Em 27 de Setembro de 1947, a convite do então presidente da Câmara Municipal de Setúbal, Miguel Bastos, o escritor e jornalista Luís Forjaz Trigueiros evocou, nos paços do concelho, a figura de Bocage, numa conferência que intitulou “Bocage – O Homem e a Obra”. O texto dessa conferência foi depois incluído pelo autor no livro Sombra do Tempo (Lisboa: Livraria Bertrand, 1950?, pp. 143-164) e republicado na obra Homenagem Nacional a Bocage no II Centenário do seu Nascimento (Setúbal: Junta Distrital de Setúbal, 1965, pp. 37-48) sob o título de “Numeroso Elmano”. São dessa palestra os excertos que seguem, numa evocação de Bocage no dia em que se assinala o seu nascimento.
«(…) Bocage tinha em si, por vocação e temperamento, todas as características do lirismo trovadoresco – vestido, evidentemente, à forma do tempo –: a métrica cinzelada, num aprumo hierático que não conhece semelhante na contextura do soneto, uma riqueza de léxico, em que a dignidade do conceito se casa à fácil e espontânea harmonia das rimas, nos princípios arcaicos do neoclassicismo setecentista. Este, o técnico de poesia, sempre poeta no entanto, num século que parecia essencialmente antipoético, e em que a moda era a imitação serviçal dos clássicos, a estrangeirização e o racionalismo.
Há também, é certo, a tradição de um Manuel Maria Barbosa du Bocage apenas panfletário ou satírico, em que predomina a vis irónica ou sarcástica, quando não arruaceira, popular, anedótica. Evidentemente que o que nessa tradição existe de real, deformado, embora, pertence ao exacto perfil do poeta e não há que ignorá-lo ou esquecê-lo. Mas a sua obra literária não precisa, para permanecer, da memória do que não a diminuiu, por ser verdadeiro, mas também não a exalta. (…)
Qualquer estudante cábula de Letras sabe, efectivamente, que, à tona dessa água revolta, que foi o génio poético de Bocage, vêm sempre todos os elementos que o esclarecem, precisam e definem. Não tanto a euforia de uma vida entregue às breves recompensas dos prazeres efémeros, como a ânsia inquieta, de ordem interior, que a justificava, afinal, deve ter influído no drama estético que é a inevitável moldura da obra que nos deixou. Manuel Maria Barbosa du Bocage só pode ser compreendido e interpretado inteiro, isto é, bloco estriado de mil filamentos, que constituem, afinal, o conjunto e a riqueza da sua personalidade – tão grande na sátira e no epigrama, como no mais apaixonado e lírico dos seus sonetos, tão forte no arroubo do ciúme, como na descrição paisagística, rica de cor, de uma noite tempestuosa. (…)
No final do século XVIII, a moda era ver pelos olhos alheios. Desse pecado ficaram isentos alguns dos poetas da Arcádia – e o próprio Bocage, que até nas suas sátiras mais mordentes mantinha uma tradição nacional. (…)
O gosto da confidência íntima, que o atira, de desabafo em desabafo, atrás de Marília, Elisa, Filena, Gertrúria, Anarda, num dolorido cortejo sentimental, é o mesmo, ainda, que o faz chorar, em verso, a morte de um amigo ou de um vizinho, o boato da morte de Nelson, ou cantar as aspirações do liberalismo, o dia de anos de um amigo, ou qualquer outro tema destes, alheio em absoluto à obra de arte… (…)
Poeta, como Olavo Bilac o exaltou; ser convivente, como Beckford o viu; eis Bocage, em quem luz, não algum talento, como ele disse, mas uma das mais pletóricas inspirações poéticas do século XVIII. (…)»
[foto: Bocage, no Museu do Traje, no Portugal dos Pequenitos, em Coimbra]
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