[foto: O Setubalense, de hoje]
Para a cidade do Sado, a sardinha tem servido como passaporte e o facto de ter havido grande envolvimento na promoção da sardinha para o concurso das sete maravilhas da gastronomia portuguesa é disso prova recente. Mas podemos lembrar outros eventos: por finais de Julho de 2001, Setúbal esteve presente na quarta edição do festival "Les Arts Dînent à l'Huile", que se realizou na cidade francesa de Douarnenez, na Bretanha, um evento que foi divulgado pela organização sob o lema "se as sardinhas pudessem falar, elas descreveriam os portos do mundo...". Refira-se a propósito que Douarnenez (apresentada por Noel Graveline como a primeira cidade francesa "a querer preservar o património marinho do tempo dos antepassados") e Setúbal apresentam pontos de aproximação devidos às pescas: tal como a cidade do Sado, a cidade bretã teve porto e indústria pesqueira desde a época da romanização e esteve ligada à produção do "garum", forma de conserva da época que também era exportada da região de Setúbal para a península itálica. Tendo também sentido o quase desaparecimento da sardinha no início do século XX, Douarnenez intitula-se hoje como a "capital europeia da conserva de peixe".
Mais recentemente, em finais de Maio do ano passado, foi a ideia da mega-sardinhada, que trouxe ao Largo José Afonso cerca de 10 mil apreciadores que se encarregaram de saborear, no tempo de oito horas, cerca de seis toneladas de sardinha.
O louvor da sardinha setubalense tem vários ecos na literatura portuguesa, mas é o nome de Raul Brandão que deve ser destacado a propósito.
A cidade de Setúbal atribuiu já o nome do escritor a uma rua, próxima de outras em que constam também nomes de autores portugueses, no Bairro Humberto Delgado. Além de nome importante na escrita, Brandão deixou alguns registos sobre Setúbal, especialmente no seu livro Os Pescadores, publicado pela primeira vez em 1923, e também na obra Portugal Pequenino, escrita em co-autoria com sua mulher, Maria Angelina, datada de 1929.
Aquilo que cativou Brandão para as paragens em Setúbal foi algo que faz parte da história da cidade desde há muito: o rio, o mar, a pesca e a sardinha, bem como as formas de vida que daí decorrem.
Na descrição da paisagem e das pessoas, a situação dos mais desfavorecidos foi tónica brandoniana - mesmo num texto de pendor impressionista e descritivo como aquele que domina o livro Os Pescadores, não pôde deixar de enviar "farpas" a uma administração pouco ecológica e pouco preocupada com a vida dos homens do mar: as queixas quanto à falta de sardinha eram muitas pelos anos 20, fenómeno que Brandão atribuía aos "vapores de arrasto", às traineiras que matavam "a dinamite", aos "barcos estrangeiros" utilizadores do carboneto, à falta de fiscalização e ao incumprimento dos regulamentos. Desiludido, ironizava: "Nós só temos um sistema bem organizado - o da destruição". Sem esperança, acrescentava, em tom apocalíptico: "é de prever que dentro de cinquenta anos não haverá uma escama nas fertilíssimas águas portuguesas". E ironizava, novamente: "Fartem-se enquanto é tempo".
[Raul Brandão]
Pelo meio do texto de Brandão, ficava a apologia da sardinha, desse pequeno peixe que, na designação taxionómica, recebe o nome de Clupea Pilchardus. Com efeito, em jeito de retrato completo e ainda que sendo longa a citação, deixou escrito o autor da Foz do Douro: "O cardume, que foi força e vida misteriosa, que formou um só corpo e passou obedecendo não sei a que instinto ou a que inteligência superior, cai sobre Lisboa - como vem de Setúbal, do Algarve e das praias ignoradas de toda a costa lusitana, das grandes armações e dos pequenos barcos. É espalhada pelo país. Comem-na assada na brasa os trabalhadores da estrada e os homens esfaimados do campo com um pedaço seco de broa. De Inverno é magra, mas pelo S.João pinga no pão. No norte o lavrador espera-a para o jantar: é o seu melhor conduto. Os pobres fregem-na numa gota de azeite, e salgada ou saltando no cesto, fresquinha da barra, viva de Espinho, gorda, antes da desova, sem cabeça e escruchada, com a guelra em sangue, ou laivos amarelos de salmoura, constitui um manjar para pobres e para ricos. Entra em todas as casas. Há quem goste dela de caldeirada e quem a prefira simplesmente assada deixando cair no lume a gordura que rechina. Há os que só saboreiam a grande, de lombo gordo e preto, e os que acham muito melhor a miúda, que se chama petinga e que se devora com escama e tudo, afirmando com uma convicção respeitável que a mulher e a sardinha quer-se da pequenina...".
Em Setúbal, ao longo dos tempos, não passou ao lado a preservação da sardinha. Na primeira década do século XX, numa política concorrencial na área das conservas, países como a Noruega, os Estados Unidos e o Japão chegaram a comercializar conservas de outras variedades de peixe como sendo conservas de sardinha. No entanto, os conserveiros franceses lutaram pela delimitação da variedade e, em 1912, um organismo como a Associação Comercial e Industrial de Setúbal apelava aos conserveiros nacionais para se juntarem "aos seus colegas franceses na luta por tão importante campanha", como refere Maria da Conceição Quintas.
No capítulo "A Pesca da Sardinha" do livro "Os Pescadores", Raúl Brandão enalteceu a sardinha, referindo que, ao chegarem, os batéis "despejam nas pedras os montes viscosos de prata" e que, ao tirarem-na da água, os pescadores se deparam com "uma onda de prata que sai da tinta azul". As tonalidades que Brandão utiliza para descrever o mar são diversas, dependendo da luz e da cor. Mas o mar que o fascinou foi o de Setúbal...
Depois de percorrer toda a costa e de ter contemplado o mar a partir de muitos ângulos, escreveu Brandão: "Onde ele atinge a perfeição é em Setúbal. Em Setúbal é imaterial. Sonha ao pé da estrada que vai a Outão, e reflecte na água cismática a sombra avermelhada dos montes, a grande curva voluptuosa com a Arrábida por pano de fundo. Ali sente-se que a água anda presa à baiazinha, a Outão e à serra. Contemplam-se e não se podem deixar. O mar não tem consistência: não é o verde do norte, não é o caldo azul do Algarve - é poeira e luz. Para os lados do Sado, a baía é ilimitada... Um clarão. E há uma época do ano em que a serra se veste de roxo, e então é que é vê-la desdobrada nesta água que é sonho e adormecimento ao mesmo tempo."
Qualquer viajante que passeasse sobre o cais podia seguir o olhar de Raúl Brandão nesse início da década de 20: "Em Setúbal, partem todos os dias os barcos para o mar. O movimento redobra. Setúbal e Olhão são os dois grandes portos de pesca. Sardinha - sardinha - sardinha... Esta península da Outra Banda, limitada por duas baías, devia ser um paraíso, pelo seu excepcional clima e pela sua luz admirável, e bastante, só ela, para, terra e mar, alimentar duas ou três vezes a população de Lisboa, se terra e mar fossem convenientemente cultivados."
Meia dúzia de anos depois de ter publicado Os Pescadores (que teve quatro edições no espaço de um ano), Raúl Brandão era autor, com a esposa, de Portugal Pequenino, título sob o qual duas personagens, o Russo e a Pisca, viajam no país, metamorfoseando-se em animais, em gotas de água ou em penedos, de forma a darem uma visão matizada e rápida: do alto, "pareciam veias os rios azulados, o Minho fronteiriço, o Douro entre montanhas, o Mondego que desce da Serra, o Tejo correndo na planície fértil até ao vasto estuário, o Sado, que passa em Setúbal, o Guadiana lá em baixo..."; do alto, "viram tudo, voaram ao acaso, andaram na baía de Setúbal, que é uma maravilha"; do alto, aprenderam que a sardinha se pesca "em toda a costa, em Lisboa, na Caparica, em Sesimbra e Setúbal", que "Setúbal e Olhão são os dois grandes portos de pesca", que, como a sardinha, "nenhum peixe dá mais dinheiro e poucos têm mais préstimo, pois ocupa o terceiro lugar na escala da alimentação e está muitos furos acima do bacalhau".
A sardinha e Setúbal davam assim as mãos através de um dos mais importantes escritores portugueses do século XX, característica apontada a Raul Brandão logo pelo jornal O Setubalense, de 6 de Dezembro de 1930, ao noticiar o seu falecimento com 63 anos: "A morte acaba de roubar às letras portuguesas o notável escritor e publicista Raul Brandão. Romancista admirável e vigoroso jornalista, Raul Brandão deixa uma enorme obra literária. Companheiro e amigo do Dr. António José de Almeida, foi chefe de redacção do jornal República na sua primeira fase e era actualmente assíduo colaborador de Seara Nova, a cujo agrupamento pertencia, afirmando com brilhantismo a sua fé de republicano".
1 comentário:
Gostava tanto de que, por inteiro ou pelo menos em maioria, a nossa cidade de Setúbal estivesse ao nível deste post de João Reis Ribeiro!...
M. Medeiros
Enviar um comentário