sábado, 13 de dezembro de 2008

Ser deputado - a crónica de São José Almeida e as faltas desta legislatura

A reedição, pela enésima vez, da discussão sobre as faltas dos deputados chega a ser ridícula e revela, em todo o seu esplendor, o cinismo da classe política portuguesa. As regras do Parlamento português são conhecidas, foram feitas e são mantidas pelos partidos com assento parlamentar, por maioria de razão pelos dois maiores partidos, PS e PSD. E se há deputados, vários deputados até, que não se respeitam a si próprios e ao mandato que receberam dos eleitores, isso acontece porque tal é permitido pelo sistema de funcionamento dos partidos e do Parlamento. Só pode assim ser visto como um acto de cinismo político que os responsáveis actuais ou anteriores pela direcção dos partidos parlamentares venham criticar deputados que faltam a votações, quando são esses dirigentes partidários que são responsáveis pelo que se passa.
Portugal é uma democracia e como democracia assenta no parlamentarismo e na existência de partidos. Não há, aliás, democracias nem parlamentarismo sem partidos. A própria Constituição impõe, no seu artigo 151.º, que apenas através de partidos podem ser apresentadas candidaturas de cidadãos à eleição do mandato do deputado.

Agora a forma como esses partidos se organizam e funcionam no sentido da maior transparência e dignidade do sistema e do aumento da credibilidade da democracia é da exclusiva responsabilidade dos seus dirigentes. E têm sido os dirigentes partidários, em especial os do PS e os do PSD, que têm permitido e desejado a adopção e manutenção das regras vigentes.
O sistema político português tem já mais de três décadas e tem evoluído desde a fundação da democracia. É por isso que a natureza do mandato do deputado, inscrita na Constituição desde 1976, tem sido adaptada no sentido de os partidos terem cada vez mais peso e poder sobre a forma como se rege o Parlamento e é exercido o mandato de deputado.
Senão vejamos. A Constituição mantém princípios, como os expressos no artigo 155.º, em que se lê que "os deputados exercem livremente o seu mandato", ou no artigo 159.º, que afirma que "constituem deveres dos deputados: a) comparecer às reuniões do plenário e às das comissões a que pertençam" e "c) participar nas votações". Mas é por acordo político, feito entre os partidos, que se chegou a regras de funcionamento que permitem que o líder da bancada vote e sejam contados todos os votos do respectivo grupo. Ora, a desresponsabilização do deputado do real exercício do seu mandato é obra dos partidos e das direcções parlamentares, para quem é mais fácil gerir o grupo tendo deputados amorfos que se deixam manietar, sem precisar de estar sequer nas votações.
São estes mesmos partidos que têm brincado, há mais de uma década, às revisões de sistema eleitoral. Num faz-de-conta que não engana ninguém. Anunciando aperfeiçoamentos que melhorem a aproximação entre eleitos e eleitores, mas não passando das promessas. Contratando estudos que usam a academia, mas não passam de engodos ao cidadão. Levando ao descrédito absoluto sobre a verdadeira vontade de mudar o que quer que seja.
É sabido e está discutido à exaustão que há formas de melhorar a representação e a aproximação eleitores-eleitos. Isso é obtido quer pela adopção de um sistema eleitoral misto que inclua círculos locais uninominais maioritários, quer pela manutenção da proporcionalidade, mas com círculos mais pequenos, ou ainda pela adopção de voto preferencial.
Mas os dirigentes partidários e suas clientelas não querem que haja de facto individualização dos candidatos a deputados, porque isso traria deputados mais autónomos e a autonomia dos deputados é a ultima coisa que os partidos querem. É por isso que é profundamente cínico ver os actuais e antigos dirigentes partidários e deputados com responsabilidades sobre o sistema dizerem que querem mudar as regras e vociferar contra deputados faltosos. Quando o que de facto lhes interessa é gente que se sente no hemiciclo, mas que seja absentista, de presença e, sobretudo, de pensamento.
Repitamos. A Constituição diz no artigo 159.º que "constituem deveres dos deputados: a) comparecer às reuniões do plenário e às das comissões a que pertençam (...) c) participar nas votações". Qualquer cidadão que se candidate a deputado deveria ter a honra de cumprir os deveres do mandato que os eleitores lhe atribuem. Os deputados devem ser autónomos. É certo que não há Parlamento sem partidos. Mas os deputados devem ser soberanos e, sem pôr em causa a sobrevivência e as directrizes dos partidos pelos quais foram eleitos, não devem deixar subestimar a sua autonomia.
É evidente que se viveu na Assembleia da República um momento político de maior importância. É evidente que se a recomendação ao Governo para suspender a avaliação na educação tem sido aprovada, embora não fosse vinculativa, funcionaria como uma monumental moção de censura simbólica, que daria versão institucional e parlamentar aos protestos que têm levado à rua milhares de professores. E é absolutamente verdade também que a gravidade do momento que se viveu não passa apenas pelas faltas dos deputados do PSD. Há também um facto de importância maior, que não pode ser ignorado nem misturado na questão das faltas, que é a existência deputados do PS que votaram contra o Governo do seu partido.
Ou seja, há deputados que, mesmo ao arrepio e até contra o sistema vigente, assumem o seu mandato em toda a sua dimensão. Enquanto há outros que interiorizaram o abastardamento da sua função de deputados e deixaram aos partidos todo o poder de falar e agir por si. No fundo, aceitaram ser arregimentados para as listas, assumem o mandato numa perspectiva puramente aparelhística e carreirista. Em suma, aceitam fazer uma comissão de serviço a troco dos dividendos que o prestígio e a influência de se sentarem em São Bento lhes dá. Não são por isso verdadeiramente deputados, mas tão-só arregimentados.
São José Almeida. "Ser deputado ou arregimentado". Público, 13.Dez.2008


Entretanto, ainda no Público de hoje, é divulgado um quadro que explica as faltas dos deputados na presente legislatura. Quase tudo está justificado, é verdade. Tudo pode até ter justificação. Mas tem sido pelas mesmas razões que muitas vozes da política (e não só) se têm levantado contra outros sectores, nomeadamente o dos professores, dizendo cobras e lagartos. E as faltas também estariam, na sua quase totalidade, justificadas... Eis então o quadro:

Sem comentários: