Era, mas já não é. O que é?
Era necessário observar aulas de professores avaliados, mas já não é. Só a pedido, para quem aspire a ser muito bom ou excelente. Era necessário observar três aulas, mas já não é. Duas chegam, a pedido. Era o coordenador que avaliava os colegas de departamento, mas já não é. Agora pode vir alguém de fora, rigor científico protegido. Era muito importante cumprir objectivos previamente definidos, mas já não é. Os resultados escolares e as taxas de abandono deixaram de contar. Era necessário fazer reuniões entre avaliadores e avaliados, mas já não é. Basta que estejam de acordo. Era um processo para todos, mas já não é. Ficam de fora os contratados para determinadas áreas tecnológicas e artísticas, não pertencentes aos grupos de recrutamento, e os que se reformarão até 2011. Tudo somado, uns belos milhares. Era preciso desdobrar um monte de fichas numa montanha de parâmetros para chegar a uma avalanche de itens, mas já não é. Caiu o número quê bê. O que é? A saga da avaliação do desempenho no seu melhor, a política a descer ao charco. A juventude socialista foi para a porta das escolas doutrinar os alunos com manifestos apelativos. Nos jornais, os de distribuição gratuita incluídos, em prática antes nunca vista, publicam-se anúncios, pagos com o dinheiro dos nossos impostos, para arregimentar o pagode. Os endereços electrónicos dos professores, facultados para outros fins, protegidos pela ética da protecção de dados, ora mandada às malvas, são usados pelo Ministério da Educação, para manipular e pressionar. A remuneração complementar dos futuros directores das escolas, os peões que a visão napoleónica de Sócrates começa a colocar no terreno, subiu quase 50 por cento. Aos saltimbancos da profissão acenou-se com um generoso aumento de vagas para o próximo concurso. O que é? A investida do Governo para dividir e desmobilizar os professores, no sentido de esvaziar a greve marcada para 19 de Janeiro.
Já aqui escrevi que a avaliação é um epifenómeno menor de uma política desastrosa para a qualidade da educação. Neste conflito, já perdeu o país. Já perderam os alunos. Já perdeu o Governo, o primeiro-ministro e a ministra da Educação. Podem agora perder os professores se não perceberem, como classe com responsabilidade social particular, que é a dignidade deles e a qualidade da escola pública que estão em jogo. Talvez possamos ser indulgentes para com os pobres que vendem o voto por electrodomésticos distribuídos porta a porta. Mas não esperem os professores indulgência se cederem às primeiras facilidades e aceitarem sinecuras sem princípios. Um grupo de professores convidou-me há dias para partilhar com eles a minha visão sobre o actual momento político. No debate que se seguiu evidenciaram-se sinais preocupantes, narrados por quem está no terreno. Há quem tenha assumido documentalmente a recusa a ser avaliado e tenha entregue, sob sigilo, os objectivos requeridos pelo processo? Tem expressão relevante o grupo dos que, sob pretexto de não serem ultrapassados por oportunistas, deixam cair compromissos pessoais anteriores e engrossam a onda daqueles que dizem que a simplificação consumada mudou o cenário? Estas perguntas foram feitas aos presentes por um dos participantes. As respostas que ouvi deixaram-me perplexo. Várias perguntas que me foram dirigidas versavam questões sobre o efeito que o conflito tem produzido na opinião pública. Respondi recordando processos de outras classes profissionais. Naturalmente que comecei pelos médicos, cuja recente ameaça de greve, terrível para o julgamento público, chegou para meter na gaveta a ideia peregrina de lhes aumentar desumanamente o tempo de trabalho, ainda por cima sem qualquer compensação remuneratória. E falei também dos juízes e dos militares. Naquele grupo, todos estivemos de acordo sobre a necessidade de pôr princípios e dignidade à frente da opinião pública, nem sempre esclarecida, tantas vezes envenenada. Não sei se aquele grupo é representativo do que sente a classe.
Santana Castilho. "Era, mas já não é. O que é?". Público: 24.Dezembro.2008
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