Os três contemplados com o Prémio Literário Manuel Maria Barbosa du Bocage deste ano, promovido pela Liga dos Amigos de Setúbal e Azeitão (LASA), estiveram, na tarde de ontem (feriado municipal em Setúbal, em honra de Bocage), numa cerimónia que teve lugar no Salão Nobre da Câmara Municipal de Setúbal. Aqui reproduzo a apresentação dos trabalhos vencedores, lida em nome do júri, de que fiz parte.
É esta a décima terceira edição do concurso literário Manuel Maria Barbosa du Bocage, que a LASA mantém, numa periodicidade anual e em várias modalidades, para honrar e alimentar a memória do poeta que foi embalado em Setúbal e que, um dia, deixou o seu “pátrio Sado” rumo à glória.
222 trabalhos foram apreciados pelo júri, constituído pela Dra. Adriana Simões, pelo Dr. Alexandre Castanheira e por mim próprio. Se o trabalho de leitura foi árduo na passagem pelos vários milhares de páginas, conseguiu-se algum grau de facilidade na decisão dos jurados, uma vez que, sem termos acertado critérios prévios, fizemos coincidir as nossas opções, resultantes dos nossos gostos e adesões, escolhendo por unanimidade os trabalhos que aqui se apresentam como vencedores, ainda que na modalidade da poesia outros trabalhos existissem que poderiam ser merecedores do prémio.
O que, desde logo, nos chamou a atenção foi a presença de Bocage nestes três trabalhos, não de uma forma redundante ou imitadora, mas através de criações originais, de leituras convidativas, em que se cruza a pertinência de Bocage com o presente, assim como a veia bocagiana com a revelação conseguida pela escrita. A este propósito, convém lembrar um outro poeta da nossa região, Sebastião da Gama, que, num poema ainda não publicado, redigido quando tinha os seus 16 anos, clamava: “Quem me dera – ai, quem me dera! – / ter o estro de Bocage / p’ra esta paixão sincera, / em verso, cantar e a laje / do teu coração quebrar / cessando, assim, meu penar.”
O “estro de Bocage” animava o nosso poeta da Arrábida – estávamos em 1940 – como hoje inflama muitos apreciadores de poesia, designadamente os três autores das obras que motivaram este nosso encontro.
Comecemos pela categoria Revelação, texto intitulado Epílogo, assinado por Eva Corte-Real, pseudónimo que corresponde a Catarina Alexandra Duarte Almeida, de 16 anos. O seu título não nos engana, remetendo-nos para um final – o dos derradeiros momentos de lucidez de Bocage. Peça de ficção, em prosa, alterna o sentir de um “eu” bocagiano com as lembranças do passado da personagem. Temos Bocage num quase exame de consciência, folheando o álbum das suas recordações mais intensas, aguarela por onde passam Pina Manique, o hospício, os frades, o quotidiano a bordo no trajecto da Índia, a vida de marujo, a mãe, o irmão, a boémia, as mulheres. O narrador que é Bocage demanda, em páginas que se assemelham às do memorialismo, “o sentido desta triste vida”, que resume, repentina e exageradamente, no seguinte: “É quase sempre o mesmo: vestígios de vinho barato, duas ou três moças por mês, uns versos e umas cantatas. Nada mais.” Guião possível para o que poderia ser o último quadro da vida de Bocage, esta memória forjada levá-lo-á a estabelecer a diferença entre a tristeza do fim e do abandono e a alegria resultante do prazer de viver, terminando a sua página com um auto-retrato que não desconhecemos: “Aqui estou eu, Bocage. Encharcado e quase morto, delirando sem ser entre um par de pernas.”
Este suposto desabafo de Bocage encontra-se novamente com o poeta Sebastião da Gama que mencionei há pouco – é que foi ele quem, há 61 anos, neste mesmo espaço, palestrou sobre Bocage e a sua poesia de amor, dizendo a dado passo: “No quadro da nossa poesia de amor, em que há lugar para o recato e para o discreto atrevimento, Bocage é aquele poeta que diz de frente o que tem a dizer. Nos outros, nos que se disfarçam e nos que congeminam, seria um amante como Bocage o que encontraríamos, a descermos à essência de cada um.”
A história que Catarina Almeida criou, em torno dos últimos momentos de lucidez de Bocage, revela uma personagem humanamente tratada, com um recurso à descrição equilibrada, mostrando uma faceta do homem que pode ter sido poeta, sentida, determinada pelo auto-retrato que Bocage de si mesmo traçou.
As marcas autobiográficas acentuam o trabalho vencedor na modalidade de ensaio, intitulado Espaço autobiográfico em Apólogos ou Fábulas Morais de Manuel Maria Barbosa du Bocage, assinado por José Vitalício, pseudónimo correspondente a Manuel Branco de Matos. Trata-se de um trabalho documentado, quer sobre o conceito e a história do género fábula, quer sobre a teorização da escrita autobiográfica, com um propósito assinalado: “Detectar, registar, analisar e interpretar indícios de cariz autobiográfico convergentes com a biografia do poeta Bocage, naquela diminuta parte da sua obra, exígua mas não despicienda, que vem na tradição dos três marcos miliários da rota da fábula, os mais conhecidos fabulistas de sucessivos períodos da cultura europeia e ocidental de quem Bocage se mostra epígono de mérito e fabulista original”.
Contendo a fábula um juízo crítico, fácil se nos torna aceitar que, na sua redacção, seja possível encontrar os tais indícios de cunho autobiográfico que o autor persegue. O corpus bocagiano apresentado por Branco de Matos é constituído por 28 fábulas, onde se podem ver valores que se impunham ao poeta setubalense: a liberdade, a revolta com a prisão e com o exercício da justiça, o ensimesmamento, o ciúme, o amor não correspondido, entre outros, com a voz do poeta a manifestar-se num discurso valorativo, cimentado por adjectivação adequada, indo além dos textos que lhe serviram de pretexto. Para o autor, Bocage passou por variados géneros “sem outros intuitos que não fossem a exorcização, catarse do seu sofrimento, ou como resposta necessária, e conscientemente prolongada no tempo, à altura das adversidades e das ofensas de que se sentiu vítima”. Assim, ter escolhido para veículo de princípios e de desabafos personagens animais, é a garantia de que “pela voz do grande poeta, os animais continuam a falar”.
É uma abordagem interessante esta que Branco de Matos nos propõe, chamando a atenção para um género literário muitas vezes relegado para o esquecimento e para uma parte da obra de Bocage de que se fala pouco, apesar de construída sobre fortes raízes da cultura universal e que tem ecos inesquecíveis na obra lírica bocagiana.
Na modalidade de poesia, a escolha encaminhou-se para o título Dois poemas esquecidos, subscritos pelo pseudónimo José Santiago, criado pelo autor João Baptista Coelho, obra composta por dois longos poemas, “Guerra e Paz” e “Cântico do Ser e do Não-Ser”, ambos construídos por sonetos, que surgem ligados porque o último verso de cada soneto constitui o primeiro verso do soneto seguinte.
A escolha da forma – o soneto – é já uma homenagem a Bocage, que foi um dos mais brilhantes sonetistas da nossa literatura. Mas os temas, pela reflexão que constituem sobre a vida e a morte, têm também a sua matriz bocagiana. No primeiro poema, temos o homem como construtor da paz e da guerra, enaltecendo-se a coragem e a sede de ir mais longe, mas reprovando-se as consequências de desmedidas ambições, materializadas na guerra, no sofrimento, na destruição, na morte, com evocações de Hiroshima, do Vietname, de Hitler ou de Nero. Pelos interstícios, passam Antero ou Florbela, numa afirmação de que a poesia brilha apesar de tudo: “E, frente a tais desvarios, tão supremos, / pasmados nos quedamos quando vemos / que ainda se cultiva a Poesia!”
Tempo de paradoxos é este em que o poeta afirma que “a própria guerra / faz parte do pão nosso de cada dia”, conciliando o inconciliável – a guerra e a conquista e partilha do pão –, assim intensificando o absurdo. Grito pela paz, o poema conclui com um convite: “Daí que eu aqui deixe o meu apelo: / Acabem neste mundo o pesadelo / da Vida não passar duma batalha! // Que os Homens compreendam que uma flor / abrolha para a vida e faz-se amor, / bastando-lhe do ar uma migalha!”
O segundo poema constitui uma peregrinação pelo “eu” que se confessa e se revê como ficando muito aquém do que parece, num caminho para o sem sentido, para a nostalgia. Um percurso também bocagiano, afinal, em torno de um herói que vê a deflagração dos ideais e a poeira em que, prestes, se transformará!... Também aqui, Baptista Coelho propõe a salvação através da palavra poética – depois de uma confissão (fórmula querida dos românticos e também seguida por Bocage), o poeta conclui: “Mas há no que vos digo, todavia, / um triste ser não-ser da Poesia / que a Musa quis depor à minha beira: // A mágoa que me dói, um fogo que arde, / de só me vir beijar… tarde, tão tarde… / agora que estou quase a ser poeira.”
Acreditou o júri estar perante três bons trabalhos, com leitura para ser apreciada, sobretudo porque, além de bem construídos, por todos eles perpassa o tal “estro de Bocage” de que lhes falei no início. Por outro lado, a diversidade de géneros e de olhares, um quase poliedro, permite-nos enaltecer Bocage, que, como Luís Forjaz Trigueiros neste mesmo espaço disse em 1947, é “um bloco estriado de mil filamentos”. Daí a sua riqueza!
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