segunda-feira, 23 de março de 2009

"Desisto", de Philippe Claudel

Desisto, de Philippe Claudel (Alfragide: Edições ASA, 2009), é uma narrativa curta, na primeira pessoa, de um técnico cujo trabalho é, num hospital, o anúncio às famílias da morte dos seus próximos, seguido do convencimento para que seja autorizada a doação de órgãos.
A história desenrola-se enquanto à sua frente está uma mulher que acaba de ser informada da morte de um parente. É um frente a frente de desvantagens, numa reflexão sobre a vida e a morte, sobre as vidas, sobre o ser humano hoje. O técnico regista a história e as reflexões para uma filha de cerca de dois anos, também já órfã de mãe. E a mistura dos dramas acaba por acontecer, assim como a revolta, que vai aumentando.
O que fica
1. “Hoje em dia, toda a gente evita chamar as coisas pelos nomes: um cego é um invisual, um animador de televisão um artista, os mortos em breve serão não-vivos.”
2. “Hoje em dia, as pessoas param para fruir do infortúnio dos outros, da visão dos cães gemendo nos derradeiros espasmos, dos corpos esfacelados entre as chapas das viaturas, mas prosseguem o seu caminho quando lhes dirigem súplicas. Não ouvem quando lhes gritam que parem e prestem auxílio.”
3. “Já não sabemos onde arrumar as guerras. Faltam-nos gavetas. A nossa memória é um abismo onde se acumulam muitos cadáveres. Transborda de corpos sem vida. Consumimo-los em genocídios inteiros à medida que os jornais no-los trazem, e depois misturamo-los, branqueamos tudo, amalgamamo-los, o que é bem mais eficaz do que a cal viva.”
4. “Nunca pensamos nos vivos com a intensidade que merecem e que só a morte consegue despontar dentro de nós. Não olhamos para os vivos.”
5. “Todos nós transportamos cruzes modernas, suportamos o insuportável num corpo destinado ao comércio, num corpo que já não nos pertence. Tudo o que não marca não existe. Os jovens empenham o cérebro e a alma num pequeno crocodilo verde, em três faixas pretas, numa vírgula horizontal: fora disso, não existem. Lacoste, Adidas e Nike tornaram-se a trindade de uma religião oca, cada dia mais cheia de santos e que condena os homens a mascarar-se de hambúrguer para ganhar a vida. Ganhar a vida, mas que vida?”
6. “Toda a gente tem a sua ética, todas as profissões, e mesmo as piores, sobretudo as piores. A moral morreu mas inventaram uma nova alma, a ética, mais volátil, evanescente, mais moderna e majestosa.”

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