Data de 1907 esta história A Justiça de Yerney (Col. “Nova Europa”. Lisboa: Cavalo de Ferro Editores / Grande Reportagem, 2004), construída pelo esloveno Ivan Cankar, e, apesar de mais que centenária, mantém a frescura da parábola, abordando a prática e a ética da justiça.
A narrativa estende-se por dúzia e meia de capítulos, depois de, como abertura, se ler um parágrafo como este: “Vou contar-vos esta história tal como aconteceu, com toda a sua injustiça e com toda a sua enorme tristeza. Não encontrareis nela períodos bem elaborados, nem ficções, nem hipocrisia.” Fica então o leitor a saber que A Justiça de Yerney é uma história sobre a injustiça.
Enterrado o velho Sitar, dono de vasta propriedade, quando ainda a família se recompunha do funeral, o feitor Bartholomew, tratado por Yerney, recebeu ordem do herdeiro e sucessor no sentido de abandonar as propriedades e as suas funções. Incrédulo e esmagado pela secura do novo patrão, Yerney inicia uma peregrinação no sentido de ser praticada a justiça, de defender os seus direitos, sem que ninguém tenha de ser castigado. Em causa estava a sua velhice e o facto de ter sido o seu trabalho que deu vida, durante mais de quatro décadas, à propriedade de Sitar. Como, pois, podia ser escorraçado sem direito a mais nada que não fosse uma trouxa com a roupa e umas botas que teria de carregar aos ombros durante a sua peregrinação?
A partida de Yerney é comovente, com um narrador que, logo desde início, toma o partido desta personagem – “Não havia um punhado de terra que não tivesse as marcas da labuta das suas mãos, do suor da sua fronte. Um homem vive um ano, dez anos, quarenta anos numa casa e nota que a casa se torna semelhante a ele como um irmão, e existe um laço de amor entre eles. E se, em obediência a uma ordem cruel, ele é obrigado a ir para um local distante, vai chorar mais por aquela casa que por um irmão, ou ainda mais do que chorou noutro tempo pela sua mãe.”
O calvário de Yerney arrasta-se de porta em porta, sempre contando a mesma história em busca da justiça em que acreditava, mas só uma figura desamparada e sem abrigo como Gostach, que aparecia de vez em quando, o adverte para o risco da empreitada – “Yerney, não discutas acerca de direitos e injustiça das leis dos homens e dos mandamentos de Deus. Já o fiz e olha: agora sou vagabundo e não tenho amigos.” Terá sido este o único sábio que o velho feitor encontrou (reconhecê-lo-á mais tarde), surgindo-lhe logo no início da caminhada, mas a que não deu importância pois tinha esperança e acreditava na justiça.
O roteiro de Yerney passa pelo Presidente da Câmara, pelos camponeses, pelas crianças, pelo tribunal de Dolina, pelo tribunal de Ljubljana, pela tentativa de apresentar a sua questão ao imperador em Viena (a Eslovénia integrou o império austro-húngaro até 1918), pela conversa com um padre. São tantos os interlocutores quantas vezes a história é contada, sempre na mesma versão, invariavelmente exigindo o mesmo – defendendo o seu direito a estar na casa que construiu, sem que o castigo seja aplicado a ninguém. Pelo caminho, Yerney faz-se acompanhar pela sua verdade, pela sua esperança e pelos diálogos que vai tendo com o Deus em quem acredita. Mas, em todas as portas a que bate, recebe o castigo da desconsideração, sendo preso duas vezes e encarcerado com criminosos, não tendo chegado a ver o imperador, sendo menosprezado e exposto ao ridículo. Quando achava que iria encontrar a justiça junto de um padre, o que ouviu, no meio da discussão em que questionava a existência de Deus, foi a ordem “Fora, blasfemo!”
O último capítulo é o da justiça praticada por Yerney, assim justificando o título da narrativa. Em terra onde faltava a justiça, o velho feitor constrói a tragédia e é vítima do incêndio que ateou e do ódio dos camponeses que com ele tinham trabalhado. Destruição dantesca, que surge ainda mais fulminante porquanto a justiça se mostrou pelo seu lado negativo. E, em jeito de parábola, para que o leitor entenda a lição, o narrador conclui: “Isto passou-se em Betajnova. Deus tenha misericórdia de Yerney, dos seus juízes e de todos os pecadores.”
A escrita de Cankar conforma aqui as marcas do romance psicológico, com o leitor a acompanhar o drama pessoal de Yerney segundo a sua sensibilidade, perante a insensibilidade dos outros. Por outro lado, esta busca da justiça é também uma sátira à forma como ela é praticada, haja em vista que é nos tribunais que Yerney é mais humilhado e mais incompreendido, onde vê mais hipocrisia. O leitor deixa-se impressionar pela força que jorra desta personagem, um Yerney sobretudo espiritual, que, com cada passo que dá, mais se vai aproximando do seu martírio, imposto quando a esperança lhe morreu.
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Lamento – “O lamento é como uma semente que produz mil vezes mais. Logo que cai sobre o coração multiplica-se tão rapidamente que o coração fica sufocado, tão sufocado que a esperança não pode irromper.”
Caminho – “O caminho pode ser muito longo, o trilho pode ser muito difícil e juncado de pedras e espinhos. Mas, um dia, o caminho terá o seu fim; um dia, a porta abrir-se-á. Deus não escondeu a Sua Justiça como um avarento esconde o seu dinheiro.”Justiça – “A justiça é uma senhora severa e exigente e não gosta que lutes contra a sua vontade. Se, apesar de estares inocente, ela te acusar de homicídio – então é porque mataste: não há dúvida alguma; se te acusa de roubo – então, é porque roubaste com ambas as mãos. Podes jurar que não mataste ou não roubaste – será um infortúnio. É mais prudente confessares-te culpado: confessar algum crime imaginário, algum roubo imaginário, pois deste modo mostrarás quão humilde és e como estás arrependido… Essas são as almas de que gosta a justiça, apesar de poderem pertencer aos mais cruéis pecadores. A justiça não gosta de corações empedernidos; ela não aprecia a inocência.”
Coração – “O coração fica mais calmo quando chora do que quando ri, e todos os pecados, todas as injustiças são levadas pelas lágrimas.”
1 comentário:
Faz amanhã um ano que o amigo publicou este artigo e, de facto, vale bem a pena refletirmos com o autor deste livro acerca da nossa ideia de Justiça. Às vezes, temos mesmo tendência de esquecer o essencial.
José Campos (joserezendecampos@live.com.pt)
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