O último texto de O
concerto interior – Evocações de um poeta (Lisboa: Assírio & Alvim,
2012), de António Osório, conclui com uma invocação: “Espero que me ajude a
Nossa Senhora da Saudade, que nos acompanha até ao fim da vida”. O quadro em
que surge esta quase prece é emoldurado pela lembrança de Maria Emília, sua
mulher, digna forma de fechar um livro de recordações, selado com um retrato de
alguém com quem foram partilhadas quase seis décadas de uma vida.
Abriga-se,
pois, António Osório junto de uma Nossa Senhora da Saudade e pensará o leitor
numa definição desta saudade que alimenta as páginas de um livro feito de
memórias. Vou buscar-lhe explicação, gravada na nota introdutória de um outro
livro de memórias que publicou há quatro anos, Vozes íntimas (Lisboa: Assírio & Alvim, 2008), onde registou
que as tais “vozes íntimas” outra coisa não eram senão a “forma de termos a
nosso lado a sua companhia e de sermos fiéis a essa invisível presença”.
Aqui
residirá a chave para entrarmos nos textos memorialísticos de António Osório,
habitualmente conhecido como poeta, ainda que com começo de publicação tardio,
por 1972, quando se inaugurou em edição de autor com A raiz afectuosa, já próximo dos 40 anos (de idade de António
Osório, na altura do aparecimento dessa obra, e, agora, em 2012, de obra
literária). É ainda nessa introdução de há quatro anos que as coordenadas da
memória são traçadas, uma vez que os textos então publicados são apresentados
como “excertos de lembranças” e justificados porque “a memória dos outros acaba
por seguir a própria – dispersos acontecimentos da juventude e da iniciação
literária, alguns encontros decisivos, o devido agradecimento”. Uma fidelidade,
diríamos, aos outros e à vida.
Nesse
outro livro de 2008, António Osório mostrava-se, com os amigos e com os
momentos que a eles deveu, eternizando o lume da amizade, a tal “luz fraterna”,
expressão que traria, no ano seguinte, para essa compilação magna da sua
poesia. De um ponto de vista estrutural, o livro que agora aparece, O concerto interior, edifica-se da mesma
forma – em treze textos de memórias, que vão sendo outras tantas peças de um
“puzzle” duplamente entendido: como reconstrução escrita da família e como
gratidão ou homenagem ao que foi ou é a sua família, ainda que, por vezes,
vista no sentido lato que a estende até à profissão, cadinho também feito de aprendizagens,
de encaminhamentos, de protecções e de amizades, que, de alguma forma,
prolongam esse universo de afectos e de proximidade.
Ao longo
dos vários textos, António Osório vai tornando presentes aqueles que já estão
ausentes, respeitando a fidelidade, e vai contando a história que o fez. O
pormenor dessa fidelidade vai mesmo até ao ponto de a prolongar na disposição
dos objectos que fazem a memória, como se pode ver em três de vários exemplos:
o primeiro, ao evocar a mãe e o curso que ela fizera de puericultura, quando regista
“tenho ali o diploma”, forma de provar não apenas o título ou a formação
atribuídas a Giuseppina mas também a guarda, a protecção e a proximidade do
documento, que implicam a fidelidade; o segundo, no texto que evoca Maria
Valupi, ao referir que a pedra pisa-papéis que ela usava “ficou sempre na minha
mesa, à direita”, mas “agora está no lugar próprio – por cima da sua Antologia poética”, uma quase
justificação para a escolha de um mais adequado espaço, assim não sendo ferida
a tal fidelidade, antes a reforçando; o terceiro, ao situar um quadro de Miguel
Ângelo Lupi que fora resguardado por Maria Valupi, insistindo numa perspectiva
muito próxima – “O quadro passou a fazer-me companhia. No escritório da casa da
Aldeia, ficou à minha direita; virado de frente. Durante quarenta anos,
assistiu praticamente a tudo o que escrevi.” Fidelidades aos sítios, aos
gestos, às recordações, para garantia de uma fidelidade da memória!
Quanto à história de que se
fez, o memorialista revela vários momentos: ao tentar definir as suas raízes
culturais, aponta as coordenadas que o levam à cultura italiana, através da
mãe, ou à portuguesa e francesa, através do pai; ao relembrar a sua juventude,
assinala “os dois tormentos” que a mãe teve de enfrentar – a doença de
“gânglios” do filho e o sofrimento dos familiares próximos italianos devido à
2ª Guerra Mundial; ao cartografar o que seria uma sua geografia, destaca a
importância de Setúbal, de Palmela, de Azeitão, das quintas, mas também a de
Lisboa e de espaços como o escritório ou a sede da Ordem dos Advogados, e ainda
as visitas ao estrangeiro, fosse por razões da advocacia ou por motivos
culturais e familiares, constituindo todas estas coordenadas outros tantos
pontos de partida para amizades; o estágio de advogado, a sua carreira e o seu
papel enquanto bastonário da Ordem dos Advogados (percurso que não surge
isolado de vários comentários que estabelecem a ponte entre o passado e o
presente, em tom crítico, como quando refere que, no tempo em que iniciou a
profissão, “os julgamentos não se atrasavam como hoje”, ou quando diz que, no
seu estágio, ficara a conhecer a “máquina da justiça”, expressão logo acrescida
da nota “aliás muito melhor do que a de hoje”, ou ainda quando comenta ser
“cada vez mais lamentável o distanciamento entre os membros da família judiciária, como antigamente se
dizia”).
O concerto interior revela também a
chave que dá acesso à poesia de António Osório, não escondendo do leitor a
forma como surgiram alguns dos seus poemas. Numas situações, revela o pretexto
desses poemas, que tanto pode ser um marco importante ocorrido na sua vida
(como os filhos ou o desaparecimento dos pais ou o de Maria Emília, por
exemplo) ou o legado de certas pessoas com quem se cruzou (a senhora Conceição,
que cozinhava o pão, o carroceiro José da Vaca, a senhora Rita, que ajudava nas
tarefas da casa, o senhor João, caseiro, ou o senhor Teotónio da Malta Jotta,
funcionário da biblioteca da Ordem dos Advogados, ou o poeta e amigo brasileiro
Carlos Nejar) ou ainda o fascínio perante uma obra de arte (como o poema que
edifica em torno da escultura de David, em Florença, ou a propósito de uma tela
de El Greco, em Toledo); noutros casos, os textos iluminam o que são os seus
elementos poéticos fortes (os animais, o “espanto pela natureza”, o tempo).
A
questão poética acaba por dominar ainda este livro, uma vez que o texto que o
encerra não é de cunho memorialístico, antes assumindo um lugar de “apêndice”,
aí se fazendo sentir a voz do escritor, do poeta, num quase manifesto
intitulado “O desprezo pela poesia”, mensagem que correu a propósito do Dia
Mundial da Poesia de 2010, divulgada pela Sociedade Portuguesa de Autores. O
texto é sobretudo de tomada de posição quanto à vida editorial, quanto à
educação literária, quanto à sensibilidade que deve animar qualquer cultura,
por ele perpassando nomes fortes, de um amplo friso cronológico, que
constituíram alicerces de gerações de poetas, como Platão, Ángel Crespo,
Benedetto Croce ou Rainer Maria Rilke. E não será por acaso que o manifesto
encerra com Rilke, artista maior para a geração de António Osório e com vasta
leitura e reflexão em Portugal, quando escreveu: “ser artista é amanhecer como
as árvores, que não duvidam da própria seiva e que enfrentam tranquilas as
tempestades da Primavera, sem recear que o Verão não chegue”. A questão das
estações serve de modelo à vida e, para um poeta, não há melhor seiva do que a
poesia, geradora de palavra e de fraternidade, afinal termos caros a António
Osório e que povoam a sua escrita.
Propositadamente,
deixei para o final a questão do título, algo que, em si mesmo, nos transporta
para uma situação de absoluto equilíbrio com o mundo, com a escrita e com o
“eu” que se nos mostra – a ideia do “concerto” remete-nos para a totalidade e
para a plena conjugação, para a obra perfeita, e o qualificativo “interior”
alimenta o tom confessional, de exposição e de refúgio em simultâneo; uma e
outra palavras revelam o apaziguamento com o mundo, uma e outra palavras
reflectem-se no subtítulo “evocações de um poeta”, acentuando essa dominante da
memória, dos fragmentos da vida, por selecção ou por imposição. A imagem que de
imediato nos surge é a da serenidade, um concerto de tal forma intenso que nos
permite lidar com o tempo de uma maneira pacífica, porque, como notou Philippe
Besson, “o tempo cura tudo e deixa apenas à superfície as imagens que queremos
conservar” (Em tempos de guerra.
Casal de Cambra: Caleidoscópio, 2008, pg. 45). Ao longo do folhear dos diversos
trechos, pode o leitor confrontar-se com vários registos da palavra “gratidão”,
sentimento mostrado perante gestos humildes ou grandiosos que contaram para a
formação e para o caminhar de quem se escreve. A intenção de António Osório foi
também autobiográfica, tal como acentua logo no título do curto texto de
abertura, significativamente intitulado “Uma vida”, abrindo espaço para o
horizonte cronológico, mas logo demonstrando a existência desse paradoxo que é
o da impossibilidade de uma vida se escrever na sua totalidade, como indicia
ainda na primeira frase ao emendar a mão para a possibilidade de este conjunto
ser apenas uma “breve autobiografia”. A perspectiva autobiográfica mantém-se em
todos os textos, alicerçada sobretudo na tónica da memória, ainda que, por
vezes, atinja também o estatuto de relato de obra feita, como sucede no
capítulo intitulado “O advogado e o escritor”, em que há evocações, relatos e
também um balanço de qual tenha sido o seu contributo enquanto bastonário da
Ordem dos Advogados.
Mas este “concerto” teve
ainda uma outra descoberta: nesse mesmo texto que inicia a obra, António Osório
revela o encanto e o prémio do prazer da escrita – “tudo isto trouxe de volta
fundas alegrias, que tentam afastar a velhice funesta”. Este “concerto” é,
pois, não só o desenho dos caminhos que em muitas situações conduziram à poesia
ou a digna atitude de gratidão, mas também a prova de que a escrita
autobiográfica possibilita um encontro de quem se escreve consigo mesmo, num
passeio orientado pelo labirinto que cada um de nós alimenta, constrói e vence.
Como há uns anos dizia Eduardo Lourenço numa entrevista a Carlos Vaz Marques,
“o que me interessa é o auto-retrato que cada um de nós está escrevendo. (…)
Nós não precisamos de psicanalista para nada. A gente dá-se. (…) A escrita é
realmente a escrita do nosso inconsciente. Uma pessoa não pode trair-se a si
própria.” (Ler. Lisboa: Fundação
Círculo de Leitores, nº 72, Setembro de 2008, pp. 30-40). Ora, como acto de permanente
risco e exposição, a escrita é também essa ponte que, ao permitir o fluxo entre
mim e os outros, nos torna vivos, nos justifica, nos ajuda à reconstrução. Se,
como diz António Osório, “os músicos são mais felizes que nós, poetas”, porque
“o entusiasmo rodeia-os, e até recebem o aplauso com ramos de flores”, a nós,
seus leitores, outra coisa não restará senão o enveredar por este percurso de
memórias, partilhando e agradecendo a dádiva e essa luz fraterna da poesia e da
vida, sempre rumo a um também… concerto interior!
[Na apresentação da obra, no Forum Municipal Luísa Todi, em Setúbal, ontem]