Daniel Nobre Mendes viveu em Setúbal e foi amigo de Miguel de Castro, o poeta falecido na semana passada. A residir em Castelo Branco, Nobre Mendes fez chegar este texto evocativo da sua amizade com Miguel de Castro, que publico, desde já com um agradecimento.
«É mesmo doloroso escrever sobre o que as entranhas arrecadaram à moda de tesouro e que de repente se sente que uma violação veio, de algum modo, como intrusa, meter-se com a gente para no-lo roubar e empobrecer, mas... o cadinho da recordação, mais estreito na sua malha do que um frasco de vidro transparente e mais poderoso do que a frieza cega da própria morte não permite que se suma para sempre tudo aquilo que nos foi caro e continua a ser objecto da nossa própria afectividade e de que damos e passamos o testemunho.
O meu poeta, amigo de Sebastião da Gama, amigo de Couto Viana, amigo de David Mourão Ferreira e de muitos mais que confeccionaram a Távola Redonda, ao jeito do Rei Artur, e que hoje têm um destacado lugar na literatura do país, o meu alegre poeta, brincalhão, que sorria e dizia coisas sérias a sorrir, que falava da vida e da liberdade como de autênticos bens malbaratados e reveles na e daqueles tempos em que pontificavam o ódio político e a negridão salazarista, o meu poeta do "Chapéu de Chuva" – conheci-o um dia no café Esperança, aí pelos meados da maltrapida década de 60 do século que ainda há pouco se escapou da prisão do calendário, e tornámo-nos amigos!
Foi uma amizade linda, toda cheia de flores, daquelas flores tão mimosamente rescendentes que embriagam os sentidos e ferem subtilmente a sensibilidade como se de maviosa música se ouvissem os acordes mais bem timbrados, envoltos em túnicas quaisquer, não sei bem o quê, quais, de maravilhas inventadas constantemente, ao sabor de encontros nunca combinados. Que amizade, que ternura santas se escapavam da nossa relação fraterna, solidária, saudável quando entrava no Esperança e se sentava à minha mesa de tristeza nos tempos dos pides e bufos mas também de gente boa e bem formada. Que saudades, meu poeta. De ti. De ti. De mais pessoas extremosas que preenchiam os meus dias de solidão, tão longos...
Quando entravas ou sempre que já lá estavas havia no ar rolos de fumo de cachimbo inconfundíveis como se de uma espiral interminável se tratasse – esse sem-fim da vida que rola, desenrola, rebola e se prolonga para além de nós, deixando pelo caminho uma presença, um sinal, um gesto que se não extingue como o fanal da memória que permite que os navios atravessem as borrascas alterosas e aportem ao cais seguro do nosso sentimento. O meu poeta amava a vida, os seus amigos, a poesia, as mulheres, as crianças e os livros. O meu poeta foi sincero, autêntico, verdadeiro, não era fabricado nos hipermercados nem tinha etiqueta de validade porque a vida dele fez um ser natural como as tempestades que assolam e deixam na atmosfera esse nimbo mágico de tragédia que se transcende pela emoção estética de teimar vivo, persistindo, resistindo e insistindo na construção de uma obra que é a nossa herança!
E no Ateneu, uma casa de fortes tradições de cultura, esteve ligado ao teatro amador, de Carlos Ferreira, outro saudoso que também pela minha vida passou. No Ateneu Setubalense amou a mulher com que se casou e foi lindo tudo!
Ilusões de Vida
Quem passou pela vida em branca nuvem
Quem passou pela vida em branca nuvem
E em plácido repouso adormeceu;
Quem não sentiu o frio da desgraça,
Quem passou pela vida e não sofreu,
Foi espectro de homem - não foi homem,
Só passou pela vida - não viveu.
Miguel de Castro – Jasmim Rodrigues da Silva continua a vir na praia mar do meu sentir e permanece ancorado ao cabo de amarra que acarinha vivências de outros tempos!»
Daniel Nobre Mendes,
com poema do brasileiro Francisco Octaviano
[foto do setubalense Américo Ribeiro (Um Tesouro Guardado - Setúbal d'outros tempos. Setúbal: 1992), retratando o momento em que Miguel de Castro recebia das mãos do Prof. Doutor Hernâni Cidade o prémio dos Jogos Florais do II Centenário do Nascimento de Bocage, em 1965]
Sem comentários:
Enviar um comentário