sábado, 6 de setembro de 2008

José Leon Machado nas memórias da Primeira Grande Guerra

O romance Memória das estrelas sem brilho, de José Leon Machado (Braga: Vercial, 2008), recupera o tema da participação portuguesa na Primeira Grande Guerra, urdindo uma história em torno da personagem Luís Vasques, que foi combatente pelo Corpo Expedicionário Português e que, vinte anos depois do fim do conflito (e quando se preparava o início da Segunda Grande Guerra), decide escrever o seu trajecto.
Vasques, narrador de si mesmo, em jeito de memórias, reconstrói o seu percurso em capítulos que intervalam a narrativa do vivido na guerra e a vida depois da guerra, quando tem 44 anos (em 1938), justificando-se: “Escrevermos sobre uma coisa que nos aflige ou incomoda é uma forma de exorcizá-la, tornando-a inofensiva.” Esta justificação confirma o que se passa no primeiro contacto do leitor com a personagem, logo no início da história, um Luís Vasques que, vinte anos depois de a guerra ter acabado, ainda tem “pesadelos da guerra”.
No percurso de Vasques, há lugar para a história de Rato, seu vizinho, soldado, impedido, aventureiro e amigo, e para a de Aninhas, que, de beleza avistada no cais de uma estação, chegou a esposa do ex-combatente.
Ao mesmo tempo que quer contar a guerra, o narrador não esconde o seu ressentimento com essa mesma guerra, até ao ponto de ter arrumado no sótão os escritos memorialísticos que outros produziram sobre esse tempo, decisão que não esconde espírito crítico quanto ao valor desses testemunhos – “O meu contacto com a guerra, depois que regressei, têm sido os livros de memórias que colecciono e que vão sendo publicados por um ou outro veterano. Tenho algumas dezenas e são de valor irregular, quer literário, quer de fidelidade aos acontecimentos. Uns são mais patrioteiros, louvando a coragem, a determinação e o valor dos soldados portugueses. Outros são mais críticos, quer ao desempenho do CEP na Flandres, quer à decisão dos políticos portugueses em arrastar o país para a guerra. Alguns livros, escritos por oficiais subalternos, limitam-se a descrever os acontecimentos do dia-a-dia nas trincheiras. Estes últimos, li-os com interesse e senti que havia algures alguém que sofria como eu. Acabei por perder o interesse por esses livros e guardei-os no sótão da casa dentro de um caixote. Fi-lo, não por receio de que me desse a tentação de novamente os folhear, mas para evitar que alguma visita da casa desse com eles na biblioteca e se pusesse a falar do assunto.”
A narrativa ganha verosimilhança com os cruzamentos havidos entre as personagens e personalidades que tiveram responsabilidade na história portuguesa, seja através de opiniões exaradas, seja pelo facto de algumas dessas personalidades se transformarem também em personagens – além de Oliveira Salazar, professor de Vasques em Coimbra, há referências aos nomes de Norton de Matos, Afonso Costa, Gomes da Costa, Tamagnini, Simas Machado, João Chagas, Sidónio Pais. Mas, tratando-se de uma obra de ficção, há também indicadores que a acentuam, como a referência a convívio de um antepassado de Vasques com João da Ega e Carlos da Maia, personagens queirosianas…
Depois de 34 capítulos em que Vasques conta a sua história – passada entre o nascimento, em 1894, e 1938 – e em que o leitor pensa assistir ao final da narração, volve meio século e o romance entra no “epílogo”. É ainda o mesmo Vasques, já com 93 anos (em final da década de 80), que escreve, rabiscando em papel almaço o seu encontro com o bisneto do Rato (Joaquim Domingues), estudante na Universidade do Porto, que pretendera ouvi-lo a testemunhar sobre a participação na Grande Guerra, com vista a um trabalho académico para a disciplina de Cultura Portuguesa. Nessa altura, Vasques reabre a arca do sótão, alegoria de um caminhar pelas memórias, de onde tira o seu manuscrito e regista: “Amanhã entregarei tudo ao rapaz. Talvez ele encontre nestas páginas o que procura, ou talvez encontre o que não procura, e que é aquilo que a vida, o pó e a cinza a que todas as coisas se reduzem lhe reservaram.” Ainda não é, contudo, o final do romance. Uma “nota do editor”, escrita duas décadas depois, apresenta um outro narrador – o bisneto do Rato, na casa que fora de Luís Vasques, a preparar a edição das memórias que lhe tinham sido ofertadas e a dar conta do destino de várias personagens que o tempo foi devorando, assim se fazendo a ponte entre uma das linhas temáticas fortes deste romance (a participação lusa na Primeira Grande Guerra) e a actualidade.
Tal como aconteceu com A filha do capitão, de José Rodrigues dos Santos (Lisboa: Gradiva, 2004), este é também um romance que permite aos portugueses do século XXI saberem o que foi a participação de Portugal no conflito mundial de 1914-1918, para cuja construção foram naturalmente indispensáveis as informações contidas nas memórias dos combatentes publicadas ao longo dos anos. Muito embora a escrita memorialística portuguesa da Grande Guerra possa enfermar dos defeitos que Luís Vasques lhe aponta, certo é que umas dezenas de combatentes deixaram o seu contributo testemunhal em livro ou em periódicos, forma de não se esquecer essa participação, bem como as causas e as condições que a determinaram e em que ela foi feita (na área da ficção, a literatura portuguesa foi bem parca na abordagem deste tema). Este livro é um bom exercício dessa reconstrução, ao mesmo tempo que nos fala do que foi o Portugal do século XX, possibilitando mesmo alguma leitura sociológica desse tempo.
Marcas de leitura
Amor - “O que faz com que o amor seja tão perturbador e tão excitante são a suspeita e a dúvida.”
Cunha - “O nosso povo tem o vício ancestral da cunha. Imaginando de antemão que não poderá, pelas vias legais, alcançar o que pretende, serve-se da cunha. E para tudo a utiliza, mesmo quando desnecessário. Simplesmente porque não acredita na justiça, nas leis e nos regulamentos. Isso, pensa o povo, é para os ricos, os poderosos. O pobre só sobrevive com a cunha.”
Demitir - “Demitir alguém das suas funções porque tem convicções políticas diferentes das do poder instituído é uma vileza.”
Desaparecidos (na guerra) - “É muito triste uma pessoa desaparecer na guerra. Não há túmulo onde a chorarmos e onde colocarmos flores quando sentimos a falta dela. E, depois, é a ténue esperança de um dia a pessoa voltar, mesmo sabendo que isso é impossível.”
Guerra - “Não se pode falar da guerra a quem nunca a viveu. Por mais pormenores que se contem do horror por que passámos, o que escuta nunca o poderá compreender inteiramente. Alguns fazem até um ar de incredulidade, como se não fossem possíveis tais atrocidades.”
Identidade - “Cada homem está sujeito à cultura onde nasceu e foi criado e é com os olhos desfocados por essa mesma cultura que vê e julga a cultura dos outros."
Memória I - “A memória, quando espicaçada, assemelha-se a um rio que transborda e inunda as terras à volta. A água barrenta espalha-se irregularmente pelos campos e pelos matos e pode ou não chegar às habitações. A memória inunda o papel almaço em gatafunhos apressados e só tarde me dou conta de quão longe chegou a água das palavras.”
Memória II - “Tudo nunca se pode saber. (…) O que sabemos ou podemos contar são pequenas parcelas, pedaços do passado, transformados pelo tempo e pela memória, sempre imperfeita e pouco segura.”
Sede - “Onde há homens, há sede. Se está calor, os homens bebem para refrescar; se está frio, bebem para aquecer. Para já não falar de outras motivações, mais do foro pessoal que atmosférico.”
Vida - “Quando o que está em causa é a defesa da própria vida ou a do camarada, toda a argumentação contra a guerra e a violência se desfaz em pó.”

1 comentário:

angelomelo@iol.pt disse...

A Guerra é obra daqueles que se cansaram de viver.