segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Raul Brandão: de que cor são os Açores?

Em 13 de Maio de 1924, Raul Brandão escrevia a Teixeira de Pascoaes carta em que dizia: “Vou partir para Lisboa dentro de alguns dias e no dia 5 de Junho para os Açores (…). Conto demorar-me por lá dois meses e trazer notas para Os Pescadores e Os Lavradores e naturalmente um volume As Ilhas Desconhecidas sobre o Corvo, as Flores e o Pico.” Quando regressou, já datada da casa do Alto, de 7 de Setembro, Brandão enviava missiva ao amigo, rejubilando: “A viagem aos Açores foi esplêndida. Deve dar um livro interessante – quando eu o puder escrever.” (Raul Brandão – Teixeira de Pascoaes: Correspondência. Org.: António Mateus Vilhena e Maria Emília Marques Mano. Lisboa: Quetzal, 1994).
Dois anos depois saía, com efeito, As Ilhas Desconhecidas, conjunto de momentos e de retratos dessa viagem noticiada a Pascoaes, com registos datados do período entre 8 de Junho (a bordo do “S. Miguel”, rumo ao Corvo) e 29 de Agosto de 1924 (embarcado na Madeira para regressar ao continente). Na abertura, “em três linhas”, Brandão explica: “Este livro é feito com notas de viagem, quase sem retoques. Apenas ampliei um ou outro quadro, procurando sempre não tirar a frescura às primeiras impressões. (…) Não poder eu pintar com palavras alguns dos sítios mais pitorescos das ilhas, despertando nos leitores o desejo de os verem com os seus próprios olhos!...”
As notas reunidas por Brandão assinalam as emoções do viajante, mesmo aquelas que dão para reflexão sobre os mais caros temas ao homem, como a vida e a morte e a fronteira que as une – logo no primeiro capítulo, para descrever a fragilidade do barco, refere: “Toda a noite esta coisa complicada que é um transporte a vapor range pavorosamente como se fosse desconjuntar-se; toda a noite sinto a água bater no costado e a máquina pulsar contra o meu peito. A ideia da morte não nos larga: separa-nos do caos um tabique de não sei quantas polegadas.” O título do livro deixa adivinhar o que era o conhecimento destas ilhas na década de 1920 e todos os registos brandonianos caminham no sentido de anular esse desconhecimento, seja pelo tempo lá passado (longo, ainda que por causa dos transportes, cheio de minúcia e de descobertas), seja pela observação e chegada ao interior das pessoas e traçado dos elos que as ligam à paisagem.
As imagens das ilhas são surpreendentes – sobre S. Jorge: “Esta ilha esguia, que parece um grande bicho à tona de água, mostra-me no focinho penedos aguçados como dentes”; sobre o Pico: “uma nuvem branca e esguia cortou o Pico pelo meio e o cone sai da nuvem suspenso no ar por milagre” ou “está ali presente como um vagalhão que vai desabar sobre o Faial”; sobre as Sete Cidades: “as Sete Cidades é também a alma duma paisagem. As grandes paisagens que morrem a alguma parte hão-de ir ter… Deus colocou-a aqui, delicada e virgem, no fundo desta cratera tremenda, entre o fogo e o caos; rodeou-a de solidão e de montes; pôs-lhe à volta, para a defender, o mar”; sobre o Corvo: “O Corvo é uma democracia cristão de lavradores”; sobre as ilhas: “o espectáculo imenso que se desenrola diante de meus olhos atónitos dá-me impressão de que as ilhas nascem do mar e se vão formando à nossa vista pela mão do criador”.
As figuras humanas merecem um tratamento de proximidade, quer pelo relato das histórias de vida ouvidas, quer pelo tratamento das personagens pelo seu nome real, quase dando a impressão de que o narrador-viajante se integrara na família e se apropriara dos seus segredos. Outra coisa não seria de esperar de quem, a dada altura, estipula como princípio seu: “Aqui só uma coisa a fazer: não é olhar para fora, é olhar para as almas”. E é o mundo do trabalho, a dificuldade de viver, a comunidade, a solidão, a ligação da homem ao território, um conjunto de recursos da paleta humana ao dispor do observador.
Da paisagem açoriana sobressaem a cor, os campos, as quintas e jardins. Circulando no Faial, deixa-se cativar pela tonalidade das hortênsias para desabafar: “O homem que teve a ideia de bordar as estradas com estas plantas devia ter uma estátua na ilha”. Aliás, esta preponderância das hortênsias e do seu azul-ferrete levá-lo-á a definir a cor açoriana – “o azul que enche a terra e nunca mais acaba e que é talvez o verdadeiro céu dos Açores”.
É um viajante sequioso de conhecimento e de contemplação que se vai conhecendo a si próprio até ao ponto de dizer, inebriado pela maravilha e sensibilizado: “Já percebi que o que as ilhas têm de mais belo e as completa é a ilha que está em frente”. Esta ideia de infinito, de resto, perpassa várias vezes e, conjugada com o deslumbramento que sente pela riqueza dos caracteres humanos – haja em vista o capítulo sobre a caça à baleia ou aqueloutro em que fala dos pescadores, por exemplo – o viajante nestas ilhas deixa-se arrebatar: “Oh! Quem me dera ser patrão dum barco e ir de ilha em ilha abicar aos portos, de barrete azul adebruado de vermelho na cabeça e a mão no leme”…
À Madeira dedica Brandão capítulo curto, em que, apesar de apreciar a cor, mais quente, lhe fica a sensação dominante de algum desconforto – “Esta ilha é um cenário e pouco mais – cenário deslumbrante com pretensões a vida sem realidade e desprezo absoluto por tudo o que lhe não cheira a inglês. Letreiros em inglês, tabuletas em inglês e tudo preparado para inglês ver e abrir a bolsa.” Esta conclusão servir-lhe-á para um retrato social impiedoso dos madeirenses: “Cada vez se cava mais funda a separação entre as classes chamadas superiores e as outras. O que se faz neste país é um crime que havemos de pagar muito caro”. Em causa estavam também conceitos de turismo, entre a familiaridade e a indústria que começava a ser: “Detesto o turismo e adoro a hospitalidade. (…) Uma nação não deve ser um hotel – e Deus nos livre que o seja!”
Apesar desta sensibilidade na apresentação do que eram as “desconhecidas” ilhas, Brandão não se consegue desviar do seu estatuto de visitante. Ainda em S. Miguel, no início desse Agosto, escreverá: “Devo dizer que já me cansa um pouco e que anseio por outra luz… Começo a ter saudades do velho muro do meu quintal, tostado do sol, onde se criam as sardónicas, os líquenes amarelos e rosados, e até mesmo as pedras amadurecem como as uvas!...” E o relato desta viagem terminará com essa homenagem à luz, quando, já na bacia de Cascais, fotografa: “a luz irrompe, uma luz alegre, uma luz que vibra toda, uma luz em que cada átomo tem asas e vem direito a mim como uma flecha de oiro. No céu imenso e livre, o sol bóia como num grande fluido. Portugal!...”
O que entusiasma na escrita de Brandão é essa multiplicidade da cor, fortemente matizada, intensamente definida, algo que decorre de uma escrita que navega sobre a sensibilidade. Como António M. B. Machado Pires referiu no prefácio de As Ilhas Desconhecidas (Col. “Obras Completas de Raul Brandão”. Lisboa: Editorial Comunicação, 1987), “Raul Brandão era um emotivo, no que esta palavra, de semântica vaga, quer significar de predomínio das primeiras impressões e sentimentos sobre a elaboração cerebral, uma espécie de ‘matéria-prima’ de sentimento, ‘em bruto’, passada ao papel: assim escrevia principalmente Brandão.”

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