quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

É altura de...



Bom 2010!

Algumas efemérides centenárias para 2010

Que em 2010 passa o centenário da República já tem sido muito badalado, há comissão própria, há incentivos a produção de trabalhos nas escolas e na sociedade, etc. Mas 2010 será também uma boa altura para falar de nomes a propósito de centenários, alguns deles já a raiar o esquecimento, quando disso não deveriam ser vítimas. Querem ver?
800 anos sobre o nascimento de João XXI, o papa português; 500 sobre o nascimento de Fernão Mendes Pinto; 300 sobre a morte de Manuel Bernardes; 200 sobre o nascimento de Inocêncio Francisco da Silva e 150 sobre o nascimento de Manuel Teixeira-Gomes. Depois, em primeiros centenários, temos os dos nascimentos de Beatriz Costa, Jacinta Marto, António de Spínola, João Mendes e Álvaro Perdigão (setubalense, 1910-1994). Como se vê, lista para gostos diversificados e de áreas não menos plurais. E, quanto a Setúbal, haverá ainda o centenário do nascimento de Cabral Adão (1910-1992), transmontano (de Vila Flor) que junto do Sado exerceu medicina, poetou, escreveu.
Mais haverá, claro. Irão aparecendo.

Luiz Pacheco, em exposição e em catálogo


Até 27 de Fevereiro, a Biblioteca Nacional tem uma exposição sobre Luiz Pacheco, o escritor e o editor da Contraponto, que vale a pena ver, pelo contacto com os papéis que lhe pertenceram e com os livros que fizeram a história de uma editora que durou meio século, um quase espelho de Pacheco, que lhe correu atrás e se instalou onde o seu mentor estava, um quase reflexo ou mapa da pachecal peregrinação geográfica e cultural.
Mas, se não for possível visitar a exposição, há o catálogo (Lisboa: Biblioteca Nacional de Portugal / Leya-D. Quixote, 2009) para ler, ver e guardar. Um “dois em um”, tendo 204 páginas dedicadas ao título Luiz Pacheco – 1 Homem dividido vale por 2 e 174 páginas consagradas ao tema Contraponto – Bibliografia.
Imagino como se sentiria Luiz Pacheco ao ver esta peça sobre a sua obra… Por certo, apreciaria, uma vez que gostava das coisas bem feitas, exímio como era na caça à gralha e aos defeitos. Por certo, gostaria, num olhar de gozo intrometido. Isto, para não me pôr a imaginar como reagiria Pacheco a ver a sua obra exposta na Biblioteca Nacional, um panteão da cultura… e aqui relembro o texto de Ana Silva neste catálogo, que assim começa: “O quê? O Visconde dos Quatro Caminhos na Biblioteca Nacional?! Estou a ouvi-lo a desatar a rir, meio orgulhoso, meio escarnecedor, um tanto espantado, um tanto arrepiado.”
No primeiro grupo deste catálogo, há textos (escritos para este efeito) de Luís Gomes (comissário da exposição), de Mário Soares e de Ana da Silva, e outros, surgidos de outros tempos e de outros escritos, assinados por Vítor Silva Tavares, António José Forte, Virgílio Martinho, Ricardo-Dácio de Sousa e Ana da Silva; depois, há ainda o catálogo dos textos pachecais e reproduções fotográficas de algumas capas e textos e – o mais importante e original neste catálogo, porque de um novo livro de Luiz Pacheco se trata – um conjunto de 70 páginas de cartas, tendo Pacheco como emissor e Jaime Aires Pereira como destinatário, sob o título 1 homem dividido vale por 2, escritas entre 1964 e 1966, com Luiz Pacheco nas suas rotas entre Setúbal, Lisboa e Caldas da Rainha e no seu modo de ser escritor, editor, crítico, provocador, tudo com uma dose de esforço qb, muitas vezes a aguardar a correspondência dos amigos, de preferência recheada de “vintes”, porque havia a “tribo” para alimentar e a casa para pagar, de preferência a prestar ajuda na edição, fosse pelo escrever as “ceras”, fosse pela duplicação das folhas, que assim se construía uma editora e se fazia uma obra.
O segundo grupo desta obra respeita à editora que está colada ao nome de Luiz Pacheco, a Contraponto (com sede em Lisboa, Setúbal, Caldas da Rainha, Palmela ou Montijo, consoante as mudanças de morada do próprio editor) através da qual nasceram para a literatura muitos nomes hoje importantes e que também escolheu criteriosamente as suas traduções. A anteceder o catálogo das edições de Contraponto (também com bastantes reproduções fotográficas), há textos de Vítor Silva Tavares e de Manuel de Freitas. O que pode ter tido de significativo a passagem de Pacheco pelo mundo editorial bem o diz Manuel de Freitas: “Bastar-lhe-ia ser responsável, na Contraponto, pela publicação de livros como Manual de prestidigitação, de Mário Cesariny, ou O amor em visita, de Herberto Helder, para que o seu nome fizesse, de pleno direito, parte importante da história da edição em Portugal na segunda metade do século XX.”
Boa e merecida homenagem a Pacheco, não pelo que as homenagens carregam de saudosismo, mas porque o testemunha na sua unidade de escritor e editor. E, já agora, porque não admiti-lo?, porque Pacheco, apesar das muitas e diversas opiniões, deixou saudades.

10 máximas de Luiz Pacheco nas cartas a Aires Pereira
1) "Até onde, entre amigos íntimos e sinceros, a dureza é vantajosa? até onde a sinceridade se revela proveitosa? onde começam, uma e outra, a ser desumanas?” (1964)
2) "Eu, enquanto não vem o carteiro pela manhã, nunca sei o que temos para ou se haverá almoço.” (27 de Maio de 1965)
3) “A perfeição é um mito.” (27 de Maio de 1965)
4) "A alma humana é um abismo.” (22 de Janeiro de 1966)
5) “Textos locais virão acentuar certas posições minhas em relação a esta negra Sociedade onde vegetamos, por nosso azar.” (2 de Março de 1966)
6) "Se V. soubesse o que custa gramar as pessoas e como passamos grande tempo deste nosso precioso andar pelo Mundo a dar cabo de nós e delas, estupidamente. E é ainda esta estupidez o que mais custa!” (16 de Março de 1966)
7) "Só há uma maneira de dizer as coisas, uma de cada vez.” (7 de Abril de 1966)
8) "Prometem-me o hospício ou a cadeia [a propósito da publicação de Crítica de circunstância]. Fiquei muito honrado por eles se lembrarem de mim. O que são é pouco originais, porque fizeram o mesmo ao Marquês de Sade, no século XVIII.” (12 de Abril de 1966)
9) "Apostemos no optimismo da Natureza, que não tem culpa nenhuma da loucura dos homens nem das feras-femininas.” (8 de Julho de 1966)
10) "Estes problemas dos outros são sempre mais fáceis de encarar e resolver que os nossos, valha-nos isso, para, ao menos, nos distrairmos dos nossos.” (11 de Julho)

terça-feira, 29 de dezembro de 2009

João Vaz - Trabalhos em "Ocidente" (8)

A finalizar esta pequena galeria sobre João Vaz, apresento uma reprodução do "pano de boca" do Teatro Garcia de Resende, de Évora, em cuja decoração João Vaz participou, recordando que foi também ele o autor do "pano de boca" do Teatro D. Amélia, que existia em Setúbal.Sala de espectáculo e proscénio - decorações de A. Ramalho e João Vaz
Teatro Garcia de Resende, Évora (Ocidente, 494, 11.Set.1892, pg. 205)

Esta pequena mostra integra mais vasto trabalho de pesquisa sobre Setúbal
que está a ser levado a cabo por mim e pelo meu amigo Cunha Bento.

João Vaz - Trabalhos em "Ocidente" (7)

Desembarque de peixe em Setúbal (Ocidente, 486, 21.Jun.1892, pg. 140)

João Vaz - Trabalhos em "Ocidente" (6)

Os calafates em Setúbal (Ocidente, 328, 01.Fev.1888, pg. 25)

João Vaz - Trabalhos em "Ocidente" (5)

Praia-mar, sado (Ocidente, 256, 01.Fev.1886, pg. 29)

João Vaz - Trabalhos em "Ocidente" (4)

A pesca das lulas (Ocidente, 220, 01.Fev.1885, pg. 29)

João Vaz - Trabalhos em "Ocidente" (3)

Igreja do Convento de Jesus (Ocidente, 99, 21.Set.1881, pg. 212)

João Vaz - Trabalhos em "Ocidente" (2)

Convento da Arrábida (Ocidente, 97, 01.Set.1881, pg. 197)

João Vaz - Trabalhos em "Ocidente" (1)

A propósito da exposição de João Vaz que pode ser visitada na Casa da Baía, em Setúbal, e a propósito dos 150 anos que neste ano passam sobre o seu nascimento, trago para aqui alguns trabalhos deste pintor setubalense que foram reproduzidos no jornal Ocidente, no último quartel do século XIX.

Barra de Setúbal (Ocidente, 93, 21.Jul.1881, pg. 168)

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Manuel Malheiros, Governador Civil de Setúbal, em entrevista

O Governador Civil de Setúbal, Manuel Malheiros, teve entrevista publicada n'O Setubalense de hoje, apresentando o (des)emprego, a segurança e o desenvolvimento como as questões que estão na sua ordem de prioridades.


O Setubalense: 28.Dezembro.2009

João Vaz em exposição em Setúbal (a não perder!)

A propósito dos 150 anos sobre o seu nascimento, João Vaz (que aqui já biografei em 9 de Março) está de volta a Setúbal, a sua terra, numa exposição que reúne três dezenas de obras e que pode ser vista até 28 de Fevereiro na Casa da Baía (na Avenida Luísa Todi).
A temática da mostra é “João Vaz e Setúbal” e por ela passam motivos sadinos, o mar, os pescadores e uma época, sessenta anos depois de Setúbal ter feito uma “Exposição retrospectiva de quadros de João Vaz”, em Setembro de 1949, e quatro anos depois de, em Lisboa, na Casa Anastácio Gonçalves, ter ocorrido uma grande exposição do pintor, reunindo uma centena de peças.
A acompanhar esta mostra existe um catálogo, contendo textos de Fernando António Baptista Pereira (“João Vaz em Setúbal – Celebrar os 150 anos do nascimento do pintor”), Ana Catarina Stoyanoff (“João Vaz, o pintor de Setúbal”) e António Galrinho (“João Vaz e o ensino industrial e comercial em Setúbal” e “Tendências técnicas e estéticas na obra de João Vaz”), bem como a reprodução da quase totalidade das obras expostas.
Entre outros motivos de importância, destaco duas notas interessantes deste catálogo: uma, devida a António Galrinho, quando explica a questão da luminosidade e dos reflexos da água nas telas de João Vaz, pela visão certeira e não menos clara – “Um dos aspectos que mais ressalta da pintura de João Vaz é a mestria com que regista os reflexos na água. Barcos, pessoas, rochedos ou edifícios surgem reflectidos de diferentes modos, consoante as condições atmosféricas. Se a água é límpida e tranquila e a luz forte e clara, as figuras espelham-se nítidas; se é turva e levemente agitada e a luz é suave, as figuras esbatem as cores e encurvam os contornos; se é levemente soprada pelo vento mas a luz é forte, as formas diluem-se; se está mais agitada e a luz escasseia, os reflexos quase se extinguem, reduzindo-se a meia dúzia de pinceladas largas e soltas ou ondulantes.” A segunda nota decorre do texto de Baptista Pereira, ao deixar a notícia de que, em 2011, quando passarem 80 anos sobre a morte de João Vaz, os setubalenses poderão ver uma nova apresentação da sua obra, aí incluindo o “Pano de boca” do antigo Teatro D. Amélia, em Setúbal, devidamente restaurado e que se encontra guardado nas reservas do Museu da cidade.

domingo, 27 de dezembro de 2009

Poemas de Natal (14) - Anita Vilar

Eis um texto em forma de haiku, acabado de receber, inédito, prenda de Anita Vilar, médica em Setúbal, com intervenção cívica em várias áreas e também nesta da poesia (que eu desconhecia).

Natal
É fábula recontada,
Jesus sempre adiado.

Poemas de Natal (13) - Sebastião da Gama

O poema que apresento tem quase 60 anos. Foi produzido em 24 de Dezembro de 1950. Seu autor: Sebastião da Gama. Deste presépio salta toda a sensibilidade e lirismo do poeta azeitonense, surgindo aliadas várias tonalidades - a de um certo franciscanismo e a de um gosto grande pela pintura, uma e outra tão cultivadas pelo poeta da Arrábida. O poema teve publicação póstuma em livro, em Pelo sonho é que vamos (1953).

Presépio

Nuzinho sobre as palhas,
nuzinho - e em Dezembro!
Que pintores tão cruéis,
Menino, te pintaram!

O calor do seu corpo,
pra que o quer tua Mãe?
Tão cruéis os pintores!
(Tão injustos contigo,
Senhora!)

Só a vaca e a mula
com seu bafo te aquecem...

- Quem as pôs na pintura?

Poemas de Natal (12) - Lutgarda Guimarães de Caires

O "Natal dos Hospitais" é programa já tradicional nos hábitos portugueses. O que nem toda a gente saberá é que essa tradição começou com o "Natal das Crianças dos Hospitais", iniciativa devida à poetisa Lutgarda Guimarães de Caires (1873-1935), algarvia, de Vila Real de Santo António.
No seu primeiro livro, Glicínias (Lisboa: Livraria Ferreira Editora, 1910), o poema "Noite de Natal", que reproduzo, eivado de um total sentimento cristão, faz-me lembrar uma outra história associada ao Natal, devida a Hans Christian Andersen. Lembram-se de "A menina dos fósforos"?
Noite de Natal

Tudo são cantos, tudo alacridade:
É noite de Natal, repicam sinos, –
A grande noite em que se entoam hinos,
Enaltecendo a santa caridade.

No degrau duma porta já dormiam
Dois pequeninos, muito abraçadinhos;
O frio era cortante, e os seus bracinhos,
De enregelados, não se desuniam.

Através dessa porta ouve-se o riso.
Lá dentro festejava-se o Natal,
A noite santa, a noite sem igual,
Que às criancinhas traz o paraíso.

Mas essas que vagueiam sem ter pão,
Que dormem sem um tecto protector,
A essas, já sem mãe, sem um amor,
A neve cai-lhes sobre o coração!...

Há quanto aquele sono duraria,
Sabiam-no, talvez, só as estrelas,
Que os pobrezinhos tinham-nas a elas,
E a ninguém mais, naquela noite fria.

A meia-noite acaba de soar,
Nasceu Jesus, o nosso Redentor.
Hinos de graça e divinal amor
Estão no céu os anjos a cantar.

De súbito, uma luz bela e fulgente
Como chuva de estrelas luminosas,
Transforma a branca neve em lindas rosas
E a pedra fria em leito brando e quente.

E, então, naquele berço vaporoso,
No perfume das rosas nacaradas,
As duas cabecinhas desmaiadas
Descansam num remanso misterioso.

Caía a neve em flocos, de mansinho,
Em volta do seu berço encantador,
Estendendo um tapete de esplendor,
Como um manto real de níveo arminho.

Doce visão celeste ajoelhou,
Curvada sobre o berço alvinitente,
E o manto que levava, docemente,
Sobre os dois pezinhos desdobrou.

E o pranto de seus olhos deslizava,
Caindo no seu manto redentor, –
Estrelas deslumbrantes de fulgor
As lágrimas que a Virgem derramava.

Depois, ao envolvê-los nesse manto,
De estrelas fulgurando recamado,
Estreita-os ao seu seio imaculado.
No calor do seu peito sacrossanto.

…………………………………………………………

E os anjos entoando um coro alado,
Em mística doçura celestial,
Cantavam essa noite de Natal,
No céu, de luz divina iluminado:

“A meia-noite acaba de soar, –
Ajoelhai, cristãos! Nasceu Jesus,
Aquele que, pregado numa cruz,
Só por amor de vós veio a expirar.

Nossa Senhora, a Sua Santa Mãe,
Celeste e pura Mãe de abandonados,
Foi socorrer os pobres enjeitados,
Porque essa Mãe nunca enjeitou ninguém.

A Caridade, que Jesus pregou,
Exercê-la, no mundo, mal sabeis!
Vede as crianças, como as esqueceis,
Essas crianças que ele tanto amou.

Bem-vindos sejam nossos irmãozinhos
Que a Virgem Santa à terra foi buscar:
A vida eterna aqui virão gozar,
Porque no céu jamais há pobrezinhos.

Ajoelhai, cristãos, nasceu Jesus!
E Sua Mãe, a Santa Virgem pura,
À terra foi livrar da desventura
Aqueles por quem Deus morreu na cruz.”

…………………………………………………………

E foi assim, em noite abençoada,
À hora Santa em que Jesus nasceu,
Que os pobrezinhos foram para o Céu
No manto azul da Mãe imaculada.

Poemas de Natal (11) - Olavo Bilac

Há umas semanas, consegui adquirir, em alfarrabista, o livro Poesias, de Olavo Bilac (18ª ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1940), reunindo a obra poética deste escritor brasileiro, nome sério para a bibliografia sobre Bocage (ainda há poucos anos o Centro de Estudos Bocageanos reeditou um ensaio sobre o poeta setubalense, devido a Bilac) e que, em Setúbal, está homenageado, em monumento, desde 1965 (vai fazer no próximo ano 45 anos), na Praça do Brasil.
O último livro reunido nesse volume de poesia completa tem como título Tarde, obra que foi editada postumamente, em 1919 (Bilac falecera no ano anterior). É deste último livro que retiro o soneto "Natal" e aqui o divulgo.

Natal

No ermo agreste, da noite e do presepe, um hino
De esperança pressaga enchia o céu, com o vento...
As árvores: "Serás o sol e o orvalho!" E o armento:
"Terás a glória!" E o luar: "Vencerás o destino!"

E o pão: "Darás o pão da terra e o pão divino!"
E a água: "Trarás alívio ao mártir e ao sedento!"
E a palha: "Dobrarás a cerviz do opulento!"
E o tecto: "Elevarás do opróbrio o pequenino!"

E os reis: "Rei, no teu reino, entrarás entre palmas!"
E os pastores: "Pastor, chamarás os eleitos!"
E a estrela: "Brilharás, como Deus, sobre as almas!"

Muda e humilde, porém, Maria, como escrava,
Tinha os olhos na terra em lágrimas desfeitos;
Sendo pobre, temia; e, sendo mãe, chorava.

Poemas de Natal (10) - Manuel Alegre

A Luísa optou por uma mensagem da autoria de Manuel Alegre.

NATAL
Acontecia. No vento. Na chuva. Acontecia.
Era gente a correr pela música acima.
Uma onda uma festa. Palavras a saltar.
Eram carpas ou mãos. Um soluço uma rima.
Guitarras guitarras. Ou talvez mar.
E acontecia. No vento. Na chuva. Acontecia.

Na tua boca. No teu rosto. No teu corpo acontecia.
No teu ritmo nos teus ritos.
No teu sono nos teus gestos. (Liturgia liturgia).
Nos teus gritos. Nos teus olhos quase aflitos.
E nos silêncios infinitos. Na tua noite e no teu dia.
No teu sol acontecia.

Era um sopro. Era um salmo. (Nostalgia nostalgia).
Todo o tempo num só tempo: andamento
de poesia. Era um susto. Ou sobressalto. E acontecia.
Na cidade lavada pela chuva. Em cada curva
acontecia. E em cada acaso. Como um pouco de água turva
na cidade agitada pelo vento.

Natal Natal (diziam). E acontecia.
Como se fosse na palavra a rosa brava
acontecia. E era Dezembro que floria.
Era um vulcão. E no teu corpo a flor e a lava.
E era na lava a rosa e a palavra.
Todo o tempo num só tempo: nascimento de poesia.

Manuel Alegre, Coisa Amar (1976)

Poemas de Natal (9) - Fernando Pessoa

Sob o signo pessoano, também do Raul chegou um poema natalício.

Natal... Na província neva.
Nos lares aconchegados,
Um sentimento conserva
Os sentimentos passados.

Coração oposto ao mundo,
Como a família é verdade!
Meu pensamento é profundo,
'Stou só e sonho saudade.

E como é branca de graça
A paisagem que não sei,
Vista de trás da vidraça
Do lar que nunca terei!
Fernando Pessoa, in Diário de Notícias Ilustrado (1928)

sábado, 26 de dezembro de 2009

Poemas de Natal (8) - Vinicius de Moraes

Mais um poema entretanto chegado, com a assinatura de Vinicius de Moraes, pela escolha de Anita Vilar.

O FILHO DO HOMEM

O mundo parou
A estrela morreu
No fundo da treva
O infante nasceu.

Nasceu num estábulo
Pequeno e singelo
Com boi e charrua
Com foice e martelo.

Ao lado do infante
O homem e a mulher
Uma tal Maria
Um José qualquer.

A noite o fez negro
Fogo o avermelhou
A aurora nascente
Todo o amarelou.

O dia o fez branco
Branco como a luz
À falta de um nome
Chamou-se Jesus.

Jesus pequenino
Filho natural
Ergue-te, menino
É triste o Natal.

Vinicius de Moraes (Natal de 1947)

Luiz Pacheco: "Isto de estar vivo"

Um conjunto de “artigalhadas” e “espirros”, assim indicou Luiz Pacheco como sendo o conteúdo do seu livro Isto de estar vivo (Palmela: Contraponto, 2000), que inseriu ilustrações de Alice Geirinhas. No total, 35 textos, que foram outras tantas crónicas publicadas na imprensa.
Opiniões e lembranças, notas sobre livros e autores, num percurso resultante de leituras, ora em edições acabadas de sair, ora encontrando textos já antigos (em incansáveis idas às bibliotecas, sobretudo à Municipal de Setúbal), ora comentando a vida literária sentida em Portugal. Por aqui passam nomes como Alexandre Herculano, Fernando Pessoa, José Gomes Ferreira, José Régio, Vitorino Nemésio, António Gedeão, Miguel Torga, Vergílio Ferreira, Fernando Namora, Jorge Amado, Viana Moog, Agustina Bessa-Luís, Eugénio de Andrade, António Ramos Rosa, António Maria Lisboa, Clara Pinto Correia, Maria Teresa Horta, Maria Velho da Costa, Helena Marques, Luísa Beltrão, Julieta Monginho, Manuel Alegre, António Lobo Antunes e Jostein Gaarder; temas como o seminário na formação de muitas personalidades, a escrita para concursos, os brandos costumes, a censura, Salazar ou o papel do Teatro do Salitre; e memórias e retratos do "escriba", quase sempre rápidos, em alusão breve.
O leitor encontra-se com a crítica certeira produzida por um Pacheco que se ri das andanças do mundo, sobretudo do mundo intelectual, e que se justifica quanto ao seu tom: “Perdoe-se-me: sou homem e nada do que é humano me é alheio.” Não esconde o seu estado de espírito – “Fico por aqui que a minha tensão está a subir” – nem uma aproximação aos leitores – sobre um texto de António Sérgio, cuja eventual republicação ignorava, pedia “Faço aqui um apelo: alguém me poderá indicar onde, se foi republicado; ou conseguir uma fotocópia desse texto?” – nem o prazer de viver – ao lembrar um espectáculo do Teatro do Salitre dos idos de 40, conclui: “A minha memória cai no passado e paro para não me entregar a devaneios saudosistas. É que morreu quase essa gente toda. Quem vive? O Rebello, o Artur Ramos e um lote de esplêndidos actores. E eu, oh!”
O último texto, “Memorial do recolhimento”, de cariz autobiográfico, relata a sua experiência de vida num lar, em Palmela, reflectindo sobre a idade e sobre a morte, mas sempre com uma certeza, trazida pelo trabalho e pela edição (que continuava a fazer): “Se padeci sustos e flatos e, às vezes, isto parece uma casa de orates, não perdi a vontade de rir de mim, principalmente, o que é óptimo sintoma. Dêem-me os parabéns.”
Frases que ficam
Viver – “Ninguém se arrogue a pretensão de viver, sempre, dias interessantes, dignos de menção. Era o que faltava!”
Crítico – “Eis um crítico literário a meu gosto. Fala daquilo que ama e de quem ama; eleva um Autor, sem rabulices tecnicistas, à estima do leitor comum.”
Encosto – “Será pessimista ou negativo, por exagerado, reconhecer que um escriba andando sempre colado ao Sistema, aos vários poderes dos vários sistemas (e tantos eles foram nos derradeiros 50 anos) não se pode arrogar, depois, fazer-lhe a crítica… que por dentro será arrojada, talvez suicida, por fora redundará em folclórica: inócua, supérflua, literatelha.”
Saber – “Houve o tempo dos almanaques. E até ficou conhecida, em pejorativo, em degradante, uma dita ciência de almanaque, que designava um amontoado de noções rápidas, amacacadas, nomes, datas, caganifâncias inúteis com as quais se podia aparentar, para ignaro ver, alguma cultura. Não fazia mal a ninguém, entretinha, iludia quem queria ser e merecia ser iludido.”
Lar – “Aqui há meses, chateadíssimo de viver sozinho, resolvi recolher a um lar da terceira-idade. Calcula-se o que é. Antros de horror, para onde os velhos são atirados porque aborrecem ou incomodam em casa da família, dos filhos. Não sei ao certo de onde veio esta moda, mas calculo. E veio para ficar. Normas comunitárias, subsídios que transformam idosos incapazes em rendosa matéria-prima; despojos humanos vampirizados por gente sem escrúpulos nenhuns e gulosa dos apoios oficiais, apenas. Lares? Meros depósitos de pré-cadáveres. Pobre gente no derradeiro patamar da vida, apoquentada pela idade avançada, a insânia do caruncho, a doença, a invalidez física.”

Política caseira (108) - Azeitão (S. Lourenço) segundo a Junta de Freguesia e segundo o PCP

O Setubalense: 21.Dezembro.2009 [só agora lido]

Poemas de Natal (7) - Manuel Pereira de Medeiros

O amigo Medeiros reagiu também às trocas e, sob a marca dos tempos que correm, assinou o poema natalício para mensagens por mail.

E-MAIL'S DO NATAL

«Agradeço e retribuo»
Ver todos só hoje venho
Por cada mail concluo
Grandes amigos que eu tenho

Tão bela que custa a crer
A Festa deste Natal!
Que todos a possam ter
Inda melhor ou igual!

Tanta coisa a correr mal
Do pior que pode ser
E ter assim um Natal
Dá mesmo pra comover

Cá em casa há alegria
A família reunida
Mesa farta e todo o dia
Dois netos cheios de vida

É isto que vos desejo
Em vossas casas também
Vosso mail o bom ensejo
De um voto de Paz e Bem
M.P.M.

Poemas de Natal (6) - Adília Lopes

A Ildeberta Simões juntou-se ao rol dos que oferecem poesia, enviando um texto de Adília Lopes:

Minha avó e minha mãe
perdi-as de vista num grande armazém
a fazer compras de Natal
hoje trabalho eu mesma para o armazém
que por sua vez tem tomado conta de mim
uma avó e uma mãe foram-me
entretanto devolvidas
mas não eram bem as minhas
ficámos porém umas com as outras
para não arranjar complicações

Adília Lopes, in Quem quer casar com a poetisa? (2001)

Poemas de Natal (5) - João Miguel Fernandes Jorge

Estoutro poema, dos anos 70, subscrito por João Miguel Fernandes Jorge, chegou por mail do João Vassalo.

Pequenos versos em forma de Natal

A abstracção não precisa de mãe nem pai
nem tão pouco de tão tolo infante

mas o natal de minha mãe é ainda o meu natal
com restos de Beira Alta

ano após ano via surgir figura nova nesse
presépio de vaca burro banda de música

ribeiro com patos farrapos de algodão muito
musgo percorrido por ovelhas e pastores

multidão de gente judaizante estremenha pela
mão de meu pai descendo de montes contando

moedas azenhas movendo água levada pela estrela
de Belém

um galo bate as asas um frade está de acordo
com a nossa circuncisão galinhas debicam milho

de mistura com um porco a que minha avó juntava
sempre um gato para dar sorte era preto

assim íamos todos naquela figuração animada
até ao dia de Reis aí estão

um de joelhos outro em pé
e o rei preto vinha sentado no

camelo. Era o mais bonito.
depois eram filhoses o acordar de prenda no

sapato tudo tão real como o abrir das lojas no dia
de feira

e eu ia ao Sanguinhal visitar a minha prima que
tinha um cavalo debaixo do quarto

subindo de vales descendo de montes
acompanhando a banda do Carvalhal com ferrinhos

e roucas trompas o meu Natal é ainda o Natal de
minha mãe com uns restos de canela e Beira Alta.

João Miguel Fernandes Jorge, in Actus Tragicus (1979)

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

Poemas de Natal (4) - Filomena Peixeiro

A Filomena sempre escreveu poemas desde que a conheço. E gosta de partilhar a sua escrita com os colegas e com os professores. Hoje, ao enviar os votos de "boas festas", a Filomena adicionou o seu poema para este "Natal".

Natal

Entra pela frincha
da janela
a luz da manhã…
Mais um Natal
que já chegou!
A lareira ainda está acesa
e o menino
nas palhinhas
a esperar pelo nosso
abraço.
Abraço,
aperto,
carinho…
Também estes
devemos dar
àqueles que amamos,
esperando
a existência
de um novo dia.
De repente,
um novo olhar,
as crianças
estão a chegar
e na janela
a neve cai,
cai, cai…
Longe o tempo
que pára para a chegada
deste momento
que devemos celebrar
com felicidade
e apreço.
Mais uma coisa, então,
para, enfim, terminar…
Um Feliz Natal!
Filomena Peixeiro

Poemas de Natal (3) - David Mourão-Ferreira

O terceiro poema foi-me lembrado pelo amigo José Baía, a partir do frio de Bragança, numa das várias evocações desta quadra que David Mourão-Ferreira assinou.

Litania para o Natal de 67

Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
num sótão num porão numa cave inundada
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
dentro de um foguetão reduzido a sucata
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
numa casa de Hanói ontem bombardeada

Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
num presépio de lama e de sangue e de cisco
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
para ter amanhã a suspeita que existe
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
tem no ano dois mil a idade de Cristo

Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
vê-lo-emos depois de chicote no templo
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
e anda já um terror no látego do vento
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
para nos pedir contas do nosso tempo


David Mourão-Ferreira, in Lira de bolso (1970)

Poemas de Natal (2) - Vitorino Nemésio

O poema de Nemésio foi-me enviado pela Ana Sofia, aluna do 8º ano. Reproduzo-o também.

NATAL CHIQUE

Percorro o dia, que esmorece
nas ruas cheias de rumor;
minha alma vã desaparece
na muita pressa e pouco amor.

Hoje é Natal. Comprei um anjo,
dos que anunciam no jornal;
mas houve um etéreo desarranjo
e o efeito em casa saiu mal.

Valeu-me um príncipe esfarrapado
a quem dão coroas no meio disto,
um moço doente, desanimado…
Só esse pobre me pareceu Cristo.

Vitorino Nemésio, in O pão e a culpa (1955)

Poemas de Natal (1) - António Gedeão

Na troca de mensagens natalícias, a poesia entra. Ou não fosse ela rica nas alusões a esta quadra!... Em troca do poema de Côrtes-Rodrigues, que enviei, foram-me enviados outros. Todos bonitos. Aqui reproduzo o primeiro, enviado pela Maria do Céu, assinado por António Gedeão.

Dia de Natal
Hoje é dia de ser bom.
É dia de passar a mão pelo rosto das crianças,
de falar e de ouvir com mavioso tom,
de abraçar toda a gente e de oferecer lembranças.

É dia de pensar nos outros – coitadinhos – nos que padecem,
de lhes darmos coragem para poderem continuar a aceitar a sua miséria,
de perdoar aos nossos inimigos, mesmo aos que não merecem,
de meditar sobre a nossa existência, tão efémera e tão séria.

Comove tanta fraternidade universal.
É só abrir o rádio e logo um coro de anjos,
como se de anjos fosse,
numa toada doce,
de violas e banjos,
entoa gravemente um hino ao Criador.
E mal se extinguem os clamores plangentes,
a voz do locutor
anuncia o melhor dos detergentes.

De novo a melopeia inunda a Terra e o Céu
e as vozes crescem num fervor patético.
(Vossa Excelência verificou a hora exacta em que o Menino Jesus nasceu?
Não seja estúpido! Compre imediatamente um relógio de pulso antimagnético.)

Torna-se difícil caminhar nas preciosas ruas.
Toda a gente se acotovela, se multiplica em gestos, esfuziante.
Todos participam nas alegrias dos outros como se fossem suas
e fazem adeus enluvados aos bons amigos que passam mais distante.

Nas lojas, na luxúria das montras e dos escaparates,
com subtis requintes de bom gosto e de engenhosa dinâmica,
cintilam, sob o intenso fluxo de milhares de quilowatts,
as belas coisas inúteis de plástico, de metal, de vidro e de cerâmica.

Os olhos acorrem, num alvoroço liquefeito,
ao chamamento voluptuoso dos brilhos e das cores.
É como se tudo aquilo nos dissesse directamente respeito,
como se o Céu olhasse para nós e nos cobrisse de bênçãos e favores.

A Oratória de Bach embruxa a atmosfera do arruamento.
Adivinha-se uma roupagem diáfana a desembrulhar-se no ar.
E a gente, mesmo sem querer, entra no estabelecimento
e compra – louvado seja o Senhor – o que nunca tinha pensado comprar.

Mas a maior felicidade é a da gente pequena.
Naquela véspera santa
a sua comoção é tanta, tanta, tanta,
que nem dorme serena.

Cada menino
abre um olhinho
na noite incerta
para ver se a aurora
já está desperta.
De manhãzinha
salta da cama,
corre à cozinha
mesmo em pijama.

Ah!!!!!!!!!!

Na branda macieza
da matutina luz
aguarda o a surpresa
do Menino Jesus.

Jesus,
o doce Jesus,
o mesmo que nasceu na manjedoura,
veio pôr no sapatinho
do Pedrinho
uma metralhadora.

Que alegria
reinou naquela casa em todo o santo dia!
O Pedrinho, estrategicamente escondido atrás das portas,
fuzilava tudo com devastadoras rajadas
e obrigava as criadas
a caírem no chão como se fossem mortas:
Tá tá tá tá tá tá tá tá tá tá tá tá tá.
Já está!
E fazia as erguer para de novo matá-las.
E até mesmo a mamã e o sisudo papá
fingiam
que caíam
crivados de balas.

Dia de Confraternização Universal,
dia de Amor, de Paz, de Felicidade,
de Sonhos e Venturas.
É dia de Natal.
Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade.
Glória a Deus nas Alturas.

António Gedeão, in Máquina de Fogo (1961)

quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Boas Festas! Feliz Natal!

Natividade, por Todd Weber

Este ar frio que vem dos montes
traz consigo um eco de toadas distantes
canção de pastores
que sabe a rosmaninho e a silva brava;
cantigas ao relento
no silêncio das noites consteladas

vozes ao longe
há quantos séculos despertando o negrume do tempo

luar de sonho
que banhasse no misticismo da sua claridade
o coração dos homens simples.

Armando Cortes-Rodrigues

Ver o património azulejar religioso em Setúbal

Um olhar sobre os painéis de azulejo que enriquecem as igrejas da região de Setúbal, numa chamada de atenção para esse património, é o que nos apresenta o primeiro volume da obra recentemente editada, Património azulejar religioso de Setúbal e Azeitão (Setúbal: Liga dos Amigos de Setúbal e Azeitão, 2009), trabalho devido ao Núcleo do Património da LASA (constituído por António Cunha Bento, Armando Miguel Ferreira, Inês Gato de Pinho, Isabel Peraboa de Deus, Isabel Sousa de Macedo, Maria de Jesus Gonçalves e Ricardo Jorge Ambrósio).
Este trabalho surge na sequência do levantamento fotográfico do património azulejar da região (tendo já sido publicado no ano passado um volume reunindo imagens dos azulejos decorativos de exterior, visíveis nas ruas da mesma região) e nele são apresentadas as peças que constam nas igrejas paroquiais sadinas de Santa Maria da Graça, de São Julião, de São Sebastião e de Nossa Senhora da Anunciada, bem como nas igrejas do Mosteiro de Jesus, do Convento de Brancanes e do Convento da Boa-Hora e na capela do antigo Colégio de São Francisco Xavier. Prometido fica um volume consagrado a idêntico património azeitonense.
O livro assenta na visualização fotográfica sobretudo (cerca de 120 imagens, algumas delas recorrendo ao pormenor), com escassa legenda, ainda que, a anteceder o capítulo de cada edifício, seja feita uma breve resenha histórico-artística da construção. Como intenção máxima deste projecto, fica o propósito de “dar a conhecer o património azulejar religioso existente em Setúbal”, bem como a expressão da necessidade de “contribuir para a sua salvaguarda e preservação”. Um contributo bem válido para o conhecimento do património cultural setubalense!

Máximas em mínimas (54)

1. "Pode-se vomitar tudo menos o medo e a solidão."
2. "Os acontecimentos, às vezes, vão à nossa frente."
Dennis McShade. Blackpot. Lisboa: Assírio & Alvim, 2009, pp. 50 e 55.

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Fim de ano com as estrelas

Cada qual em sua mesa, os dois idosos conversavam depois do almoço num gastar das horas a recordar. Eram tempos de juventude, de serviço militar, com recordações de idas ao quartel da Graça e de vidas em Lisboa, à mistura com observações sobre o fado e sobre o agitar da noite. Mas era, sobretudo, o prazer de recordar, à compita, para ver qual deles tinha mais e melhores lembranças, conversa revivida e partilhada com os outros frequentadores daquele restaurante em Palmela.
E o fim de ano? Onde o ia ele passar? Era a pergunta de um para o outro.
- Ah, eu vou a Setúbal, ao Largo onde era a Feira de Santiago. Sabes como se chama? Tem o nome do José Afonso... Há ali um restaurante de frango assado... Não é o Isidro. É o... é o...
O outro não sabia. Ou não se recordava. Se calhar, já estava mais para ouvir.
- Duarte dos Frangos! - disse eu, numa ajuda de memória.
- Isso, isso. O Isidro é lá em cima... Mas vou ali, porque há lá festa de fim de ano.
Silêncio por momentos.
- É que eu gosto de ar livre. E de festa ao ar livre. Vou lá... respirar aquele ar, ver a noite, ver o tempo, ver as estrelas, ver os anjos... tudo isso é que nos guia e eu gosto...
O outro ouvia. Todos ouvíamos. Não sei se o homem estava a partilhar, se estava a sonhar. De repente, parecia que ele se transformava, se soltava dali e todos o víamos a contemplar o universo, falando com as estrelas, dirigindo-se ao firmamento.
- Ah, assim é que é bom! - antegozava no seu espairecer. - É mesmo lá que eu vou, ainda que chova... Gosto muito de lá ir...

sábado, 19 de dezembro de 2009

D. Manuel Clemente, prémio "Pessoa 2009", em entrevista

O suplemento “Actual”, publicado com o Expresso de hoje, reproduz entrevista com D. Manuel Clemente, bispo do Porto a quem recentemente foi atribuído o prémio “Pessoa 2009”. Homem de fé, de cultura, de dúvidas e de ideias, aqui reproduzo cinco tópicos dessa entrevista, todos eles cruzados com debates que estão na ordem do dia.
Trabalho – “O trabalho não é algo exterior à pessoa. Não é um simples meio ou expediente de sobrevivência. A realização de uma sociedade feliz é a realização de uma sociedade com trabalho. Não tenho dúvidas nenhumas de que a infelicidade que muita gente sente na sociedade portuguesa passa muito pelas dificuldades na obtenção de trabalho.”
Portugal – “Portugal é um país crítico. Não tem nenhuma razão de auto-suficiência e, no entanto, é o país com fronteiras definidas mais antigo da Europa. Mas nunca teve possibilidade de se sustentar sozinho. As nossas crises cerealíferas da Idade Média são endémicas. Nunca teve possibilidades, até humanas, quando foi da expansão ultramarina, de garantir uma imensidão como aquela por onde se espraiou. Não tinha possibilidade, no século XVII, de garantir, só por si, a sua independência. Depois do ouro do Brasil, o país fica destroçado. Demorou 50 anos a recompor-se, quando grande parte da Europa já estava mais à frente. Mesmo no século XX, tivemos situações de pobreza muito difíceis de ultrapassar em todos os campos. Portugal, como estudo de caso, é uma coisa apaixonante, porque é um país que não tinha nenhuma razão para subsistir e subsiste. Os portugueses subsistem apesar de Portugal.”
Família e casamento – “Desde que o homem tem consciência de si próprio, com uma enorme variedade, desde as grandes famílias de clãs até à família nuclear dos nossos dias, desde as famílias poligâmicas até às monogâmicas, há sempre um ou dois factores comuns: homem e mulher. A complementaridade masculino e feminino, bem como a possibilidade e a previsão da geração e da educação da prole. As sociedades depois constituídas como Estado reconheceram a família como factor básico de sociabilidade, de educação, de geração… Outras realidades que as pessoas livremente queiram ter e que até possam ser institucionalizadas terão outro nome, porque são realmente diferentes. Outra coisa é outra coisa.”
Liberdade – “Adiro e integro-me na sociedade liberal contemporânea que desde o final do século XVIII se tem sedimentado entre nós e que se conjuga em termos de liberdade. Isto é, da disponibilidade de cada um em levar a sua vida por diante de acordo com o seu próprio projecto. Mas não extravaso para a deriva libertária a que temos assistido desde a última guerra mundial, em que basta eu desejar para isso ser a razão suficiente para avançar, independentemente do que os outros pensam ou do que as instituições me peçam.”
Mistério – “Gostaria de perceber a relação da religião, e concretamente do cristianismo, com dois sentimentos básicos e dificilmente conjugáveis, na Humanidade e na Igreja, que são a segurança e a liberdade.”

Máximas em mínimas (53)

Ser e parecer
"O facto de um homem olhar para o céu à noite não faz dele um astrónomo." (ensinou Pavel a Bruno)
John Boyne. O rapaz do pijama às riscas. 4ª ed. Alfragide: Edições ASA, 2009, pg. 73.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Mariana Angélica de Andrade, "a poetisa do Sado"

O que seria de uma literatura se não houvesse os epígonos? Melhor: o que seria de uma época literária se os mesmos epígonos não existissem? Bem a gente pode lembrar o período romântico com Almeida Garrett ou Alexandre Herculano, nomes de destaque e fundamentais para a época, nomes máximos do romantismo em Portugal. E os outros? Os que não constam em parangonas nas histórias das literaturas, os que publicaram apenas um livro ou mesmo só em periódicos, mas absorvendo, cimentando ou revelando as marcas da época?
A questão não constitui novidade, claro, e só a trouxe para aqui porque, frequentemente, a gente se vai esquecendo desses outros que ajudaram a fazer as épocas mas que não tiveram o nome lembrado. E Setúbal pôde, recentemente, assistir a um desses casos, quando Anita Vilar veio relembrar o nome de Maria Angélica de Andrade, conhecida como a “poetisa do Sado”, mulher do século XIX (1840-1882) que foi casada com Cândido de Figueiredo e em Setúbal viveu durante três décadas, a partir dos 4 anos.
Há uma semana, foi apresentado o livro Mariana Angélica de Andrade – A poetisa do Sado (Setúbal: Centro de Estudos Bocageanos, 2009), obra antológica organizada por Anita Vilar, que também escreveu uma nota introdutória para o volume. Por esta antologia passam 25 poemas de Mariana Angélica de Andrade, ora extraídos dos seus livros Murmúrios do Sado (1870) ou Revérberos do poente (póstumo, de 1883), ora colhidos da imprensa sadina da época, em títulos como Grinalda literária ou em Gazeta setubalense, perseguindo linhas temáticas como a melancolia, a natureza, a morte, a noite, o pendor individualista, os estados de alma, a revolta, a preocupação social, a liberdade, com imagens fortes como as do naufrágio, do destino ou da afirmação da mulher. Muitos dos poemas abrem com citações que denotam alguns dos seus mestres, lembrando nomes como Bocage e Camões (sobre quem escreve poemas também), Camilo, Castilho, João de Lemos, Herculano, Bulhão Pato ou João de Deus, não faltando sequer uma “imitação de Victor Hugo”. Na nota introdutória, Anita Vilar disponibilizou elementos biográficos desta poetisa nascida em Sousel (com tábua cronológica a propósito), recolheu algumas opiniões da época sobre a autora e fez uma sumária apresentação dos poemas agora relembrados. No final do livro, há ainda indicações de bibliografia activa e passiva alusivas à autora “descoberta”.
Mariana Angélica de Andrade bem carecia desta publicação para a lembrar e talvez mesmo de trabalho mais completo, provavelmente pela publicação integral em volume dos dois títulos saídos em livro, acrescidos da recolha dos poemas que viveram nos jornais. Na apresentação do livro, Anita Vilar revelou mesmo que, estando a antologia já no prelo, descobrira mais colaboração da poetisa noutra publicação setubalense sua contemporânea, Aspirações. Foi, aliás, neste pequeno jornal que se publicava em Setúbal, que, em 19 de Janeiro de 1871, numa carta dirigida a João Matos Silva, a escritora Mariana Angélica de Andrade, no meio de conselhos a um futuro escritor, confessou o seu respeito pelo pensador “austero e profundo” que foi Herculano: “Veja Alexandre Herculano, cujo nome eu pronuncio quase com tanto respeito como Newton pronunciava o nome de Deus.”
A importância de Mariana Angélica de Andrade foi evidenciada por Jacinto do Prado Coelho, no seu Dicionário de Literatura, ao colocá-la, a par com Ana Plácido, Amélia Janny, Guiomar Torrezão e Maria Amália Vaz de Carvalho (para falar apenas de nomes femininos seus coetâneos), como uma das mulheres que, no século XIX, vai “conquistando lugar de certo relevo no jornalismo como na vida literária”. Esta antologia, possibilitada pelo trabalho de procura de Anita Vilar, veio proporcionar o conhecimento de Maria Angélica de Andrade, tornando-se num bom contributo para o estudo de um daqueles autores que, não sendo de nome obrigatório nas histórias da literatura, faz parte do grupo de nomes incontornáveis para o desenho de uma época, no caso, da época romântica, que, como todas as outras, também foi feita com os que alimentaram o espírito da época no dia-a-dia e no seu meio.
[OBS: O poema "Liberdade" foi publicado no jornal Grinalda Literária, em 10 de Junho de 1874.]

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Pérolas & farpas

Caso 1 – Medina Carreira e Novas Oportunidades – «Convidado da tertúlia 125 minutos com, que decorreu no Casino da Figueira da Foz, Medina Carreira disse ainda que a educação em Portugal “é uma miséria” e que as escolas produzem “analfabetos”. “[O programa] Novas Oportunidades é uma trafulhice de A a Z, é uma aldrabice. Eles [os alunos] não sabem nada, nada”, argumentou Medina Carreira. Para o antigo titular da pasta das Finanças a iniciativa dos Ministérios da Educação e do Trabalho e da Solidariedade Social, que visa alargar até ao 12.º ano a formação de jovens e adultos, é “uma mentira” promovida pelo Governo. “[Os alunos] fazem um papel, entregam ao professor e vão-se embora. E ao fim do ano, entregam-lhe um papel a dizer que têm o nono ano [de escolaridade]. Isto é tudo uma mentira, enquanto formos governados por mentirosos e incompetentes este país não tem solução”, acusou. As críticas de Medina Carreira estenderam-se aos estudantes que saem das escolas “e não sabem coisa nenhuma”. “O que é que vai fazer com esta cambada, de 14, 16, 20 anos que anda por aí à solta? Nada, nenhum patrão capaz vai querer esta tropa-fandanga”, frisou. Defendeu um regime educativo “exigente, onde se aprenda, porque os empresários querem gente que saiba”.»
Caso 2 – Nogueira Pinto e o circo – «A primeira audição da Comissão Parlamentar de Saúde ficou hoje marcada por uma troca de ofensas entre a deputada social-democrata Maria José Nogueira Pinto e o deputado socialista Ricardo Gonçalves, que levou o presidente a ameaçar suspender os trabalhos. A troca de insultos ocorreu quando Maria José Nogueira Pinto intervinha na comissão, onde esteve presente a ministra da Saúde e os seus dois secretários de Estado. Uma observação de Ricardo Gonçalves motivou a irritação de Maria José Nogueira Pinto, que chamou o deputado de "palhaço". "Não sabia que tinham contratado um palhaço" para a Comissão Parlamentar de Saúde, disse a deputada. Em resposta, Ricardo Gonçalves teceu comentários sobre a troca de cor política por parte de Maria José Nogueira Pinto. O presidente da comissão apelou à sensatez dos presentes, ameaçando suspender os trabalhos caso continuasse a troca de insultos. O deputado socialista justificou alegando diferentes postos de vista, ao que Maria José Nogueira Pinto respondeu: "Não devem existir em todos os parlamentos deputados como o senhor, um deputado inimputável".»

Será que vale a pena a gente acreditar que o contrário de tudo isto existe? Sim, eu sei que “é preciso acreditar”. Mas será mesmo preciso? E, já agora, acreditar em quê? Os comentários de Medina Carreira poderiam ser acertados se fossem mais equilibrados e não rondassem tanto o nível caceteiro. Por outro lado, a notícia, saída da LUSA e reproduzida no site do Público, também poderia reproduzir os comentários que Medina Carreira fez quanto aos deputados que hoje nos representam, classificados como “uns tipos” que “não podem miar” sob pena de perderem lugar no mandato seguinte (ouvi na rádio). Este lindo (!!!) retrato dos políticos que temos – e que aprovam leis – encontra eco no segundo caso, passado hoje na Comissão Parlamentar de Saúde, também relatado pela LUSA e reproduzido no mesmo site. O circo no seu melhor… E os eleitores têm de se divertir com estes números? De que serve estarmos preocupados com a indisciplina numa escola, concretizada em agressões e ofensas verbais, quando a mensagem que recebemos em casa, sem pedir e que podemos rever até à exaustão, é esta?

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Ondjaki, depois de uma leitura

Depois da leitura de algumas narrativas de Momentos de aqui (Lisboa: Editorial Caminho), fomos até Ynari- A menina das cinco tranças (Lisboa: Editorial Caminho, 2004), ambos de Ondjaki. Antes de lhes mostrar as ilustrações que Danuta Wojciechowska fez para este último, pedi-lhes que fizessem um desenho a propósito de um momento da história de Ynari. Eis sete propostas, de alunos de 7º ano, que partilho com gosto.
Adriana Santos e Joana Reis, Ynari, a menina das cinco tranças
Joana Simões, Quando o Homem Pequenino sai do capim
Carlota Paulino, Ynari encontra o Homem Pequenino
Beatriz Fortuna, Ynari encontra o Homem Pequenino
Joana Miranda, Ynari, o encontro
Luana Pinto, Ynari conversa com o Homem Pequenino
Catarina Barreiros, O Homem Pequenino leva Ynari à sua aldeia

sábado, 5 de dezembro de 2009

Diário da auto-estima (104)

Minaretes – O resultado referendário na Suíça a favor da proibição dos minaretes acabou por apanhar muita gente de surpresa. Afinal, os fundamentalismos vivem a Oriente, a Ocidente, no mundo islâmico como no europeu ou em qualquer outro. Educar, num mundo como este, é bem difícil, sobretudo quando estão em causa questões como a igualdade, a liberdade, a tolerância, o respeito pelo outro. De que serve falar-se disto se as decisões e as políticas apregoam outra coisa, se a sociedade se encaminha por vias como a suíça?
Insultos I – Apenas ouvi por momentos o debate da Assembleia da República numa estação de rádio. E chegou. O verbo anda muito por baixo naquele espaço e as convicções e os princípios não lhe ficarão atrás. O país assistiu ao enxovalho pelo vocabulário – “lançar lama e suspeição”, “actuação que degrada, (…) indigna, infamante” e que “não devia ter lugar”, “não saber o que é ter vergonha”, “comportamento impróprio”, recomendações a deputado do género “porte-se com juizinho”… Mas em que país estamos? Por vezes, rimo-nos de cenas de pugilato em parlamentos que vão sendo designados como “terceiromundistas”, mas o que nos separa dessas situações é pouco – naqueles, é pugilato físico; no nosso, é pugilato verbal.
Insultos II – Há dias, fui a uma escola para falar de Sebastião da Gama. Durante a sessão, destinada a várias turmas do secundário, os alunos de um grupo foram falando entre si, suscitando chamadas de atenção de alguns professores da escola e interrupções da minha apresentação. A dada altura, uma aluna desse grupo, aos berros, vira-se para um dos professores a contestar uma chamada de atenção quanto ao barulho que lhe tinha sido feita. Um pouco mais tarde, houve o toque da campainha, a assinalar o final de aula (que não o final da sessão) e a mesma aluna, com o gáudio dos que a acompanhavam, desatou a dizer que tinha de ir embora por causa do transporte e não sei que mais. Um dos professores, porque a sessão estava prestes a terminar, recomendou-lhe alguma calma e, novamente aos berros, a criatura responde: “Porquê? Vai levar-me a casa? Mas o que é isto?” e sai porta fora, perante o pasmo de quase todos e os sorrisos e algumas palmas cúmplices dos do seu grupo. A sessão acabou dali a minutos. Os professores desfizeram-se em desculpas. Um explicava-me que aquele grupo era de alunos que não queriam a escola, que só ali estavam porque houve a possibilidade de um curso profissional, que a posição habitual daqueles alunos relativamente à escola era aquela. Não estranhei e lá fui dizendo que conhecia a situação. O que me preocupa é que estes alunos poderiam ter visto o debate de que falei no parágrafo anterior (a força da agressão pela palavra e pelo falar mais alto, por exemplo) e continuariam a achar que os seus procedimentos foram os mais correctos; o que me preocupa é que, em nome do progresso e de outros valores, a escola pública vai ser, cada vez mais, o cadinho onde vão crescer grupos assim, que lá estarão obrigatoriamente até que concluam um qualquer 12º ano, originando que as condições de trabalho e de participação e aprendizagem dos outros e de todos nem sempre sejam as melhores. O que me custou foi ver que não há soluções para este tipo de atitudes, de provocação, de humilhação. Ah, esquecia-me de dizer, mas ainda vou a tempo: a cena não se passou numa escola degradada nem numa escola-problema de qualquer bairro socialmente desfavorecido, nem sequer na Margem Sul, não. E mais: apesar de poder parecer um caso isolado, resta saber se os casos isolados não serão tantos que não exijam medidas superiores para que o respeito e a educação façam parte da escola.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Rostos (138)

Escultura no pórtico (tímpano) da igreja de Bravães (Ponte da Barca)

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

José Fanha veio à Escola

Hoje, foi dia de José Fanha na Escola. Já lhes tinha lido vários textos do poeta, designadamente de A porta (Alfragide: Gailivro, 2009) e de Diário inventado de um menino já crescido (4ª ed. Alfragide: Gailivro, 2009), excertos que mexeram com eles, na ondulação dos sentimentos e da leitura. Hoje, foi dia de José Fanha na Escola, uma década depois de aqui ter estado com Francisco Fanhais (em Junho de 1999) numa actividade que celebrava o 25º aniversário da instituição.
José Fanha veio à Escola com o Pedro Reizinho (setubalense, com dois livros infantis publicados, editor de obras de sucesso). Ouviram-no com atenção e participaram nos desafios. O poeta contou histórias, leu poemas (seus e de outros – de António Lobo Antunes, de António Ramos Rosa, de António Jacinto, de João Roiz de Castelo Branco, de Ary dos Santos, de Lawrence Ferlinghetti). E os alunos riram, ouviram, participaram. E Fanha aconselhou sobre necessidade de ler, de ler, de ler (e também de ter cuidado com as informações da net, muitas delas falsas). E houve palmas. E sempre poesia. E houve apontamentos biográficos – “Vou contar-lhes a história deste livro, de um jovem de um tempo em que não se mamava e não se comia a ver televisão”, a lembrança da avó, as pinturas do filho parecido consigo “30 quilos atrás”. E houve atenção e sorriso. E autógrafos. E alunos contentes e surpreendidos.
À noite, a mensagem de uma mãe (de um jovem que não é meu aluno) para o telemóvel: “Obrigada pelo momento proporcionado hoje na escola. O meu filho não pára de falar dos poemas, das histórias e da maneira diferente de as contar.” Ora ainda bem! A poesia faz disto: imiscui-se, infiltra-se e faz com que se manifestem. Com a ajuda do artista, claro! E o agradecimento vai direitinho para o José Fanha… Creio que muitos destes alunos recordarão com prazer o tempo em que estiveram no anfiteatro a ouvir literatura.

Rostos (137)

Pelourinho, no Soajo (Arcos de Valdevez)

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

"ViVER Setúbal" - Os roteiros de uma exposição (3)

Viver Setúbal. Uma forma de ver a cidade
- Notas críticas a um roteiro (II)

por Carlos Mouro
IV. No segundo volume do roteiro há mais um infeliz parágrafo (seguindo, aliás, o texto original), em referência ao Fórum Municipal Luísa Todi: “Foi inaugurado em 1960, durante as comemorações do Centenário da elevação de Setúbal a Cidade. Substituiu o Teatro Rainha D. Amélia, demolido em 1956, depois de 68 anos ao serviço da cultura setubalense.” (p. 4). O que foi inaugurado em 1960 foi o cine teatro Luísa Todi e não o Fórum Municipal! O velho teatro D. Amélia (e não Rainha D. Amélia), arquitectado por Nicola Bigaglia, fora inaugurado a 1-8-1897. Os republicanos rebaptizaram-no como teatro Avenida. Depois, em 1915, por iniciativa da Academia Sinfónica de Setúbal, que ali se instalara, passou a ostentar o nome da Todi. Assim foi até à demolição, em 1956. No mesmo espaço ergueu-se, com traça de Fernando Silva, um moderno cine teatro, inaugurado a 24-7-1960. A 21 de Abril de 1989 o imóvel foi adquirido pela CMS que o transformou em Fórum Municipal, sob o patrocínio, ainda, da celebrada cantora lírica sadina Luísa Rosa de Aguiar Todi (1753-1833).
V. Logo a seguir há novas confusões, desta feita a propósito do Club Setubalense. Lemos ali que “O seu primeiro nome – Grémio Setubalense (de inspiração britânica) – foi substituído em 1898, devido ao mal-estar criado pelo Ultimato Inglês” (p. 6). O ainda existente Club Setubalense foi fundado em 1855, sucedendo à Sociedade de Recreio Familiar, de 1850. Certo. A embrulhada vem depois (até porque não foi seguido o texto original, que está correcto). O primeiro nome daquela associação foi Club Setubalense – designação, esta sim, de inspiração inglesa. Aquando do Ultimatum de 11-1-1890, entre outras reacções de protesto face à atitude britânica, o vocábulo ‘Club’ foi, frequentemente, substituído por ‘Grémio’ ou ‘Centro’. O grupo setubalense não perdeu tempo e, em Fevereiro de 1890, adoptou a designação de Grémio Setubalense. Assim se manteve até 10-2-1898, quando os associados deliberaram repor a primitiva designação, a que hoje subsiste: Club (e não Clube) Setubalense.

As duas notas com imprecisões
VI. Na página seguinte escreveu-se, a propósito do monumento a Luísa Todi: “Inaugurado logo após a sua morte em 1933”. De facto, o monumento em causa foi inaugurado em 1933. Luísa Todi, porém, morrera 100 anos antes! Aliás, a construção daquela simples memória pretendeu celebrar, localmente, o nome da cantora quando se cumpria o I Centenário da sua morte, ocorrida a 1-10-1833.
VII. Na legenda da segunda fotografia dessa página lê-se: “Américo Ribeiro – Construção da glorieta a Luísa Todi, 1938”. Como explicar a discrepância de datas? Sucede que em 1933 o singelo monumento foi inaugurado no lado nascente do Parque das Escolas (hoje Largo José Afonso). A fotografia, porém, regista a reconstrução daquele, após a transferência do espaço inaugural para o local em que todos o conhecemos – na Av. Luísa Todi, nas proximidades da Praça de Bocage, no que foi popularmente conhecido por Jardim dos Gatos – o que ocorreu, de facto, em 1938.
Notícia e fotografia do monumento a Luísa Todi

VIII. Na página 8 lê-se que a Fonte Luminosa é conhecida como Fonte do Centenário. Preferíamos, por nos parecer mais correcto, ler ali o contrário: Fonte do Centenário, mais conhecida por Fonte Luminosa. Ainda assim, a fórmula adoptada é mais feliz do que uma outra que circula com frequência, apelidando aquele monumento de Fonte das Ninfas.
IX. Nos pequenos roteiros, bem como nos mapas que os acompanham, há outros lapsos menores. Nos textos que lhes serviram de base há, também, alguns. Citemos apenas um, tirado de "As elites d’ouro branco – de Santa Maria a Bocage". A certo passo, escreveu-se: “…a 4 de Outubro de 1910, às 21 horas, quando anarco-sindicalistas, socialistas e republicanos incendiaram os Paços do Concelho e mutilaram a antiga fonte do Sapal…”. De facto, o antigo edifício municipal foi incendiado na noite de 4-10-1910, após escaramuças entre populares e forças da ordem. Entre aqueles haveria, admitimo-lo, anarquistas, socialistas, republicanos… Corrija-se, apenas, um lapso que é comum, aliás. A mutilação da magnífica fonte do sapal (hoje reconstruída na Praça Teófilo Braga) teve lugar na noite de 11-12-1910 quando um mestre da armada, de nome Júlio Marques, num momento de exaltação revolucionária, tentou apear o escudo e a coroa – símbolos da realeza deposta – que encimavam a artística fonte. A operação correu mal. Júlio Marques foi gravemente atingido pelas pedras que tirava com uma corda. Faleceu, no hospital local, a 13 daquele mês e ano.

Referência à Fonte do Centenário



O leitor emendará outros pequenos lapsos que ali existam. As incorrecções que inventariámos, e a natureza das mesmas, são suficientes para que lamentemos, entre a tristeza e a incredulidade, os lapsos registados. Com trabalhos deste quilate, como se promoverá Setúbal e a região que a envolve, junto de autóctones e de forasteiros?Para que esta prosa não termine de modo tão desencantado queremos deixar uma palavra de elogio ao grafismo dos roteiros elaborados, seguindo a linha de toda a exposição. Gostámos. Apreciámos, ainda, a solução encontrada para mostrar o património construído setubalense, captado pela objectiva de Américo Ribeiro (ou de outros que, em Setúbal, o precederam) em confronto com imagens actuais dos mesmos lugares, construções ou monumentos, apresentados numa composição francamente atractiva.

"ViVER Setúbal" - Os roteiros de uma exposição (2)

Viver Setúbal. Uma forma de ver a cidade
- Notas críticas a um roteiro (I)
por Carlos Mouro
Entre Junho e Setembro puderam os setubalenses apreciar, na sede da AERSET e, depois, na casa da Sociedade Musical Capricho Setubalense, uma exposição intitulada "Viver Setúbal. Uma forma de ver a cidade", da responsabilidade da Sociedade SetúbalPolis. Na ocasião foram editados três pequenos roteiros, organizados em torno de outros tantos percursos pela História e património setubalenses – Do Largo de Jesus ao Largo da Fonte Nova (1.º), Avenida Luísa Todi (2.º), Da igreja de S. Julião à igreja de Santa Maria (3.º) – com textos adaptados de outros, da responsabilidade de técnicos do Museu de Setúbal/Convento de Jesus, também editados, em separado. Com a desmontagem daquela exposição desaparecerá o que de bom e de menos bom se expunha. Pelo contrário, os roteiros impressos manter-se-ão, perpetuando o que de bom e de mau encerram. Justificam-se, pois, estas notas corrigindo erros grosseiros com que ali nos deparámos.
I. No primeiro caderno somos surpreendidos por uma inaudita versão da conhecida lenda sadina que narra a origem da freguesia de Nossa Senhora Anunciada: “Reza a lenda da criação desta igreja que uma peixeira pobre estava a assar cavalas quando uma delas saltou do fogo. Depois de várias tentativas para a assar, a peixeira apercebeu-se de que a cavala era, afinal, uma imagem de Nossa Senhora.” (p. 7). O disparate já foi notado por João Reis Ribeiro que o causticou no seu “Diário da auto-estima” (Sem Mais – Jornal, 13-6-2009). Interrogamo-nos, também: Onde desencantaram tamanho disparate? Para mais, o desconhecimento andou de braço dado com a distracção já que, na página seguinte do opúsculo, se transcreve a versão correcta da lenda, sem referência a cavalas, cavalinhas ou qualquer outro teleósteo.

A lenda da Senhora da Anunciada com a leitura errada


II. Na página 9 há novo descuido na legenda da segunda fotografia. O espaço urbano registado por Américo Ribeiro, no cliché reproduzido, não se designa (nem nunca se designou) por Largo dos Combatentes. Denominou-se, antigamente, Largo das Almas. Com a República – em homenagem ao vice-almirante Cândido dos Reis (1852-1910), mentor, chefe e mártir da Revolução de 5-10-1910 – passou a conhecer-se por Praça Almirante Reis.

A foto com o monumento aos Combatentes e a legenda imprecisa


III. Logo na página seguinte – em capítulo intitulado, vá lá saber-se porquê, “Os caminhos de Roma” – refere-se o pelourinho de Setúbal: “Originalmente construído para a Praça da Ribeira (antigo Largo da Ribeira Velha) e depois de duas deslocações, o pelourinho é reconstruído na época de D. José I. Por representar o poder do Duque de Aveiro, o antigo símbolo local foi mandado demolir e construiu-se um novo, aproveitando a coluna antiga. (…). No cimo da coluna está o capitel de estilo coríntio trazido de Tróia”. O pelourinho que se ergue na Praça Marquês de Pombal foi construído para aquele lugar e não para o Largo da Ribeira (hoje Largo Dr. Francisco Soveral), como se depreende da leitura do citado parágrafo. Depois, são referidas “duas deslocações” que aquele vetusto símbolo terá sofrido. A que deslocações se referem os autores? Mais: no pelourinho levantado em 1774, não se aproveitou a coluna do anterior, nem o capitel que a encima proveio de Tróia. O que veio daquela península, o elemento romano daquela construção, é, precisamente, a coluna e não o capitel como, erradamente, querem os autores do roteiro (este particular aspecto consta do texto original).

O texto impreciso sobre o Pelourinho

(continua)