O bom desenho (publicado ontem no Herald Tribune) dizia muito ao primeiro olhar. Obama, uma multidão em delírio e um diálogo. Dizia um (anónimo): "Nunca vi tanto entusiasmo. Quem é esta gente?" Respondia outro (também anónimo): "Gramáticos." Por falar em alguém, alguém disse na televisão portuguesa: "Foi um discurso banal..." E já vi, também sobre o facto da semana - o discurso de posse de Barack Obama -, algumas pessoas a encolher os ombros. Nunca me espantarei o suficiente sobre a capacidade do género humano português em sentir-se enfastiado.
Vulgar, então, o discurso de Obama? Mas o que têm servido a esta gente, há longuíssimos anos, nos discursos de Ano Novo? Que ouvem em discursos de tomada de posse, presidenciais ou ministeriais? Que textos empolgantes, que arte oratória, que temas grandiosos (está bem, houve essa magna questão do Estatuto dos Açores...), que palavras - palavras simples, claras e directas - nos deixaram ligados (mesmo que só o espaço de um discurso) a um político português? Que político, falando, une uma redacção de jornal à volta de um televisor, jornalistas escutando as palavras, não tentando adivinhar as tricas? Quem cala um café inteiro? Quem faz parar o garfo, no jantar solitário na cozinha, e nos remete para a condição de ouvinte, simples ouvinte e nada mais do que ouvinte? Que eu me lembre - e refiro-me a quem exerce o seu magistério essencialmente dirigindo-se ao país e, portanto, quem mais devia cuidar da palavra -, de cada vez que fala um Presidente português saltam sete tradutores, cada um interpretando à sua maneira. E cada um dos sete podendo ter razão, tão vagos, tão impenetráveis, tão óbvios, tão nada, têm sido 98,7% dos discursos presidenciais a que tivemos direito nas últimas décadas.
O discurso de Obama teve aquilo a que aludo no princípio desta crónica, gramática. Gramática aplicada a um discurso, o que quer dizer, muito para lá da concordância do sujeito com o predicado, uma fluência de palavras que encontrou o ritmo capaz de nos galvanizar durante 18 minutos de uma tarde fria. Artifícios estilísticos, metáforas, antíteses...
Mas não, do que eu sinto falta não é tanto da arte oratória mas, tão-só, da função instrumental do discurso. Não, nem peço tiradas - "A capital foi abandonada. O inimigo avançava. A neve estava marcada pelo sangue..." -, como as usadas por Obama por ter encontrado o seu país em crise e querer galvanizar os seus para sair dela. Não, para o que me falta, não me chega ler o padre António Vieira (e esse tenho-o, e melhor do que Obama). Preciso é de políticos que, virados para mim, não digam: "Portugueses", como se eles pairassem sobre o barco. Quero que digam, como Obama virado para os seus, "nós." E que esse nós me faça sentir que há nós.
Ferreira Fernandes. "Em defesa de curta e boa palavra". Diário de Notícias: 25.Jan.2009
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