 de Janeiro de 1949.
Em 11 de Janeiro de 1949, Sebastião da Gama tinha 24 anos, a licenciatura, a experiência lectiva de professor provisório na Escola João Vaz e vários textos publicados – os poemas saídos no jornal montijense Gazeta do Sul a partir de 1940; os livros de poemas Serra-Mãe, de 1945, e Cabo da boa esperança, de 1947, e umas Loas a Nossa Senhora da Arrábida, datadas de 1946, escritas em parceria com Miguel Caleiro.
Em 11 de Janeiro de 1949, Sebastião da Gama tinha 24 anos e iniciava o seu estágio de professor na Escola Veiga Beirão, em Lisboa, desse dia datando a primeira página do seu Diário, onde regista as observações do professor metodólogo, Virgílio Couto, que iam ao encontro do que Sebastião da Gama desejava que fossem as aulas.
Sebastião da Gama tinha bem a noção da razão de ser de um diário. Ao longo do texto, há várias referências ao que seriam as características de um diário, ainda que, na altura, esta forma de escrita não estivesse consignada com suficiente importância nos géneros literários. Mas torna-se evidente que este professor redigia um diário para ser o seu espaço e tempo de reflexão sobre a sua prática pedagógica durante o tempo de estágio, sobretudo numa área tão sensível como era a do ensino do Português, misto entre o estudo do funcionamento da língua e o conhecimento da literatura e da cultura portuguesas, não omitindo algumas confidências que bem integrariam uma espécie de diário “íntimo”:
a) em 18 de Março de 1949, estabelece a diferença entre um diário que podia ser de circunstância e o diário íntimo, não faltando mesmo alguma dose de ironia quanto à finalidade do diário como documento de verdade – “Bem haja o metodólogo por esta ideia do diário. A gente assim pode olhar para trás e ver vida – tempo enchido com coração em lugar de com fórmulas. (…) Com esta inovação, descobriu o nosso metodólogo nada mais nada menos do que a maneira de nos levar a fazer exame de consciência. E deixa-nos, ainda, um documento em que se regista o que está bem que se faça e o que está bem que se não torne a fazer. Além disso, como palavra puxa palavra, vou carreando para aqui coisas que me interessam (sombras da minha infância, luzes intensas dos meus últimos dias…) e o pó do tempo havia de velar um dia. Isto é quase um diário íntimo – e se digo que é quase, é porque, apesar de tudo, sei muito bem que outros, que não só eu, o vão ler, e isso, que não obsta a que sejam sinceras todas as minhas palavras e verdadeiras todas estas histórias, me impede de contar certas ‘coisas que terei pudor / de contar seja a quem for’. Outra vantagem do diário sobre o livro de ponto é esta: é que no livro de ponto a assinatura pode-se falsificar.”
b) em 4 de Maio de 1949, assume o diário como possibilidade de criatividade e de imaginação, permitindo-se jogar com palavras – “A lição tratou do gerúndio, dos muitos e diferentes de sentido do emprego do gerúndio. E não pretendi que eles soubessem cantar: o gerúndio serve para isto, para aquilo, para aquelitro (passe o neologismo necessário e suficiente – isto é um diário íntimo)”.
c) acabado o ano lectivo de 1948-1949, no texto “Uma página de férias”, o diário pretende fugir àquilo que seria um simples exercício sugerido pelo metodólogo, abrindo mesmo espaço para o anedotário vivido com os alunos e caminho para uma ideia de diário enquanto lugar de confidência do eu consigo mesmo – “Ou isto é um diário íntimo ou não no é. Porque não hei-de guardar aqui meia dúzia de anedotas que têm o sabor único de as ter vivido eu, de as terem vivido os meus rapazes?”
d) em 11 de Outubro de 1950, já na Escola Comercial e Industrial de Estremoz, professor com mais turmas do que aquelas que lhe foram atribuídas durante o estágio, Sebastião da Gama mantém ainda a ideia de continuar um diário de professor, confrontando-se com a necessidade de confiar a esta escrita uma parte da sua vida: “Está claro que não pode este diário ter a exacta feição dos dois primeiros volumes [alusivos aos anos lectivos de estágio, respectivamente, 1948-49 e 1949-50]. Pôr aqui todas as aulas? Era preciso que eu fosse um professor extraordinário; o professor que eles quase pensam que sou. Pois se eu estou atrapalhado!... Não sei por onde, não sei como começar. Ou me está a faltar a genica ou me está a faltar a imaginação. O diário vai então servir, como há dois anos em Setúbal, para guardar o melhor do que me for acontecendo.”
Em 11 de Janeiro de 1949, Sebastião da Gama tinha 24 anos, a licenciatura, a experiência lectiva de professor provisório na Escola João Vaz e vários textos publicados – os poemas saídos no jornal montijense Gazeta do Sul a partir de 1940; os livros de poemas Serra-Mãe, de 1945, e Cabo da boa esperança, de 1947, e umas Loas a Nossa Senhora da Arrábida, datadas de 1946, escritas em parceria com Miguel Caleiro.
Em 11 de Janeiro de 1949, Sebastião da Gama tinha 24 anos e iniciava o seu estágio de professor na Escola Veiga Beirão, em Lisboa, desse dia datando a primeira página do seu Diário, onde regista as observações do professor metodólogo, Virgílio Couto, que iam ao encontro do que Sebastião da Gama desejava que fossem as aulas.
Sebastião da Gama tinha bem a noção da razão de ser de um diário. Ao longo do texto, há várias referências ao que seriam as características de um diário, ainda que, na altura, esta forma de escrita não estivesse consignada com suficiente importância nos géneros literários. Mas torna-se evidente que este professor redigia um diário para ser o seu espaço e tempo de reflexão sobre a sua prática pedagógica durante o tempo de estágio, sobretudo numa área tão sensível como era a do ensino do Português, misto entre o estudo do funcionamento da língua e o conhecimento da literatura e da cultura portuguesas, não omitindo algumas confidências que bem integrariam uma espécie de diário “íntimo”:
a) em 18 de Março de 1949, estabelece a diferença entre um diário que podia ser de circunstância e o diário íntimo, não faltando mesmo alguma dose de ironia quanto à finalidade do diário como documento de verdade – “Bem haja o metodólogo por esta ideia do diário. A gente assim pode olhar para trás e ver vida – tempo enchido com coração em lugar de com fórmulas. (…) Com esta inovação, descobriu o nosso metodólogo nada mais nada menos do que a maneira de nos levar a fazer exame de consciência. E deixa-nos, ainda, um documento em que se regista o que está bem que se faça e o que está bem que se não torne a fazer. Além disso, como palavra puxa palavra, vou carreando para aqui coisas que me interessam (sombras da minha infância, luzes intensas dos meus últimos dias…) e o pó do tempo havia de velar um dia. Isto é quase um diário íntimo – e se digo que é quase, é porque, apesar de tudo, sei muito bem que outros, que não só eu, o vão ler, e isso, que não obsta a que sejam sinceras todas as minhas palavras e verdadeiras todas estas histórias, me impede de contar certas ‘coisas que terei pudor / de contar seja a quem for’. Outra vantagem do diário sobre o livro de ponto é esta: é que no livro de ponto a assinatura pode-se falsificar.”
b) em 4 de Maio de 1949, assume o diário como possibilidade de criatividade e de imaginação, permitindo-se jogar com palavras – “A lição tratou do gerúndio, dos muitos e diferentes de sentido do emprego do gerúndio. E não pretendi que eles soubessem cantar: o gerúndio serve para isto, para aquilo, para aquelitro (passe o neologismo necessário e suficiente – isto é um diário íntimo)”.
c) acabado o ano lectivo de 1948-1949, no texto “Uma página de férias”, o diário pretende fugir àquilo que seria um simples exercício sugerido pelo metodólogo, abrindo mesmo espaço para o anedotário vivido com os alunos e caminho para uma ideia de diário enquanto lugar de confidência do eu consigo mesmo – “Ou isto é um diário íntimo ou não no é. Porque não hei-de guardar aqui meia dúzia de anedotas que têm o sabor único de as ter vivido eu, de as terem vivido os meus rapazes?”
d) em 11 de Outubro de 1950, já na Escola Comercial e Industrial de Estremoz, professor com mais turmas do que aquelas que lhe foram atribuídas durante o estágio, Sebastião da Gama mantém ainda a ideia de continuar um diário de professor, confrontando-se com a necessidade de confiar a esta escrita uma parte da sua vida: “Está claro que não pode este diário ter a exacta feição dos dois primeiros volumes [alusivos aos anos lectivos de estágio, respectivamente, 1948-49 e 1949-50]. Pôr aqui todas as aulas? Era preciso que eu fosse um professor extraordinário; o professor que eles quase pensam que sou. Pois se eu estou atrapalhado!... Não sei por onde, não sei como começar. Ou me está a faltar a genica ou me está a faltar a imaginação. O diário vai então servir, como há dois anos em Setúbal, para guardar o melhor do que me for acontecendo.”
Um livro indispensável. A ser lido por quem se preocupe com a educação, por quem nela trabalhe. Um livro que não se conforma com a poeira do tempo...
DISSERAM SOBRE O DIÁRIO DE SEBASTIÃO DA GAMA:
Hernâni Cidade: “Este Diário, que Sebastião da Gama deixou manuscrito, é o registo quotidiano das suas experiências de estagiário do Ensino Técnico, e seria, não se sabe até que altura, o programa da sua carreira de professor, se a Morte lhe não houvesse tão prematuramente posto termo. (…) Professor e poeta, afinal, mostra este documento como eram duas faces da mesma fisionomia espiritual, como se integravam na realidade concreta duma singularíssima alma, como em toda a minha longa vida de professor me não foi dado conhecer outra.” (“Prefácio”, in Diário. Lisboa: Ática, 1958).
Ramiro Marques: “A recusa da pedagogia tradicional é fruto, parece-me, mais de uma reflexão diária sobre a prática (a existência do Diário é prova disso) que do conhecimento estruturado das modernas correntes pedagógicas. A pedagogia em Gama toma forma com a experiência, o repensar dos êxitos e dos fracassos e subordina-se fundamentalmente à procura da felicidade. (…) O grande objectivo da educação é a felicidade. (…) Mas Gama, ao procurar a felicidade para os outros, não faz mais do que procurar a sua. (…) Todas as estratégias seguidas e meticulosamente registadas no Diário se subordinam a este objectivo. E, convenhamos, é nas estratégias utilizadas que reside muito da modernidade de Sebastião da Gama.” (in Modelos de ensino para a Escola Básica. Lisboa: Livros Horizonte, 1985).
Clara Rocha: “Se este diário é o registo duma comunhão do professor com os alunos, ele é-o também duma comunhão do eu com os outros. (…) A aula é uma transposição de vida. E nessa transposição simbólica reside o melhor deste diário. Estas páginas não nos revelam, literalmente, um professor comprazendo-se no registo dos seus sucessos pedagógicos ou auto-criticando-se quando não obteve os resultados desejados. Mostram-nos, isso sim, um ser disposto a fazer da sua vida, afinal breve, uma dádiva total aos outros. (…) Para Sebastião da Gama, a literatura não está tanto na forma, como na atitude espiritual. As palavras, para ele, são apenas o instrumento de que se serve para ofertar aos outros o próprio coração.” (in Máscaras de Narciso – Estudos sobre a literatura autobiográfica em Portugal. Coimbra: Almedina, 1992).
Ramiro Marques: “A recusa da pedagogia tradicional é fruto, parece-me, mais de uma reflexão diária sobre a prática (a existência do Diário é prova disso) que do conhecimento estruturado das modernas correntes pedagógicas. A pedagogia em Gama toma forma com a experiência, o repensar dos êxitos e dos fracassos e subordina-se fundamentalmente à procura da felicidade. (…) O grande objectivo da educação é a felicidade. (…) Mas Gama, ao procurar a felicidade para os outros, não faz mais do que procurar a sua. (…) Todas as estratégias seguidas e meticulosamente registadas no Diário se subordinam a este objectivo. E, convenhamos, é nas estratégias utilizadas que reside muito da modernidade de Sebastião da Gama.” (in Modelos de ensino para a Escola Básica. Lisboa: Livros Horizonte, 1985).
Clara Rocha: “Se este diário é o registo duma comunhão do professor com os alunos, ele é-o também duma comunhão do eu com os outros. (…) A aula é uma transposição de vida. E nessa transposição simbólica reside o melhor deste diário. Estas páginas não nos revelam, literalmente, um professor comprazendo-se no registo dos seus sucessos pedagógicos ou auto-criticando-se quando não obteve os resultados desejados. Mostram-nos, isso sim, um ser disposto a fazer da sua vida, afinal breve, uma dádiva total aos outros. (…) Para Sebastião da Gama, a literatura não está tanto na forma, como na atitude espiritual. As palavras, para ele, são apenas o instrumento de que se serve para ofertar aos outros o próprio coração.” (in Máscaras de Narciso – Estudos sobre a literatura autobiográfica em Portugal. Coimbra: Almedina, 1992).
[Fotos de capas do Diário - 1ª ed (Ática, 1958), 7ª ed (Ática, 1986), 12ª ed (Arrábida, 2003), 13ª ed (Arrábida, 2005)]
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