A bunda e a ameaça
«Que maçada, mais um artigo sobre a liberdade de expressão, como se a liberdade de expressão estivesse em causa, mais um texto sobre a censura, como se houvesse alguma censura. Isso não são assuntos reais, assuntos importantes, assuntos que interessem aos portugueses, é apenas entretenimento de intelectual, de desocupado, de burguês.
Gostava que o parágrafo anterior fosse uma caricatura, mas cada vez mais corresponde ao que ouço em conversas sempre que alguém defende à mesa a liberdade de expressão. Cada vez mais as opiniões restritivas das liberdades vão sendo mais aprovadas. Não se pode desenhar um Papa com um preservativo no nariz. Não se pode mostrar um Che de bigode hitleriano. Não se pode fazer piadas com as amantes de Salazar. Não se pode publicar cartoons de Maomé. Não se pode ter linguagem preconceituosa. Não se pode. Há nessa matéria uma grande aliança, uma das mais importantes do nosso tempo, entre os reaccionários conservadores e os reaccionários progressistas. Gente que "até concorda" com a circulação livre de palavras, imagens e ideias, "mas com limites". Os limites deles, bem entendido.
É por isso que tudo o que seja atentado à liberdade de expressão deve ser denunciado, criticado, satirizado. Há muito lixo, muita coisa duvidosa, questionável? É possível e provável, mas entrar nessa discussão é já entrar num jogo viciado. Quando a liberdade de expressão é atacada, não se discutem minudências. Há muitas coisas de que eu não gosto, mas não quero viver num mundo em que só exista aquilo de que gosto ou com que concordo. Somos todos crescidinhos, vivemos em sociedades conflituais e complicadas, há que aceitar o conflito e a complicação, encaixar os ataques, as opiniões ofensivas, fazer boa cara à indispensável selva que é viver com os outros.
Por isso, quando uma cadeia de supermercados recusa, pela segunda vez, pôr à venda um romance que considera "pornográfico", convém não encolher os ombros. A Casa dos Budas Ditosos (1999) é uma confissão sexual de uma sexagenária, culta e desabrida, e que cultiva um pansexualismo desenfreado. De "tomar nas coxas" até "comer os amigos", o texto é uma festa pagã de "puxa roupa, tira roupa, aperta pau, dá chupão, chupa peito, lambe xoxota". Daí não vem mal ao mundo. O autor, João Ubaldo Ribeiro, Prémio Camões e um dos grandes escritores brasileiros, é surpreendentemente generoso connosco, e a protagonista até diz: "Aliás, fode-se muito bem em Portugal, ao contrário do que eu suponho ser a opinião generalizada. (...) Vi muitas belas bundas em Portugal, que lá não são chamadas de bundas, mas de cu mesmo, que lá nem é palavrão, veja como são as coisas, grande país subestimado. Bundas de homens e mulheres. Toda mulher portuguesa dá a bunda, ou pelo menos dava, para manter a santa virgindade vaginal, como aqui. Hoje, com a entrada na Comunidade Europeia (...) não sei mais como estão as coisas." É destas passagens que vêm os inomináveis perigos de que nos querem de novo proteger, como antes se protegia a santa virgindade?
É uma infantilidade que gera infantilidades. A recusa da venda de um livro por ser considerado pornográfico tem três abordagens possíveis. Há quem se entretenha a discutir se a obra é realmente pornográfica, como se a literatura não estivesse cheia de sexo explícito, e como se a pornografia, de Sade a Houellebecq, não tivesse uma tradição estabelecida. Há quem se dedique a defender o direito dos supermercados em recusarem vender o que bem entendam, como se não houvesse nenhum problema em que um cavalheiro que lida com stocks de iogurte possa decidir os livros que devemos comprar. Escreveu João Ubaldo, quando soube da notícia: "Viva o Povo Brasileiro [outro dos seus romances] ainda está sendo examinado para ver se pode ser vendido na rigorosa rede. Pôde ser adotado duas vezes (o máximo que a lei permite) pelo Ministério da Educação da França como o livro-texto para o Exame de Agregação de língua portuguesa, mas tem que ser examinado por vendedores de supermercado, para ver se é leitura permissível aos portugueses." E ele que até tinha elogiado as nossas bundas.
Há um terceiro modo de ver esta questão, que me parece o mais adequado: discutir se é admissível que não se venda um livro por causa de pichotas e coninhas, coisas que todos mais ou menos vamos tendo, que inundam uma cidade, que caíram na banalidade. Uma loja tem margem de liberdade para escolher aquilo que vende, de acordo com juízos comerciais. Mas quando uma cadeia de estabelecimentos comerciais faz juízos morais sobre obras de ficção, aí já ultrapassámos uma fronteira perigosa, a fronteira que daria também carta branca a um administrador de condomínio ou a uma empresa de telecomunicações para fazerem escolhas sobre a nossa vida.
Se eu quiser comprar A Casa dos Budas Ditosos, não aceito que me respondam que não vendem o livro porque acham que a protagonista é uma badalhoca. Algumas pessoas cujo amor à liberdade é reconhecidamente diminuto enchem a boca com a liberdade de comércio nestas circunstâncias. Mas a liberdade dos comerciantes não se opõe à liberdade das pessoas. Se eu quiser ler um romance lúbrico, escrito por um grande escritor da língua portuguesa, ou pequeno que fosse, tenho todo o direito a isso, e não reconheço a ninguém o direito a fazer juízos morais que me impeçam o acesso a esse romance. Dirão que quem proíbe não causa grande dano, porque há sempre quem permita. Mas pensem: uma pessoa que proíbe deseja que toda a gente proíba. Essa é que é a grande ameaça.»
Pedro Mexia. "A bunda e a ameaça". Público ("P2"): 09.Maio.2009
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