sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Sobre "O concerto interior", de António Osório


O último texto de O concerto interior – Evocações de um poeta (Lisboa: Assírio & Alvim, 2012), de António Osório, conclui com uma invocação: “Espero que me ajude a Nossa Senhora da Saudade, que nos acompanha até ao fim da vida”. O quadro em que surge esta quase prece é emoldurado pela lembrança de Maria Emília, sua mulher, digna forma de fechar um livro de recordações, selado com um retrato de alguém com quem foram partilhadas quase seis décadas de uma vida.
Abriga-se, pois, António Osório junto de uma Nossa Senhora da Saudade e pensará o leitor numa definição desta saudade que alimenta as páginas de um livro feito de memórias. Vou buscar-lhe explicação, gravada na nota introdutória de um outro livro de memórias que publicou há quatro anos, Vozes íntimas (Lisboa: Assírio & Alvim, 2008), onde registou que as tais “vozes íntimas” outra coisa não eram senão a “forma de termos a nosso lado a sua companhia e de sermos fiéis a essa invisível presença”.
Aqui residirá a chave para entrarmos nos textos memorialísticos de António Osório, habitualmente conhecido como poeta, ainda que com começo de publicação tardio, por 1972, quando se inaugurou em edição de autor com A raiz afectuosa, já próximo dos 40 anos (de idade de António Osório, na altura do aparecimento dessa obra, e, agora, em 2012, de obra literária). É ainda nessa introdução de há quatro anos que as coordenadas da memória são traçadas, uma vez que os textos então publicados são apresentados como “excertos de lembranças” e justificados porque “a memória dos outros acaba por seguir a própria – dispersos acontecimentos da juventude e da iniciação literária, alguns encontros decisivos, o devido agradecimento”. Uma fidelidade, diríamos, aos outros e à vida.
Nesse outro livro de 2008, António Osório mostrava-se, com os amigos e com os momentos que a eles deveu, eternizando o lume da amizade, a tal “luz fraterna”, expressão que traria, no ano seguinte, para essa compilação magna da sua poesia. De um ponto de vista estrutural, o livro que agora aparece, O concerto interior, edifica-se da mesma forma – em treze textos de memórias, que vão sendo outras tantas peças de um “puzzle” duplamente entendido: como reconstrução escrita da família e como gratidão ou homenagem ao que foi ou é a sua família, ainda que, por vezes, vista no sentido lato que a estende até à profissão, cadinho também feito de aprendizagens, de encaminhamentos, de protecções e de amizades, que, de alguma forma, prolongam esse universo de afectos e de proximidade.
Ao longo dos vários textos, António Osório vai tornando presentes aqueles que já estão ausentes, respeitando a fidelidade, e vai contando a história que o fez. O pormenor dessa fidelidade vai mesmo até ao ponto de a prolongar na disposição dos objectos que fazem a memória, como se pode ver em três de vários exemplos: o primeiro, ao evocar a mãe e o curso que ela fizera de puericultura, quando regista “tenho ali o diploma”, forma de provar não apenas o título ou a formação atribuídas a Giuseppina mas também a guarda, a protecção e a proximidade do documento, que implicam a fidelidade; o segundo, no texto que evoca Maria Valupi, ao referir que a pedra pisa-papéis que ela usava “ficou sempre na minha mesa, à direita”, mas “agora está no lugar próprio – por cima da sua Antologia poética”, uma quase justificação para a escolha de um mais adequado espaço, assim não sendo ferida a tal fidelidade, antes a reforçando; o terceiro, ao situar um quadro de Miguel Ângelo Lupi que fora resguardado por Maria Valupi, insistindo numa perspectiva muito próxima – “O quadro passou a fazer-me companhia. No escritório da casa da Aldeia, ficou à minha direita; virado de frente. Durante quarenta anos, assistiu praticamente a tudo o que escrevi.” Fidelidades aos sítios, aos gestos, às recordações, para garantia de uma fidelidade da memória!
Quanto à história de que se fez, o memorialista revela vários momentos: ao tentar definir as suas raízes culturais, aponta as coordenadas que o levam à cultura italiana, através da mãe, ou à portuguesa e francesa, através do pai; ao relembrar a sua juventude, assinala “os dois tormentos” que a mãe teve de enfrentar – a doença de “gânglios” do filho e o sofrimento dos familiares próximos italianos devido à 2ª Guerra Mundial; ao cartografar o que seria uma sua geografia, destaca a importância de Setúbal, de Palmela, de Azeitão, das quintas, mas também a de Lisboa e de espaços como o escritório ou a sede da Ordem dos Advogados, e ainda as visitas ao estrangeiro, fosse por razões da advocacia ou por motivos culturais e familiares, constituindo todas estas coordenadas outros tantos pontos de partida para amizades; o estágio de advogado, a sua carreira e o seu papel enquanto bastonário da Ordem dos Advogados (percurso que não surge isolado de vários comentários que estabelecem a ponte entre o passado e o presente, em tom crítico, como quando refere que, no tempo em que iniciou a profissão, “os julgamentos não se atrasavam como hoje”, ou quando diz que, no seu estágio, ficara a conhecer a “máquina da justiça”, expressão logo acrescida da nota “aliás muito melhor do que a de hoje”, ou ainda quando comenta ser “cada vez mais lamentável o distanciamento entre os membros da família judiciária, como antigamente se dizia”).
O concerto interior revela também a chave que dá acesso à poesia de António Osório, não escondendo do leitor a forma como surgiram alguns dos seus poemas. Numas situações, revela o pretexto desses poemas, que tanto pode ser um marco importante ocorrido na sua vida (como os filhos ou o desaparecimento dos pais ou o de Maria Emília, por exemplo) ou o legado de certas pessoas com quem se cruzou (a senhora Conceição, que cozinhava o pão, o carroceiro José da Vaca, a senhora Rita, que ajudava nas tarefas da casa, o senhor João, caseiro, ou o senhor Teotónio da Malta Jotta, funcionário da biblioteca da Ordem dos Advogados, ou o poeta e amigo brasileiro Carlos Nejar) ou ainda o fascínio perante uma obra de arte (como o poema que edifica em torno da escultura de David, em Florença, ou a propósito de uma tela de El Greco, em Toledo); noutros casos, os textos iluminam o que são os seus elementos poéticos fortes (os animais, o “espanto pela natureza”, o tempo).
A questão poética acaba por dominar ainda este livro, uma vez que o texto que o encerra não é de cunho memorialístico, antes assumindo um lugar de “apêndice”, aí se fazendo sentir a voz do escritor, do poeta, num quase manifesto intitulado “O desprezo pela poesia”, mensagem que correu a propósito do Dia Mundial da Poesia de 2010, divulgada pela Sociedade Portuguesa de Autores. O texto é sobretudo de tomada de posição quanto à vida editorial, quanto à educação literária, quanto à sensibilidade que deve animar qualquer cultura, por ele perpassando nomes fortes, de um amplo friso cronológico, que constituíram alicerces de gerações de poetas, como Platão, Ángel Crespo, Benedetto Croce ou Rainer Maria Rilke. E não será por acaso que o manifesto encerra com Rilke, artista maior para a geração de António Osório e com vasta leitura e reflexão em Portugal, quando escreveu: “ser artista é amanhecer como as árvores, que não duvidam da própria seiva e que enfrentam tranquilas as tempestades da Primavera, sem recear que o Verão não chegue”. A questão das estações serve de modelo à vida e, para um poeta, não há melhor seiva do que a poesia, geradora de palavra e de fraternidade, afinal termos caros a António Osório e que povoam a sua escrita.
Propositadamente, deixei para o final a questão do título, algo que, em si mesmo, nos transporta para uma situação de absoluto equilíbrio com o mundo, com a escrita e com o “eu” que se nos mostra – a ideia do “concerto” remete-nos para a totalidade e para a plena conjugação, para a obra perfeita, e o qualificativo “interior” alimenta o tom confessional, de exposição e de refúgio em simultâneo; uma e outra palavras revelam o apaziguamento com o mundo, uma e outra palavras reflectem-se no subtítulo “evocações de um poeta”, acentuando essa dominante da memória, dos fragmentos da vida, por selecção ou por imposição. A imagem que de imediato nos surge é a da serenidade, um concerto de tal forma intenso que nos permite lidar com o tempo de uma maneira pacífica, porque, como notou Philippe Besson, “o tempo cura tudo e deixa apenas à superfície as imagens que queremos conservar” (Em tempos de guerra. Casal de Cambra: Caleidoscópio, 2008, pg. 45). Ao longo do folhear dos diversos trechos, pode o leitor confrontar-se com vários registos da palavra “gratidão”, sentimento mostrado perante gestos humildes ou grandiosos que contaram para a formação e para o caminhar de quem se escreve. A intenção de António Osório foi também autobiográfica, tal como acentua logo no título do curto texto de abertura, significativamente intitulado “Uma vida”, abrindo espaço para o horizonte cronológico, mas logo demonstrando a existência desse paradoxo que é o da impossibilidade de uma vida se escrever na sua totalidade, como indicia ainda na primeira frase ao emendar a mão para a possibilidade de este conjunto ser apenas uma “breve autobiografia”. A perspectiva autobiográfica mantém-se em todos os textos, alicerçada sobretudo na tónica da memória, ainda que, por vezes, atinja também o estatuto de relato de obra feita, como sucede no capítulo intitulado “O advogado e o escritor”, em que há evocações, relatos e também um balanço de qual tenha sido o seu contributo enquanto bastonário da Ordem dos Advogados.
Mas este “concerto” teve ainda uma outra descoberta: nesse mesmo texto que inicia a obra, António Osório revela o encanto e o prémio do prazer da escrita – “tudo isto trouxe de volta fundas alegrias, que tentam afastar a velhice funesta”. Este “concerto” é, pois, não só o desenho dos caminhos que em muitas situações conduziram à poesia ou a digna atitude de gratidão, mas também a prova de que a escrita autobiográfica possibilita um encontro de quem se escreve consigo mesmo, num passeio orientado pelo labirinto que cada um de nós alimenta, constrói e vence. Como há uns anos dizia Eduardo Lourenço numa entrevista a Carlos Vaz Marques, “o que me interessa é o auto-retrato que cada um de nós está escrevendo. (…) Nós não precisamos de psicanalista para nada. A gente dá-se. (…) A escrita é realmente a escrita do nosso inconsciente. Uma pessoa não pode trair-se a si própria.” (Ler. Lisboa: Fundação Círculo de Leitores, nº 72, Setembro de 2008, pp. 30-40). Ora, como acto de permanente risco e exposição, a escrita é também essa ponte que, ao permitir o fluxo entre mim e os outros, nos torna vivos, nos justifica, nos ajuda à reconstrução. Se, como diz António Osório, “os músicos são mais felizes que nós, poetas”, porque “o entusiasmo rodeia-os, e até recebem o aplauso com ramos de flores”, a nós, seus leitores, outra coisa não restará senão o enveredar por este percurso de memórias, partilhando e agradecendo a dádiva e essa luz fraterna da poesia e da vida, sempre rumo a um também… concerto interior!

[Na apresentação da obra, no Forum Municipal Luísa Todi, em Setúbal, ontem]

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