Concluído no segundo semestre de 1954, Desporto Rei seria editado no ano seguinte (Lisboa: Livraria Clássica Editora). Hoje, passado mais de meio século sobre essa primeira edição, a história narrada mantém actualidade, ainda que devendo caber ao leitor a explicação para os saltos no tempo e a compreensão das mudanças.
Como o título do livro indica, o mundo é o do futebol. A história passa-se “numa pacata vila de província, onde só dois conterrâneos jogavam o futebol, mas com o qual vários especulavam – e a que quase todos assistiam.” Esta informação consta em epígrafe, a abrir a obra, mas encontra ecos em vários pontos da narrativa, como no dia em que a equipa joga com um visitante do Norte, disputando a passagem à divisão principal, e Campos Mota comenta para o director Olímpio Nunes “Hoje, é possível que vendas dez mil garrafas de refrescos… mas, em contrapartida, só dois conterrâneos nossos praticam desporto num concelho de vinte mil habitantes” ou no momento da Assembleia Geral que discutia o futuro do clube e alguém, contestando as políticas seguidas pela Direcção, grita “Queremos desporto! Não queremos negócio!...”
A trama passa-se em torno do Vila Clara Futebol Clube durante o mês de Junho, com uma Direcção que apostara a passagem da equipa para a 1ª Divisão, sobretudo pelo que isso significava em termos de reputação para o clube e para o concelho. É esse lugar que almejam Carvalhinho da Moagem, Joaquim Campino, Soares do hotel, Olímpio Nunes, Valentim da Silva ou Procópio Cabral, directores que pretendiam defender mais a sua posição (e ascensão) social do que o desporto, razões que levam a forte contestação local, com ameaças e maledicência à mistura. Pelos relvados, em representação do Vila Clara, passam nomes como Caralinda, Raposo, Juju (angolano), Horácio, Belarmino, Justo, Torres, Guilherme, Amílcar (o mais disputado) e Gomez e Alonso (ambos argentinos), em torno dos quais há o litígio com base no ordenado a receber, há as questões de origem, há as diferenças de qualidade na prática do jogo e há as relações com a direcção. O fenómeno do futebol faz saltar episódios em torno dos seus menos interessantes aspectos, como a tentativa de suborno de guarda-redes ou de jogador, as negociatas à volta da hipotética transferência de atletas (envolvendo mesmo um simulado rapto de jogador), o vínculo existente entre a permanência dos directores e o dinheiro que cada um foi pondo no clube em prol de uma grandiosidade difícil de atingir.
Mas a história passa também pela vida de vários dos directores, nem todos com um percurso absolutamente correcto ou socialmente aceitável. Por aqui vão passando também as tensões sociais; as relações empregador-empregados; as vidas duplas; o viver para lá das posses; a incapacidade de adaptação de empresários à mudança dos tempos, que vão vendo seus ex-empregados (depois empresários, também) com mais sucesso do que eles próprios, chegando a criar-se uma relação de dependência económica dos primeiros em relação aos segundos pelo recurso ao crédito e às letras.
A caracterização das personagens por parte do narrador é reduzida ao mínimo e abrange sobretudo a função social. O resto fica por conta do leitor, que pode traçar os retratos a partir das atitudes tomadas por cada um dos intervenientes, todos eles constituindo personagens-tipo, todos eles constituindo um panegírico da sociedade de um pequeno meio provinciano (com pretensões à ascensão e ao reconhecimento), em que se cruza a familiaridade e a proximidade com os ódios de estimação ou com as paixões e com os favores.
A escrita é, muitas vezes, teatral, com indicações precisas do tom de voz ou dos gestos das personagens quando intervêm, quase em jeito de didascálias. É sempre uma acção rápida, na tentativa de não ser o narrador ultrapassado pelos acontecimentos. Mesmo quando parece que vai surgir um capítulo longo como o que relata o tão falado encontro futebolístico em tarde domingueira e festivaleira, a verdade é que a notícia do jogo é circunstanciada até à expulsão de jogo de Amílcar (ocorrida algures na segunda parte), ficando o leitor e o narrador sem saber o resultado final, pormenor que só é dado a conhecer no capítulo seguinte, no momento em que uma personagem, que não tinha assistido ao desafio por desprezo, pergunta a transeuntes qual fora o desfecho… e o resultado motiva ainda mais o seu gáudio, da mesma forma que motivará o triste espectáculo vivido nas ruas da vila – cenas de pancadaria entre os adeptos visitados e visitantes, autêntica “batalha campal”, em que até o árbitro teve de receber assistência médica que lhe garantiu “treze costuras no coiro cabeludo” e “metade da cabeça rapada”, além de terem recebido curativos “para cima de trinta pessoas”…
No final, a necessidade de conciliação na vila entre todos os adversários e as diferentes linhas de pensamento para a vida do clube: finalmente, ia ser possível que o desporto voltasse para a prática de todos os interessados, com aulas de educação física e a promessa de construção de uma piscina, a fazer lembrar os “bons tempos da ginástica aplicada, da volta ao concelho em bicicleta, da corrida da légua pelo S. Pedro e dos torneios de basquetebol”.
O romance relata esse tempo de intervalo na prática desportiva para todos, equivalente a cerca de seis meses, desde que a Direcção estabelecera como objectivo olhar apenas para o futebol e com ele querer subir ao grupo de elite que era a divisão magna, recorrendo a jogadores estrangeiros e a treinador estrangeiro também (situações que estimularam algum trato racista). No entanto, a história é cheia de dissabores, o que leva mesmo o narrador, no momento em que é conhecido o caso do rapto de Amílcar, a exclamar: “Enfim! Estava-se perante uma nova tragicomédia!...” A frase, além de nos remeter para o mundo do teatro, justifica-se: ao trágico alia-se o riso e, na verdade, as situações contêm tanto de dramático quanto de hilariante – as cartas anónimas, a derrota no jogo, o rapto do jogador, a luta campal, a disputa entre as amantes de Carvalhinho… e, a finalizar a história, o roubo dos tijolos e sacos de cimento para a construção da nova piscina.
Do início ao fim, Desporto Rei é essa história de situações tragicómicas, retrato de um tempo, mas também de uma sociedade. No que à cultura desportiva e ao papel dos dirigentes respeita, não sei se as coisas mudaram muito neste meio século passado desde a publicação do livro. Mas continua a ser verdadeiro o princípio estabelecido na abertura da obra: “O Desporto só é escola de perene juventude e felicidade quando, através dele, se atinge o perfeito equilíbrio entre o músculo e o pensamento – síntese ideal que a velha Grécia nos legou no imorredoiro Discóbolo.” E Romeu Correia, ele mesmo desportista e biógrafo de desportistas, sabia do que falava…
Como o título do livro indica, o mundo é o do futebol. A história passa-se “numa pacata vila de província, onde só dois conterrâneos jogavam o futebol, mas com o qual vários especulavam – e a que quase todos assistiam.” Esta informação consta em epígrafe, a abrir a obra, mas encontra ecos em vários pontos da narrativa, como no dia em que a equipa joga com um visitante do Norte, disputando a passagem à divisão principal, e Campos Mota comenta para o director Olímpio Nunes “Hoje, é possível que vendas dez mil garrafas de refrescos… mas, em contrapartida, só dois conterrâneos nossos praticam desporto num concelho de vinte mil habitantes” ou no momento da Assembleia Geral que discutia o futuro do clube e alguém, contestando as políticas seguidas pela Direcção, grita “Queremos desporto! Não queremos negócio!...”
A trama passa-se em torno do Vila Clara Futebol Clube durante o mês de Junho, com uma Direcção que apostara a passagem da equipa para a 1ª Divisão, sobretudo pelo que isso significava em termos de reputação para o clube e para o concelho. É esse lugar que almejam Carvalhinho da Moagem, Joaquim Campino, Soares do hotel, Olímpio Nunes, Valentim da Silva ou Procópio Cabral, directores que pretendiam defender mais a sua posição (e ascensão) social do que o desporto, razões que levam a forte contestação local, com ameaças e maledicência à mistura. Pelos relvados, em representação do Vila Clara, passam nomes como Caralinda, Raposo, Juju (angolano), Horácio, Belarmino, Justo, Torres, Guilherme, Amílcar (o mais disputado) e Gomez e Alonso (ambos argentinos), em torno dos quais há o litígio com base no ordenado a receber, há as questões de origem, há as diferenças de qualidade na prática do jogo e há as relações com a direcção. O fenómeno do futebol faz saltar episódios em torno dos seus menos interessantes aspectos, como a tentativa de suborno de guarda-redes ou de jogador, as negociatas à volta da hipotética transferência de atletas (envolvendo mesmo um simulado rapto de jogador), o vínculo existente entre a permanência dos directores e o dinheiro que cada um foi pondo no clube em prol de uma grandiosidade difícil de atingir.
Mas a história passa também pela vida de vários dos directores, nem todos com um percurso absolutamente correcto ou socialmente aceitável. Por aqui vão passando também as tensões sociais; as relações empregador-empregados; as vidas duplas; o viver para lá das posses; a incapacidade de adaptação de empresários à mudança dos tempos, que vão vendo seus ex-empregados (depois empresários, também) com mais sucesso do que eles próprios, chegando a criar-se uma relação de dependência económica dos primeiros em relação aos segundos pelo recurso ao crédito e às letras.
A caracterização das personagens por parte do narrador é reduzida ao mínimo e abrange sobretudo a função social. O resto fica por conta do leitor, que pode traçar os retratos a partir das atitudes tomadas por cada um dos intervenientes, todos eles constituindo personagens-tipo, todos eles constituindo um panegírico da sociedade de um pequeno meio provinciano (com pretensões à ascensão e ao reconhecimento), em que se cruza a familiaridade e a proximidade com os ódios de estimação ou com as paixões e com os favores.
A escrita é, muitas vezes, teatral, com indicações precisas do tom de voz ou dos gestos das personagens quando intervêm, quase em jeito de didascálias. É sempre uma acção rápida, na tentativa de não ser o narrador ultrapassado pelos acontecimentos. Mesmo quando parece que vai surgir um capítulo longo como o que relata o tão falado encontro futebolístico em tarde domingueira e festivaleira, a verdade é que a notícia do jogo é circunstanciada até à expulsão de jogo de Amílcar (ocorrida algures na segunda parte), ficando o leitor e o narrador sem saber o resultado final, pormenor que só é dado a conhecer no capítulo seguinte, no momento em que uma personagem, que não tinha assistido ao desafio por desprezo, pergunta a transeuntes qual fora o desfecho… e o resultado motiva ainda mais o seu gáudio, da mesma forma que motivará o triste espectáculo vivido nas ruas da vila – cenas de pancadaria entre os adeptos visitados e visitantes, autêntica “batalha campal”, em que até o árbitro teve de receber assistência médica que lhe garantiu “treze costuras no coiro cabeludo” e “metade da cabeça rapada”, além de terem recebido curativos “para cima de trinta pessoas”…
No final, a necessidade de conciliação na vila entre todos os adversários e as diferentes linhas de pensamento para a vida do clube: finalmente, ia ser possível que o desporto voltasse para a prática de todos os interessados, com aulas de educação física e a promessa de construção de uma piscina, a fazer lembrar os “bons tempos da ginástica aplicada, da volta ao concelho em bicicleta, da corrida da légua pelo S. Pedro e dos torneios de basquetebol”.
O romance relata esse tempo de intervalo na prática desportiva para todos, equivalente a cerca de seis meses, desde que a Direcção estabelecera como objectivo olhar apenas para o futebol e com ele querer subir ao grupo de elite que era a divisão magna, recorrendo a jogadores estrangeiros e a treinador estrangeiro também (situações que estimularam algum trato racista). No entanto, a história é cheia de dissabores, o que leva mesmo o narrador, no momento em que é conhecido o caso do rapto de Amílcar, a exclamar: “Enfim! Estava-se perante uma nova tragicomédia!...” A frase, além de nos remeter para o mundo do teatro, justifica-se: ao trágico alia-se o riso e, na verdade, as situações contêm tanto de dramático quanto de hilariante – as cartas anónimas, a derrota no jogo, o rapto do jogador, a luta campal, a disputa entre as amantes de Carvalhinho… e, a finalizar a história, o roubo dos tijolos e sacos de cimento para a construção da nova piscina.
Do início ao fim, Desporto Rei é essa história de situações tragicómicas, retrato de um tempo, mas também de uma sociedade. No que à cultura desportiva e ao papel dos dirigentes respeita, não sei se as coisas mudaram muito neste meio século passado desde a publicação do livro. Mas continua a ser verdadeiro o princípio estabelecido na abertura da obra: “O Desporto só é escola de perene juventude e felicidade quando, através dele, se atinge o perfeito equilíbrio entre o músculo e o pensamento – síntese ideal que a velha Grécia nos legou no imorredoiro Discóbolo.” E Romeu Correia, ele mesmo desportista e biógrafo de desportistas, sabia do que falava…
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