Nunca gostei muito de escrever. E muito menos de escrever muito. Sempre fui mais dado, quando estudava, às Fisícas e Matemáticas. Mas hoje senti um enorme impulso para o fazer e partilhar com todos os que se derem ao trabalho de ler este texto aquilo que foi a minha convivência com o Rui Serodio.
Estaríamos em meados da década de 90 quando, através de um amigo do meu irmão, o Paulo Silva, conheci o Rui Serodio. O Rui estava a tocar num bar num Hotel do Montijo. Ficou desde esse momento claro para mim que era um executante brilhante.
Eu estava a desenvolver nessa altura um projecto para a criação e edição de karaoke em português e o contacto com o Rui vinha no sentido de ele poder colaborar na produção musical dos “covers” de que eu necessitava.
Fizemos umas tentativas, mas a coisa não resultou. Fiquei mesmo embaraçado sem saber o que lhe dizer, quando ouvi as primeiras provas. Iria perceber rapidamente que fazer igual ao que os outros criaram não era para o Rui.
E, com esta primeira experiência fracassada, foi começando aquilo que viria a ser uma amizade muito forte. O Rui foi, é, e será sempre um dos meus Amigos, daqueles que se contam pelos dedos de uma mão… e, às vezes, são dedos a mais.
Em 96 ou 97, já não me recordo, perguntei ao Rui: “Já tanta gente tem escrito, pintado, fotografado a Arrábida, mas nunca ninguém musicou a Arrábida. E que tal se o fizesses?”.
O Rui olhou para mim, algo surpreendido e disse-me: “Boa ideia! Vamos a isso!”
Eu, nessa altura, tinha uma empresa editora e um pequeno estúdio de gravação e disponibilizei-me para trabalharmos em conjunto. Ainda me recordo do primeiro dia de gravações em que o Rui entrou no estúdio, sentou-se ao piano e disse: “Vamos começar por colocar um RÉ”. E premiu uma tecla do piano eléctrico e manteve o som do Ré por vários minutos.
Tudo aquilo era novo para mim e pensei: “Um RÉ? Só isto?”
Assim nasceu a primeira obra que o Rui editou em CD, apenas com instrumentais seus, e que era para chamar-se ARRÁBIDA, mas que mudou o nome para SINTRA, pois acabou por ser editada pela Strauss Evolution e o nome SINTRA era mais adequado pela sua divulgação internacional. O CD SINTRA foi editado em 1998.
O Rui desenvolveu uma capacidade única de acompanhar poesia ao piano, improvisando e colocando as notas no local certo onde as palavras iam batendo. Fê-lo com muitos poetas e declamadores, ao vivo, durante toda a sua vida.
Quando em 1996 surgiu uma oportunidade de criar os fundos musicais para um CD de Sonetos de Bocage cuja produção foi da LASA-Liga dos Amigos de Setúbal e Azeitão, o Rui mais uma vez demonstrou o seu enorme talento. O CD “SONETOS DE BOCAGE” saíu em 1996 e eu tive o previlégio de ter sido o Produtor Executivo.
O Rui não nasceu em Setúbal, mas os vários anos que viveu nesta cidade deram-lhe uma capacidade, aliada à sua enorme sensibilidade, de amar tudo o que tinha a ver com esta cidade. E tanto para ele como para mim o facto de não ter sido possível “cantar” a Arrábida era algo que nos angustiava.
Assim, começámos a preparar um novo CD, em colaboração com a empresa SAL, que, entre muitas outras actividades, tem diversos percursos pedestres na Serra da Arrábida. E nasce em 2001 o CD “Caminhos da Arrábida” com 9 temas sintetizados, muito influenciados pela música tradicional portuguesa, que sempre foi uma base de inspiração para o Rui. Este CD teve uma versão em Inglês denominada “Sounds of the Mountain”. Mais uma vez, tive o privilégio de ser o Produtor Executivo deste CD e acompanhar todo o trabalho criativo do Rui.
E cumpriu-se um desígnio: se Sebastião da Gama foi o poeta da Arrábida, Rui Serodio foi sem dúvida o músico da Serra Mãe.
O Rui adorava desafios, principalmente aqueles que punham à prova a sua capacidade de criação e de execução técnica. Um dia, depois de jantar e na minha casa, nas nossas longas conversas, perguntei-lhe: “Rui: serias capaz de contar 15 anos de história de uma empresa em música, ao piano?”. Com alguma estepefacção pela pergunta e afagando a barba esbranquiçada, respondeu-me: “Isso é muito giro... Vamos fazê-lo!”
E, durante 2 ou 3 horas, eu estive a contar 15 anos de história de uma empresa que eu tinha fundado e da qual era Presidente: a Setcom.
O Rui anotou numa folha A4 dobrada ao meio aquilo que lhe pareceu importante da vida da empresa. Em Novembro de 2001, nos estúdios Shangrilá, o Rui sentou-se ao piano e com apenas aqueles apontamentos na sua frente, criou uma obra musical com 3 partes, cada uma delas correspondendo a um período da vida da empresa. Tudo de improviso e gravado à primeira, sem “picagens” nem repetições. A parte mais curta tem 9:42. Isto demonstra a capacidade ímpar de improvisação do Rui. O CD saíu em 2 versões: uma, personalizada, para a SETCOM e outra com o título “Insights”.
Trabalhar com Rui na música e edição de discos era um prazer enorme. E, para mim, acompanhar de perto a sua genialidade era algo de indescritível.
O Rui, com toda a sua capacidade criativa fora do comum, era uma pessoa simples, humilde e por vezes até ingénua demais. Para ele, a amizade e amor pelos outros estava sempre à frente. E ouvia os outros. Eu funcionava para ele como uma espécie de consultor/produtor para a área do audio, para lhe dizer se as misturas estavam boas, se não havia ruídos, o que é que eu achava da estrutura de certos temas, etc. E que prazer eu tinha em lhe dar as minhas opiniões!
Mas a música e a poesia teriam de continuar juntas. Em 2006 e 2007, mais uma vez trabalhámos juntos na edição de 2 discos de poesia de Celeste Saiedi, editados pela minha editora, a JGC, e com a música de fundo, claro, do Rui.
Em 2007, o Centro de Estudos Bocageanos promoveu a edição de um CD com poemas de Bocage e com a música do Rui, “Perscrutando a inquietude”, no qual também colaborei, tendo a JGC sido a editora.
O nosso último trabalho em conjunto, materializado na forma de CD foi o “ Meu caminho é por mim fora”, um CD promovido pela Associação Cultural Sebastião da Gama, com textos e poemas do poeta da Arrábida e música do Rui Serodio. Mais uma vez tive o grande privilégio de ter sido o editor e ter trabalhado na mistura e masterização do CD. O disco foi editado em 2010.
A produção musical e criatividade do Rui eram inesgotáveis. Ele estava constantemente a compor e a enviar aos amigos os MP3 das suas obras. O que o Rui mais desejava era que as pessoas o escutassem e comentassem os seus trabalhos musicais.
Adaptou-se de forma ímpar à produção musical assistida por computador, o que é de todo invulgar para alguém que nasceu nos anos 30 do século passado.
Ao longo dos anos em que o conheci, o Rui passou musicalmente por várias fases. Depois do uso dos sintetizadores, que podem ser reconhecidos nos trabalhos SINTRA e CAMINHOS DA ARRÁBIDA, o Rui acabou por se dedicar à música de apenas piano, ou quando muito com umas mantas de cordas por detrás, mas tendo o piano como instrumento base e solista. E, com piano, o Rui era imbatível...
Estávamos a preparar um novo CD: “The Mystic of the Piano”. Ele já tinha tudo pronto, faltando apenas algum trabalho de estúdio de mistura e masterização e composição gráfica.
Aliás, alguns dos temas que ele escolheu para o alinhamento até já são conhecidos de muitos dos seus amigos: “An old fashioned pianist”, “Arrábida minha”, “Theme waiting for a movie”, são apenas alguns exemplos.
Na generalidade destes temas ao piano, encontramos uma carga nostálgica muito forte, uma combinação perfeita de linhas melódicas muito simples, pegando em temas de meia dúzia de notas e desenvolvendo esses temas sobre harmonias complexas e brilhantes como ele sabia fazer.
Eu sei que o Rui queria muito este CD. E vai tê-lo, pois eu irei tratar da sua produção e divulgação, para que o maior número de pessoas possam conhecer a arte impar e invulgar de um homem que adotou Setúbal como a sua cidade, e à qual deu muito: a sua ligação à Universidade Sénior de Setúbal e como maestro do coro Afina Setúbal, da CMS, são apenas alguns exemplos.
No dia 22 de Outubro de 2011 o Rui partiu. De uma forma que teve tanto de brutal como de inesperada.
É lugar comum falar bem das pessoas quando partem. Parece que as pessoas ficam maiores e mais importantes do que eram antes da Grande Viagem. Passam a ter o seu nome em ruas ou praças e alguns até passam a estátuas ou bustos.
Mas o Rui já era enorme antes de partir e eu tive o raro previlégio de privar com ele, de trabalhar com ele, de rir com ele, ou, simplesmente, de conversar.
O meu Amigo partiu. A última vez que estive com ele foi no dia 15 de Setembro de 2011 na merecida homenagem na CMS com a entrega da Medalha da Cidade. Que bom ele a ter recebido antes da sua partida!... Nesse dia, vi-o muito debilitado, mas nunca imaginei que o destino seria tão brutal como foi.
Eu e o Rui éramos grandes amigos. Não daqueles que as tecnologias vieram banalizar, mas daqueles que estão sempre num lugar muito especial dentro do nosso coração.
Por vezes, o Rui parecia um Pai. O seu cabelo e barba branca, a sua disponibilidade, a sua compreensão. Outras vezes era o irmão mais velho. Não é por acaso que na intimidade ele me tratava por Mano Novo e eu o tratava por Mano Velho... Outras, parecia um irmão mais novo... A sua simplicidade, às vezes roçando a ingenuidade, própria dos grandes seres humanos como ele era, levava-me a dar-lhe conselhos e sugestões como fazemos aos irmãos mais novos.
Ficou muita coisa por fazer. Fica sempre, é verdade, mas neste caso falamos de coisas concretas, de projectos que ele tinha e onde eu estava sempre disponível para colaborar.
Mas uma coisa é certa: tudo o que estiver ao meu alcance vou fazer, no sentido de dar cumprimento ao que o Rui mais queria: que as pessoas conhecessem a sua música. O site www.ruiserodio.com foi feito e mantido por mim. Irei trabalhar neste site no sentido de o tornar o grande portal da obra de Rui Serodio.
Só uma coisa não consigo fazer. Nem eu nem ninguém. Tocar e criar música como ele o fazia.
Tenho comigo centenas de temas que ele criou e me enviava por email. Alguns são apenas ensaios; outros, obras lindíssimas. Vou tratar de todo este espólio e dar , cumprimento à sua vontade, muitas vezes expressa, e a mim particularmente.
Um deles foi enviado em 30 de Agosto de 2011. Provavelmente o último que ele criou. Deu-lhe o nome GOOD NIGHT, MY BABY... inquietante, este nome...
O Rui partiu mas não morreu. Enquanto a sua música for por todos nós escutada e apreciada, ele estará sempre vivo nas nossas almas e nos nossos corações.
Apenas partiu... só isso...
Até logo, Mano Velho!
Jorge Calheiros
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