«(...) Ninguém viu chegar a Revolução Francesa. Ninguém previu a queda do Muro de Berlim, a implosão da União Soviética e o fim do comunismo, que encerraram o século XX. Durante essa euforia, também não se imaginou que imediatamente se lhe seguiria a carnificina na ex-Jugoslávia. Se 1989 a todos surpreendeu, também ninguém previu o acontecimento fundador do século XX, a I Guerra Mundial (1914-18). É a mais eloquente introdução à incerteza e à irracionalidade na História.
Dela nasceram as tragédias do século. Sem ela, são inconcebíveis a vitória do comunismo na Rússia, a ascensão dos fascismos, Hitler e o Holocausto. A guerra fria foi o seu derradeiro produto.
A Grande Guerra, como foi designada pelos contemporâneos, iniciou o declínio da Europa, fez emergir a hegemonia americana, abriu inclusive o caminho ao futuro imperialismo japonês. Foi uma chacina, com quase nove milhões de mortos e 20 milhões de feridos e estropiados. Provocou uma catástrofe demográfica. A grande inflação dos anos 1920, que precedeu a crise económica de 1929, não só arruinou grupos sociais inteiros como corroeu a segurança dos europeus nas instituições, minou a credibilidade do Estado liberal e glorificou os autoritarismos. E, acima de tudo, foi um laboratório de barbárie: tornou irrisório o valor da vida humana, o que terá uma importância determinante na mentalidade da primeira metade do século.
Esta tragédia tem outra dimensão assustadora: a guerra nasce de uma inimaginável combinação de erros de cálculo por parte de todos os actores, o que desencadeia uma engrenagem incontrolável. O atentado de Sarajevo (28 de Junho de 1914), em que um terrorista sérvio assassinou o arquiduque austríaco Francisco-Fernando, foi o pretexto que a Áustria-Hungria tentou aproveitar para resolver a seu favor a questão balcânica, esmagando a Sérvia. A declaração de guerra a Belgrado é feita a 28 de Julho. Em poucos dias o conflito está generalizado.
Discute-se ainda hoje se a Alemanha queria a guerra. A querer, não seria esta. Berlim foi arrastada por Viena, o seu mais importante aliado, com base num duplo equívoco: a convicção de que a Rússia não interviria e de que a Inglaterra se manteria de lado. A Rússia, para quem o ultimato austríaco à Sérvia era inaceitável, precipitou a mobilização e encostou à parede a França, que não podia também abandonar o seu principal aliado contra a Alemanha. Londres envolveu-se na engrenagem apostando em que a diplomacia faria recuar Berlim e travaria Viena. Pior: todos os políticos e estados-maiores concebiam uma "pequena guerra", de semanas ou escassos meses. Todos tinham objectivos geopolíticos limitados.
O que melhor explica a extensão da guerra, escreveu o historiador Jean-Jacques Becker, não são os interesses imperialistas mas a explosão dos sentimentos nacionais, que, uma vez iniciado o conflito, o tornaram inexorável e total. Em polémica com historiadores marxistas, escreveu Raymond Aron: "Se os homens de Estado e os povos tivessem agido segundo a racionalidade económica, a guerra de 1914 não teria tido lugar. Nem os monopólios nem a dialéctica teriam tornado inevitável o que era irracional." (...)»
Jorge Almeida Fernandes. "A história prevê-se depois de acontecer". Público (revista "Pública"): 28.Dezembro.2008.
[foto: tropas canadianas na trincheira, em 1918 - arquivo da revista Life]
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